Quarta-feira,
16/1/2002
Digestivo nº 64
Julio
Daio Borges
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EXTRAORDINARY TIMES
A Wired, no impulso revisionista de janeiro, chega às bancas com um especial histórico sobre tecnologia. Desde a invenção da pólvora, pelos chineses, no ano 1000, até o rascunho do genoma humano, em 2000. A edição pulula em comparações entre a internet e o mundo real, como é praxe na publicação. E traz listas interessantes, como a de descobertas (científicas ou não) que tinham uma finalidade inicial, mas que terminaram como tiros saídos pela culatra (eis aí o fonógrafo, cujo “leitmotiv” era gravar mensagens telefônicas – e não reproduzir música; e eis também o Viagra, cuja função principal era aliviar dores no peito – e não reavivar brasas antigas). Na visão secular de muitos espiritualistas, a introdução do maquinário, na vida humana, teve conseqüências catastróficas. De repente, com o avanço da física e do empirismo, o homem não precisava mais de Deus e revolveu tirá-lo de suas equações e fórmulas. Será? É igualmente interessante considerar o sugestivo ensaio de James Surowiecki sobre “padronização”. Foi através dela que, subitamente, nos vimos todos do “mesmo tamanho”, supostamente “livres, fraternos e igualitários”. Foi ela quem nos fez auto-suficientes... e solitários (se alguém falha em alguma coisa, não adianta culpar o astral, ou as ordens superiores – todos tem as mesmas chances e, quem não venceu, é porque não revelou sua competência no atual sistema. Ponto final). O remorso, pela mera expectativa frustrada, pensa nos ombros do mundo, diariamente. Sem espaço para o imprevisível, o imponderável, o incontrolável. A tecnologia trouxe, sim, muitas benesses, mas, no caminho, os objetivos se perderam no horizonte. Qual horizonte? Trabalhamos incansavelmente para perseguí-lo, mas ele é, como uma miragem, inalcançável.
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Turn of the Century |
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LUX AETERNAM
Já é encontrável, nas lojas especializadas, o DVD do Réquiem de Mozart, em homenagem aos dez anos da morte de Herbert von Karajan, regido por Claudio Abbado e executado pela Filarmônica de Berlim. O concerto se deu em julho de 1999, na catedral de Salzburg, terra natal do compositor. Estavam presentes a viúva e as filhas de um dos mais longevos maestros de toda a História: Karajan, que viveu mais de 80 anos a serviço da música e que teve uma carreira brilhante, sendo referência para as sinfonias mais célebres de que se tem notícia, as de Ludwig van Beethoven. Como se não bastasse, foi laureado com uma das peças mais míticas desde a sua concepção até a sua execução (quando do passamento de homens notáveis): o Réquiem de Mozart. Sabe-se que ele foi encomendado ao músico no último verão de sua existência, tendo sido iniciado em meados de setembro de 1791 e interrompido em 5 de dezembro do mesmo ano, quando seu artífice veio a falecer. Do conjunto de oito partes que se conhece hoje, apenas o “Introitus” foi totalmente orquestrado por Mozart, faltando passagens do “Kyrie”, da “Sequentia” e do “Offertorium”, que foram completadas por Franz Xaver Süßmayr, um de seus assistentes, que acrescentou ainda um “Sanctus”, um “Benedictus” e um “Agnus Dei”, finalizando a composição com um “Communio”, segundo as derradeiras orientações do mestre. Apesar de tão movimentada partitura, o Réquiem manteve a característica “mozartiana”, sendo o preferido de chefes de estado como, por exemplo, François Mitterand, em 1997, que o exigiria, em vida, como parte de seu ceremonial fúnebre. A versão de Abbado é extremamente contida, como não poderia deixar de ser, lastreada pelo retumbante coro e pelos hábeis solistas convidados. Assistir ao DVD é quase como estar lá. Quase. Mas, pensando bem, para que mais?
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Karajan Memorial Concert |
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MIRE E VEJA
O “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, acaba de ser relançado pela editora Nova Fronteira, dando oportunidade para que se conheça uma das mais importantes obras da literatura brasileira do século XX. Todo grande clássico, com o passar dos anos, tende a se reduzir a uma meia dúzia de clichês que, incontestáveis, tomam o lugar da obra. Não foi diferente com o “Grande Sertão”. O primeiro clichê se refere à sua linguagem, indubitavelmente inovadora (sem precedentes), mas não intransponível como muitos querem fazer crer. O segundo clichê pretende limitar o interesse do livro, encerrando-se no microcosmo do “sertão” (um termo vago e pejorativamente regionalista). O “Grande Sertão” é, ao contrário do que pensam seus detratores, universal – sendo o “sertão” apenas um ponto-de-partida, uma alegoria, uma “ambientação” narrativa. O terceiro clichê se relaciona ao amor de Riobaldo por Diadorim, que, inicialmente homem, revela-se mulher (no final). A mentalidade simplificadora de alguns quis impor a idéia de que, uma vez descoberto o “segredo de Diadorim”, a travessia pelo “Grande Sertão” perderia metade da graça. Não é verdade. A obra-prima de Guimarães Rosa deve ser consumida e saboreada, migalha por migalha, não havendo absolutamente qualquer “mistério a ser desvendado” que se sobreponha ao grosso volume em sua totalidade. Apesar de seus imitadores, o “Grande Sertão”, além dos clichês, parece que ainda não foi devidamente compreendido e, principalmente, apreendido como influência. Isso, qualquer pessoa que leia a produção literária posterior a ele pode perceber. Enquanto as lições nele contidas não são postas em prática, é preciso mergulhar nas suas páginas de tempos em tempos. Depois (ou antes) de Machado, não se conhece nada melhor que tenhamos feito nos mil e novecentos.
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"Grande Sertão: Veredas" - Guimarães Rosa - 538 págs. - Nova Fronteira |
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O CONSELHEIRO TAMBÉM COME (E BEBE)
O “Da Fiorella” tem uma história. Começou com Dona Fiorella, que veio da Itália e que ganhou o restaurante do marido, com a condição de que só lhe preparasse pratos vegetarianos. Há 25 anos. O casal voltou para o seu país natal, mas a cozinheira Dona Nilda leva adiante a tradição italiana com um cardápio de mais de 130 pratos. Hoje quem comanda o “Da Fiorella” é a família Consiglio, há mais de 7 anos. Toda noite, salvo as segundas-feiras, é possível contar com a simpatia e a atenção do jovem casal Humberto e Patrícia (ou dos pais dele com quem mantêm a sociedade). Há meses, vivem o grande desafio da história do restaurante: inauguraram a sede nova (em Moema) e conciliaram a fama de pratos já consagrados com uma decoração e uma arquitetura mais modernas e mais adaptadas aos dias atuais. Pode-se dizer também que venceram: pois a antiga clientela segue fiel e as novas gerações têm tido o prazer de descobrir os segredos que se escondem dentro daquela casinha vermelha na rua Arapanés. As opções para o jantar são cheias de criatividade, mostrando que ninguém morre de fome numa cantina se não comer carne. Como entrada, sugere-se o “Antipasto Misto”, com pão italiano fresco e macio, destacando-se os saborosos patês de cenoura e berinjela. (Há também toda uma gama de saladas e de queijos variados.) Como prato principal, segue-se o irrecusável (para qualquer paladar) “Spaghetti Capricciosi”, com molho de alcaparras e azeitonas pretas. Sem falar em mais de uma centena de outras opções: “Ai Quattro Formaggi”, “Al Burro E Salvia”, “Al Gorgonzola”, “Verdi Forti”, Primavera” e “Vacanze” (este combinando a massa quente com uma salada de mussarela de búfala, tomate e manjericão). Como sobremesa, sugere-se as misturas de chocolates e sorvetes, como o “Segreto Di Donna”, ou alternativas mais leves como o “Papaya Dell’amazonas”. E, para acompanhar tudo isso, os caprichados drinks que o próprio Humberto prepara: alguns invenção dele mesmo, como a caipirinha com conhaque ou o anunciado “Sangue de Maria” (uma adaptação brasileira ao Bloody Mary). Vida longa ao “Da Fiorella”. E a nós, para que possamos sempre desfrutá-lo.
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Da Fiorella - Rua Arapanés, 995 - Tel.: 5051-9192 |
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MY ONLY FRIEND: THE END
Nada como um Francis Ford Coppola de vez em quando para nos lembrar o que é cinema de verdade. Apocalypse Now Redux estreou em época conturbada (final de ano), e já está relegado a umas poucas sessões noturnas e a algumas salas ditas “de arte”. Ainda assim, vale à pena insistir e abrir uma exceção para essa obra-prima. Claro, todos já vimos uma boa quantidade de produções cujo tema central é o Vietnã (a guerra), mas quando topamos com um mestre da sétima arte, tudo volta a ser como da primeira vez: cada take, cada seqüência, cada panorâmica é uma doce novidade. Approposito, é impressionante a progressão: Coppola principia pela tragicomédia e vai conduzindo o longa para a gravidade e para a densidade linearmente, sem solavancos. Aliás, é possível para qualquer leigo perceber como o cinema atual perdeu em continuidade: Apocalypse Now é tão extraordinariamente bem montado que fluímos dentro dele como o barco de Martin Sheen, rio acima, sem nos darmos conta de qualquer “emenda” ou “encaixe” – o tempo passa como na vida real. (Ao contrário dos videoclipes artificiais de hoje.) O elenco é de causar inveja a qualquer fita em qualquer tempo. Além do pai de Charlie Sheen (o supracitado Martin), encontramo-nos com um amalucado Robert Duvall, que conduz as batalhas como se jogasse fliperama, como um cowboy do século XX. Mais adiante uma ponta com Harrison Ford, ainda desconhecido e ainda imberbe (o filme é de 1979). E o clímax, óbvio, fica por conta de um dos mais belos homens da tela grande: Marlon Brando. Como sempre um gigante, roubando a cena mesmo quando congelado em foto. Para completar, as cores nunca foram tão vivas e o som, tão envolvente. É para ver e rever, antes que saia de cartaz.
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Apocalypse Now Redux |
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Julio Daio Borges
Editor |
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