Quarta-feira,
17/10/2001
Digestivo nº 52
Julio
Daio Borges
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MAOMÉ NÃO FOI À MONTANHA, MAS ELA VEIO
Se há algo que se pode afirmar sobre a atual guerra é que ela se caracteriza por reviravoltas que torcem a lógica ocidental. Pode-se afirmar o mesmo sobre toda e qualquer guerra, mas no presente caso essa experiência (de falta de lógica) torna-se palpável inclusive para quem está fora do conflito, assistindo de camarote através da mídia. Todos os dias, os jornais correm para explicar e compreender as movimentações dentro de um contexto maior, mas logo surge um fato novo e todo o raciocínio de segurança e previsibilidade vai por água abaixo. Os líderes e os porta-vozes dos Governos são desmentidos incessantemente, pois anunciam medidas para debelar o “terror” que na hora H, ou na semana seguinte, perdem completamente o efeito. Quantas vezes George W. Bush prometeu uma volta à normalidade e foi frustrado por um novo ataque, uma nova reviravolta? Não é Osama bin Laden ou o Taleban que ameaçam a tranqüilidade do nosso “lógos”, pondo abaixo mais de dois milênios de platonismo, com séculos e séculos de conceitos empilhados que – diante das tragédias – não servem mais para nada, é mais amplamente o choque entre Oriente e Ocidente que, analisando a História, ocorreria inevitavelmente. Se não fossem esses terroristas, seriam outros. Tanto é verdade que todas as questões pendentes há tempos, como a palestina, tomam o centro da arena, deixando de ser um assunto “periférico” para converter-se em preocupação mundial, da ordem do dia. Não se pode mais fechar os olhos para essas mazelas. E é bem provável que, no bojo dessas negociações, o Terceiro Mundo corra atrás das sobras, pois no limite da penúria e do desespero pode igualmente ameaçar (o Primeiro Mundo) com aviões, bombas e bactérias. Para o mal ou para o bem, os ataques de 11 de setembro, e seus desdobramentos, lançam uma nova compreensão e um novo entendimento do mundo como ele existe hoje. Não é apenas a vingança de Dionísio, é a “globalização”, literalmente, comme il faut.
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Um asteróide de Deus caiu sobre o Ocidente |
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I DON’T KNOW WHAT TO SAY, YOU DON’T CARE ANYWAY
É assim que o New Order abre o disco que marca seu retorno como banda, intitulado Get Ready. Embora tenha se consagrado no final dos anos 80 como expoente da música eletrônica, o New Order resolveu voltar ao rock. (Vale lembrar que o trio Sumner, Hook e Morris se consolidou com o Joy Division, ao lado de Ian Curtis, muito antes dos sintetizadores.) Os vocais de Bernard ainda estão lá, inimitáveis, o baixo de Peter ainda conduz a parte harmônica e a bateria de Stephen ainda faz as marcações no contratempo. É, em suma, um bom álbum, mas não chega a inaugurar um novo paradigma na música pop, como o cultuado Substance, o duplo de 1988. As composições perdem a sua vocação dançante, tendendo quase sempre às “british guitars” que anteciparam em quase uma década a geração Seattle. Fora a música, há um esforço para fugir dos rótulos. Principalmente na capa e na contracapa do CD, onde não existe qualquer indicação do nome da obra ou do artista. Uma brincadeira que vai encher a paciência dos fãs e das pessoas que forem procurar Get Ready descompromissadamente. Na dúvida, resta o recurso de ler na “lombada” ou nas bordas do disquinho. Mantendo a proposta “clean”, de que os quatro integrantes são adeptos, não foram incluídas transcrições das letras. As fotos do encarte têm um aspecto puramente plástico, quase arquitetônico, evitando propositalmente o lado “verbal” da vida. A audição se encerra e o julgamento, não. Será que Get Ready traz algum atrativo para os não-iniciados? A acolhida, ou não, do público trará a resposta.
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http://neworder.sonicnet.com/ |
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IDEOLOGIA: O ÓPIO DOS INTELECTUAIS
Roberto Campos morreu. Não devidamente compreendido como gostaria. Seu Lanterna na Popa, por exemplo, alguém leu? Seus artigos na Folha de S. Paulo aos domingos, outro exemplo, alguém lia? Esta é a sina dos intelectuais brasileiros: o silêncio. Independentemente dos seus escritos, Roberto Campos construiu as bases do que se chama hoje de “economia” brasileira. Foi ele quem criou o Banco Central, o verdadeiro árbitro das pressões sobre a moeda e sobre a produção do País. Foi ele quem inventou a correção monetária, hoje vista como um mal, mas que perdurou por décadas. A influência inquestionável de suas idéias se fez sentir de Juscelino Kubitschek a Fernando Henrique Cardoso. Mas não se fez ouvir pelo povo, nem pelas classes ditas médias. Um epitáfio que escreveu para Paulo Francis mostra que, inegavelmente, buscava um maior contato com as massas. Roberto Campos ficou marcado pela participação no governo Castello Branco, uma administração moderada dentro da recente e inesquecível ditadura militar. Ficou também conhecido por ser um defensor hábil (provavelmente o mais hábil) e ferrenho do liberalismo à brasileira. (Leia-se direitismo à brasileira, no vocabulário ancestral das esquerdas.) Por esses dois motivos, recebeu tarja preta e entrou para o index de livros e autores proibidos. Sua morte, ato que redime a todos, talvez lhe permita a compreensão almejada. Não há porque continuar ignorando uma das maiores inteligências brasileiras.
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Discurso de Posse na ABL |
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O CONSELHEIRO TAMBÉM COME (E BEBE)
Foi em abril que o Charlô, da Barão de Capanema, deixou de ser apenas “bistrô” para expandir-se num salão amplo e de pé-direito alto. Seis meses depois, a novidade ainda não foi completamente assimilada por aqueles que viam, no intimismo e na limitação de espaço, uma marca registrada do restaurante. É compreensível a mudança, no entanto. Todos têm, um dia, de se reinventar, abandonando até certo ponto a “exclusividade” para abraçar o grande – e respeitável – público. Em vez das pessoas que falam baixo, o Charlô abriga agora os executivos de gargalhadas estrondosas – americanos? – em mesas compridas e povoadas. Não é fácil reconhecer os antigos garçons no novo ambiente, agora eles correm, as distâncias aumentaram. Mas seria uma injustiça invocar só esses aspectos “comparativos”, pois, por maior que seja a algazarra, não é nada que se compare a uma pizzaria lotada num domingo à noite, por exemplo. E a comida, bem, a comida é um espetáculo à parte. De notável, percebe-se uma maior variedade de pães no “couvert”, combinados com o tradicional patê de foie gras, que consagrou o “restaurateur” há anos. O cardápio também apresenta novas criações by Charlô, of course, e a noite fria de primavera (em São Paulo, of course) clama por um pato com damasco, não há como evitar. As horas passam, o mundo corporativo parte, e a música pode novamente ser escutada. Encerra-se com uma daquelas sobremesas artesanais, que ilustram matérias da Vejinha, no embalo do vinho curtido desde a entrada. E tem-se aí uma felicidade certa. Não é barata, mas e daí? Uma extravagância, de vez em quando, faz parte.
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E O TEMPO NOS ENTERRA
Memórias Póstumas, de André Klotzel, resiste bravamente e continua em cartaz nas salas de São Paulo. Por três possíveis razões. Ou porque querem “dar uma força” ao Cinema Nacional (expressão que causa calafrios em algumas pessoas). Ou porque existe um acordo de cotas que, por meio de certas “leis de incentivo”, obrigam os exibidores a mantê-lo lá. Ou então porque o filme é bom mesmo e a platéia o tem prestigiado, semana após semana. É preferível (e razoável) acreditar nessa última hipótese. Afinal, assistir a Memórias Póstumas não é como ler Machado de Assis (coisa que nenhum longa jamais virá a ser), mas evoca com respeito um dos “founding fathers” da Literatura Brazuca. Reginaldo Faria está num de seus melhores papéis desde Jacques Le Clerc (ou Le Clerk? ou Le Clair?, de 1985). Continua com o mesmo topete e o mesmo sorriso malicioso, que cai absolutamente bem no “caráter geral” do brasileiro médio – que, mesmo mal intencionado, falha em tudo, até nos golpes que planeja dar. O Lobo Neves não podia ser mais lobo, nem mais Neves. (Aí entra uma outra questão. Um paradoxo. Alguém já teorizou a respeito, e tem considerável parcela de razão, quando diz que atores bem escolhidos tiram metade do “barato” de quem pretende ler o livro depois do filme.) Mas, voltando: Marcela não está bem representada por Sonia Braga (musa recorrente, mas que não deveria ser mais, tudo tem sua hora para acabar). Em linhas gerais é isso. O longa segue as principais “cenas” da obra de Machado, mas não teria (nenhum filme teria) como reproduzi-las todas textualmente. Que algumas frases sejam preservadas já é uma glória. Que mais pessoas voltem a conviver com o bruxo do Cosme Velho é, portanto, uma glória ainda maior. Mil vivas ao defunto autor.
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João Kleber, de São Paulo: "Uma salva de palma esse menino aqui."
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Julio Daio Borges
Editor |
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