Segunda-feira,
26/5/2014
Digestivo nº 500
Julio
Daio Borges
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GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ (1927-2014)
García Márquez foi o escritor hispano-americano mais importante, na nossa época, depois de Borges. Misturados ao boom latino-americano do "realismo fantástico", eram diferentes mas eram complementares. Borges celebrou a grande tradição da literatura. Sua obra é a de um grande leitor ― o maior do século XX? ― que, no fim da vida, foi "a voz" da literatura, em palestras que fazia ao redor do mundo. Sua ficção é ensaística, livresca no bom sentido, quase para iniciados. Borges encarnava o cânone, era contemporâneo dos mestres, nas principais línguas e épocas. Praticamente um inglês nascido na Argentina, foi um conservador ligado à tradição e consagrou sua vida à leitura, mais do que à escritura (para usar uma palavra-chave neste contexto). Já García Márquez foi um mestre da invenção. Cem Anos de Solidão é mitologia, do tipo que escreveu Homero, os evangelistas, gente dessa estirpe. Macondo transcende Aracataca, assim como a Ilíada projeta Troia no infinito e Cervantes concentra, no Quixote, toda uma era de romances de cavalaria. Quando a América Latina tiver desaparecido, Cem Anos de Solidão permanecerá como um retrato fiel da civilização hispano-americana. O romance, aliás, foi impactante mesmo para García Márquez, que comparou a escrita do livro subsequente, Outono do Patriarca, a um doloroso parto. Considerava O Amor nos Tempos do Cólera ― a história de amor de seus pais ― seu melhor livro, e apostava que ― esse, sim ― permaneceria. Como ninguém é perfeito, García Márquez foi amigo de Fidel Castro e defendeu Cuba de ataques políticos, quase sempre em nome da amizade e quase nunca em nome do realismo. Tornaram-se igualmente famosas as rusgas com Vargas Llosa, sobretudo por causa de uma mulher... Gabo, o apelido consagrado de García Márquez, era um homme à femmes, e, com muito charme, se dizia melhor compreendido pelo gênero feminino. Os desentendimentos ― inclusive políticos ― não impediram que a edição comemorativa de Cem Anos de Solidão, pela Real Academia Española, saísse com um ensaio de Vargas Llosa sobre a obra-prima. O primeiro a reconhecer sua importância ― dando uma medida de seu alcance e de sua grandiosidade, já na época do lançamento (o que não é pouco). Num rasgo de populismo à la Jorge Amado, García Márquez se dizia tomado pela cultura popular, mas, num exame mais detido, sua grande influência literária foi William Faulkner. A este, uma vez, perguntaram por que nos estados do Sul havia tanta literatura: "Porque nós perdemos a guerra", Faulkner teria dito. Os Estados Unidos tem um Cem Anos de Solidão? Será que é porque a América Latina perdeu a guerra? García Márquez vale a descoberta e a redescoberta. Cem Anos não é um livro, é um milagre de superação no meio do mundo subdesenvolvido.
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Latuff |
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García Márquez no Digestivo |
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SALINGER, DE DAVID SHIELDS E SHANE SALERNO
Por que ler uma biografia de J.D. Salinger? Porque ele escreveu O Apanhador no Campo de Centeio, provavelmente o romance mais influente dos anos 50, em língua inglesa, que levou a rebeldia juvenil ao mainstream, antecipando os beatniks, os hippies e, obviamente, o rock'n'roll, e o pop. O "poder jovem", como se dizia nos anos 60, seria impensável sem Holden Caulfield. Do mesmo jeito, o protagonismo dos jovens brasileiros na época que se convencionou chamar de A Era dos Festivais, até a explosão da "cultura jovem", nos anos 80 (tão bem documentada por Ricardo Alexandre). Até a internet. Salinger cristalizou uma postura anti-establishment que consequentemente inspirou hackers, desde um Jobs, que foi para a Índia e combatia a IBM, o Grande Irmão, até um Zuckerberg, o antisocial fundador da maior rede social do mundo (não sem brigar antes com a namorada e "dar um chapéu" em colegas de Harvard). Holden Caulfield está entre nós; dentro de cada um de nós. E você nem precisa ter lido o livro... Salinger, contudo, pagou um preço alto por isso. O sucesso e a popularidade da obra o assombraram até a morte. Passou décadas tentando se isolar em Cornish, no estado de New Hampshire, ambicionando "levar uma vida normal", mas o máximo que conseguiu foi se converter num dos reclusos mais famosos do mundo, avesso a aparições públicas, levando o controle da sua imagem, e da sua obra, ao limite da paranoia. Shields e Salerno, os autores da biografia, acreditam que a chave para o comportamento de Salinger esteja no transtorno de estresse pós-traumático, em consequência de sua participação na Segunda Guerra Mundial. Salinger tomou parte do famoso desembarque no Dia D, afastou corpos que flutuavam, desviou de muitos outros na praia... Combateu na floresta de Hürtgen, na Alemanha, uma das batalhas mais sangrentas de toda a História. E foi um dos primeiros a ter contato com o horror dos campos de concentração. Esteve em Dachau. Shields e Salerno acreditam que Holden Caufield foi a razão de viver de Salinger nessa época, pois o romance foi escrito no front. Salinger exorcizou seus demônios criando um mostro adolescente, que enfeitiçou multidões de leitores ao longo do século XX. Manteve a serenidade até publicar O Apanhador, mais uma coletânea de histórias da New Yorker, Fanny & Zoey, a "Culmeeira" com o "Diário de Seymour", mais um último conto mal compreendido na mesma New Yorker, "Hapworth 16, 1924", e, enfim, "despirocou". A consagração e as vendas, avassaladoras, tiveram sequência. E Salinger, milionário e hermeticamente fechado, perdeu o senso de realidade. Casou três vezes, teve casos e mais casos com jovens garotas entre a adolescência e a idade adulta ― e escreveu obsessivamente. Mais de 12 horas por dia ― relatos afirmam ―, durante décadas. Shields e Salerno revelam um cronograma de publicação, deixado em seu testamento, que começa em 2015 e que vai até 2020. O que vem por aí? Mais Holden Caulfield? É possível. Mas é possível, também, que toda a espera seja em vão. Gênio ou louco? O que o futuro reserva para J.D. Salinger?
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LUCIANO DO VALLE (1947-2014)
Luciano do Valle foi Galvão Bueno antes de Galvão Bueno. E, principalmente, melhor que Galvão Bueno. Quando o tom oficialesco de Galvão Bueno se consagrou na TV Globo, era na TV Bandeirantes que os telespectadores iam buscar refúgio. Luciano do Valle driblou a correção política ao dar espaço a um desbocado Silvio Luiz, nos anos 80, e a um nada sofisticado Neto, nos anos 90. E, em vez de repousar sobre os louros da fama, abriu novas frentes para a transmissão esportiva. Quem viveu os anos 80 se lembra de Bernard, e sua "jornada nas estrelas", Montanaro, William e Xandó, a chamada "geração de prata" do vôlei brasileiro. Assim como quem viveu os anos 90 obviamente se lembra de Marcelo Negrão, Tande, Giovane e Maurício, que conquistaram, efetivamente, o ouro para o Brasil. Luciano do Valle forjou, igualmente, carreiras como as de Hortência e Paula, no basquete feminino. E, mais discutivelmente, a de Adilson Rodrigues "Maguila", no boxe. Quando o Brasil descobria a NBA, Luciano do Valle apelidou Paula de "Magic Paula" (evocando Magic Johnson). E quando o mundo se espantava com Mike Tyson, quis, com o "professor" Newton Campos, que o Brasil tivesse, nos pesos pesados, seu representante. (Não durou dois rounds com Evander Holyfield, em 1989, para a decepção geral da nação.) Em sua primeira encarnação, Luciano do Valle juntou-se à equipe esportiva da Globo durante a cobertura da Copa de 70. Consagrou-se, nessa década, quando cobriu as principais vitórias de Emerson Fittipaldi na F1. Depois da Copa da Espanha, em 82, saiu da Globo para a Record, mas fez escola mesmo, a partir de 83, na Bandeirantes. Praticamente criou o "Canal do Esporte", apostando em transmissão esportiva maciça, aos domingos, com o Show do Esporte. (Quando não competia com Galvão Bueno, estava competindo com ninguém menos que Silvio Santos.) Luciano do Valle ainda foi pioneiro da Fórmula Indy no Brasil e quis fazer até o futebol americano cair no nosso gosto. Exageros à parte, ficamos sem alternativa na próxima Copa do Mundo, justamente a do Brasil. Não dá para comparar Luciano do Valle com Milton Neves ou ― pior ― com José Luiz Datena. Mas pior ainda será Galvão Bueno reinando absoluto na Globo. O homem que já esculhambou Pelé, em pleno Tetra, sofreu a campanha do "Cala a Boca, Galvão", na última Copa, e não abaixou a crista, aparentemente não será detido em pleno voo, nem pela proverbial sinceridade de Casagrande. Cléber Machado? É muito bom-mocismo para um locutor só... Mas voltando a Luciano do Valle, o fato é que a TV Bandeirantes deve-lhe muito, para não dizer tudo. Antes de ser hoje esse player representativo da comunicação brasileira, o Grupo Bandeirantes contou com a visão, o pioneirismo e a grande capacidade de realização do campineiro Luciano do Valle Queirós.
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J.BOSCO |
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Luciano do Valle |
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OS ARQUIVOS SNOWDEN, DE LUKE HARDING
Desde Julian Assange, em 2010, que o mundo não era chacoalhado por um hacker. Edward Snowden, ex-CIA, resolveu vazar todo um programa de espionagem do governo dos EUA, em associação com as principais empresas de internet, para monitorar as comunicações de cidadãos americanos ou não, ligados ao terrorismo ou não. Isso foi em 2013; e foi um escândalo. Para completar, comprovou-se que os mesmos EUA grampeavam, inclusive, celulares de chefes de estado, como Angela Merkel e, pasme-se, Dilma Roussef. Conhecendo os riscos de sua missão de delator, Snowden abandonou seu posto no Havaí e instalou sua base em Hong Kong, de onde contatou Glenn Greenwald, colunista do Guardian, radicado no Rio, e fez História. Ao contrário de Assange, sobre o qual se lançaram imediatamente livros, Snowden nunca foi afeito à exposição midiática, acabou menos conhecido e mereceu uma "biografia" só agora, com Luke Harding, correspondente internacional do mesmo Guardian. Snowden é bastante jovem, portanto não há muito o que se falar de seus anos de formação. (Sem contar que apagou seus rastros on-line.) Ficamos sabendo que passou bastante tempo participando do fórum de discussão do Ars Technica, que terminou vendido para o grupo Condé Nast. Acabou não se formando, mas sua habilidade com computadores era tamanha que imediatamente foi contratado e teve ascensão meteórica, como técnico, nos serviços de inteligência dos EUA. Quando decidiu jogar tudo pro alto, morava "no paraíso", segundo suas palavras, com a namorada, e tinha uma renda anual de mais de 200 mil dólares. Diferente de Assange, Snowden nunca foi "de esquerda", poderia ser definido como "um patriota", e simpatizava com Ron Paul, candidato republicano nas primárias de 2008 e 2012. Mais cerebral que Assange, porém, Snowden escolheu seus parceiros, no jornalismo, a dedo, criptografando desde o início todas as mensagens e só aceitando negociar pessoalmente os termos de seu "vazamento". Sabendo que sua atitude não teria volta e que os EUA só o receberiam para prendê-lo, acabou pedindo asilo na Rússia, de Putin, que terminou lhe concedendo, para a irritação de Obama. Hoje se sabe que está em Moscou, trabalhando para um empresa de tecnologia, mas sua ambição não é permanecer sob os holofotes. Glenn Greenwald, o ex-advogado que se tornou colunista do Guardian, terminou ganhando maior notoriedade que Snowden, e foi agradaciado com um convite de Pierre Omidyar, bilionário fundador do eBay, que resolveu investir no ramo de notícias, com a First Look Media. Assange, claro, tirou uma lasca, infiltrando uma representante do WikiLeaks para escoltar Snowden desde Hong Kong até a Rússia. Mas o que fica, de todo episódio, é que somos mais monitorados do que poderíamos imaginar e que não existe privacidade para quem usa serviços de empresas como Google, Facebook, Microsoft e até da Apple, de Steve Jobs.
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Os Arquivos Snowden |
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Julio Daio Borges
Editor |
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