Quarta-feira,
31/10/2001
Digestivo nº 54
Julio
Daio Borges
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NÃO DEIXE-O, POR ISSO AME-O?
Em alguns cantos do País, já é possível sentir certos ventos de euforia, que sopram em favor das coisas do Brasil. É uma falsa preferência nacional. No fundo, escolhe-se entre o ruim e o pior. Em vez de ter de encarar aviões-bomba e armas químicas, o paulistano e o carioca, por exemplo, preferem um revólver na cabeça ou um seqüestro relâmpago. As manifestações ufanistas crescem sem razão: as pessoas comparam os Estados Unidos ao Brasil, quando não existe qualquer base de comparação. Um dos nossos trunfos, segundo a imprensa, é agora o turismo. A revista IstoÉ enumera, de boca cheia, casos de brasileiros que trocaram uma temporada em alguma metrópole norte-americana (ou até européia) pela tranqüilidade de um paraíso tropical tupiniquim. De fato, em alguns confins do Norte e Nordeste tem-se a impressão de que o mundo parou, jamais se ouve qualquer menção a Bill Gates ou Bin Laden. Ainda assim, com essa ilusão de paz e segurança, existem realmente motivos para comemorar? Qual a grande vantagem de não estarmos entre os alvos dos terroristas, se nós temos os nossos próprios, made in Brazil? Muito bem, diminuíram as viagens para Nova York. Mas alguém honestamente acredita que a Big Apple é a única prejudicada? Perdem também as nossas agências e operadoras, com está a Soletur aí para provar. Os detratores do Tio Sam não percebem que, com ou sem globalização, estamos todos amarrados a eles. Como num dominó planetário, se eles caem, nós caímos também. Outra coisa: não é porque os Estados Unidos “piora” que o Brasil “melhora”. É típico dos pequenos esperar por qualquer escorregão dos grandes e, então, proclamar sua pretensa superioridade.
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Paris fica para depois |
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PRA VOCÊ, EU DIGO SIM
No final dos anos 1960, no Brasil, era avant-garde afirmar que, em termos de MPB, “os Mutantes eram demais”. O grupo se dissolveu nos anos 1970 e levou a pecha de genial, por causa do trio-parada-dura de Rita Lee e dos irmãos Sérgio Dias e Arnaldo Baptista. Dos dois últimos, um se mudou para a Europa, entretendo-se com música instrumental e trilhas sonoras; o outro gravou álbuns “viajandões”, despirocou, e virou cult – a exemplo (sem qualquer intenção maldosa) de Syd Barrett, do Pink Floyd. Verdade seja dita: Rita Lee, que buscou caminhos para a música brasileira – no Brasil – terminou menos “festejada”, afinal de contas, santo de casa, que ainda por cima fica em casa, não faz milagres. “Aqui, ali e em qualquer lugar”, o CD recém-lançado pela moça dos cabelos vermelhos, chega portanto para extirpar qualquer dúvida acerca do talento, igualmente genial, de Rita Lee Jones. O disco contém regravações dos Beatles, em arranjos originalíssimos de Roberto de Carvalho, que, junto com a sua senhora, lançou as primeiras versões genuinamente brasileiras das canções dos Fab Four. A crítica vai implicar com as letras reescritas em português (coisa que os músicos previram, incluindo as faixas equivalentes – e intactas – em inglês). Não há como negar, porém, as surpresas, ao ouvir, por exemplo: “With a little help from my friends”, convertida em bossa nova; “All my loving”, em pura inspiração jobiniana, com piano minimalista de João Donato; “She loves you”, transformada em samba; “I want to hold your hand”, transfigurada em forró. Mesmo quando não mexe em “nada”, Rita Lee trata de recriar hits executados à exaustão, acrescentando nuances vocais e instrumentais, como em “Michelle” e “Lucy in the sky with diamonds”. Resumindo: é um CD impecável, que merecia vender feito pão quente. (Ainda que isso não aconteça, fica registrado que Rita Lee Jones é muito mais que a moça que, nos Mutantes, tocava pandeirinho vestida de noiva.)
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http://www.ritalee.com.br/ |
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SÓ É GORDO QUEM QUER
O 27º Panorama de Arte Brasileira abriu suas portas na semana passada, no Mam. Champanhe para os convidados, artistas com cabelos multicoloridos, patrocinadores engravatados, curadores com a mirada perdida no horizonte. Tinha de tudo. Nem adiantava perguntar o que era sério e o que era piada (com a cara do espectador). Um trabalho, no entanto, chamou a atenção e captou mais do que alguns segundos daqueles que passavam pelas instalações, pelos vídeos e demais objetos inclassificáveis. Foi a pesquisa de Fernanda Magalhães sobre a obesidade, mais especificamente sobre a “mulher gorda brasileira”. Numa parede estavam penduradas fotos de uma de suas modelos: primeiro, vestida; depois, nua. Numa outra parede foram colados e-mails de um grupo de internautas que se identificavam exatamente pelo excesso de peso. De repente, suas histórias de vida invadiam os pensamentos dos passantes e – para completar – um fone com depoimentos, pendendo do teto, estava disponível para quem quisesse ouvir aquelas pessoas falando. Hoje em dia, com as academias de ginástica, com os alimentos sem gordura e sem açúcar, com o excesso de zelo em relação ao corpo, os gordos (sem eufemismo) são uma espécie em extinção. Um deles afirma com razão: alguém já pensou o que significa ser consideravelmente “enorme” e viver como herege dentro da religião que prega 24 horas por dia a “boa forma”? De um momento a outro, defende-se os pretos, os judeus, as mulheres, os pobres – e os gordos? Esquecemos dos gordos. A uniformização tende a passar por cima deles. Lógico, não é a opção mais saudável do mundo (essa de ignorar a existência da balança) – mas será que eles não têm o direito, como todos, de escolher o que querem ser?
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Mam - Parque do Ibirapuera (portão 3) - Tel.: 5549-9688 |
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O CONSELHEIRO TAMBÉM COME (E BEBE)
La Bella Cucina é o nome do restaurante que fica na rua José Maria Lisboa, quase esquina com a rua Pamplona. No bairro dos Jardins, proximamente à Trattoria do Sargento e – atravessando a avenida Nove de Julho – na vizinhança do Lellis. La Bella Cucina guarda mais do que uma coincidência geográfica com ambos. Pode-se dizer que praticamente nasceu da mesma família, pois seus proprietários têm sobrenome “Lellis” e também um histórico de trabalhos com o “Sargento”. Por isso, não se deve esperar por excessiva pompa ou circunstância, La Bella Cucina é cantina “no duro”: um estacionamento amplo com manobrista; um salão único, num ambiente integrado, decorado com garrafas de vinho, arcos e pendurucalhos, conforme reza a tradição; uma cozinha de proporções industriais, que pode ser vista e visitada pelos clientes, afinal, não está encerrada num espaço à parte. No tocante à gastronomia, os garçons são ágeis e os pratos servidos com rapidez. Num piscar de olhos, a mesa está posta com o couvert: pão italiano, sardela, e azeitonas pretas temperadas (às vezes, os prazeres da vida são simples e fáceis). Num outro piscar de olhos, surge uma travessa forrada com um autêntico carpaccio (leve, saboroso, na medida). Mais um piscar de olhos, é servida a lasanha branca ao forno (forte, robusta, mas não execessivamente carregada ou num tamanho além da conta – bendita a meia porção, custando metade do preço). A sobremesa, um clássico pudim de caramelo, chega para quebrar o salgado – com um doce. Cafezinho para fechar. Enfim. Qual paulistano resiste às tentações oriundas da Itália com que praticamente foi criado?
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La Bella Cucina - R. José Maria Lisboa, 661 - Tel.: 3884-9115 |
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O ETERNO RETORNO
A sala UOL esteve vazia para ver o Nietzsche de Julio Bressane, na Mostra de Cinema BR. Também pudera, foi exibido numa segunda-feira à tarde. Muita expectativa em relação a como o cineasta planejava transpor para a tela os textos do filósofo. Não houve milagre, claro. Os escritos de Nietzsche foram praticamente lidos, quando não declamados, enquanto imagens de seus passeios por Turim eram contrapostas a alguma ópera. Infelizmente, pela brevidade e pela superficialidade da sétima arte, o filme soou como uma coletânea de belas frases, um verdadeiro “best of”. O protagonista, encarnado por Fernando Eiras, esteve um tanto quanto caricato, com um bigode desproporcionalmente enorme, tirando completamente a expressão do rosto do filósofo. Além disso, quis-se enfatizar demasiadamente o gosto de Nietzsche pelas roupas e pelos alfaiates, o que lhe tirou os movimentos - transformando em estátua o escritor que queria ver Deus dançar. De qualquer jeito, o longa é meritório, pois revela o segredo do sucesso de um dos pensadores mais cultuados do século XX. Nietzsche esteve muito mais para comentador do que para filósofo rigoroso. Seus livros não remetem à Tradição; quando não renegam definitivamente a História. Nietzsche, sem querer, elogiou o homúnculo que nasce agora, enfurnado em seu próprio século, considerando-se muito melhor do que tudo o que veio, e do que tudo o que foi. Um sujeitinho prepotente que olha o universo com ar de superioridade, pois crê dominá-lo como nenhum outro homem antes. Nietzsche é o herói de todos nós: um solitário que esnobou o mundo; e que, derrotado em vida, refugiou-se na morte. Ele é o rei da filosofia como “amusement”, como “divertimento”, pois lhe tolheu toda a religiosidade grave. O enlouquecer de Nietzsche, no final da vida, é toda uma alegoria do beco-sem-saída ético e moral, em que o homo sapiens de hoje se encontra. Quem sabe quantos anos e quantas inteligências ainda se consumirão, para que a humanidade retorne a seu curso? Sem vagar por aí como uma alma penada? Como um Nietzsche?
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Dias de Nietzsche em Turim |
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Julio Daio Borges
Editor |
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