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Quarta-feira, 23/1/2002
Digestivo nº 65

Julio Daio Borges

>>> POLÍCIA PARA QUEM PRECISA A classe política é como qualquer outra no Brasil: precisa ser atingida em suas fileiras, pela onda de banditismo, para finalmente declarar que a situação “passou dos limites”. Os cidadãos sabem que essa constatação é típica de quem acaba de acordar para a realidade – a mesma que se tornou rotina para os que não tem como fugir (dos grandes centros), ou estão esperando por uma bala perdida que categoricamente os convença a sair da cidade. O enredo, montado a partir da morte do prefeito Celso Daniel, é rico e tudo indica que vá render por meses no noticiário. Tem ingredientes ideológicos: PT versus Farb (aparentemente uma organização pouco articulada, no português, para planejar ações tão contundentes e precisas). A oposição vai deitar e rolar com a ineficiência de Geraldo Alckmin, evocando, inclusive, a tal “tolerância zero” (quando tem pré-candidato aí que, volta e meia, dormia com presos no Carandiru ou saía em manifestação pelos raptores de Abílio Diniz). Por outro lado, existe a indústria do seqüestro que, independentemente desse fato, cresce a olhos vistos. Eis alguns dos motivos: baixa probabilidade do transgressor ser preso (0,2%); real possibilidade de fuga (da prisão); popularização da prática entre criminosos “não-especializados”; diversificação das vítimas (inclusão de classes “não-altas”); diminuição do valor do resgate e até pagamento em parcelas (foi constatado); criação de hotéis-cativeiro (“famílias” que alugam cômodos para abrigar reféns). A população se defende: “Nem conto com a polícia, só com a proteção de Deus”; “Se o carro do prefeito era blindado e não resolveu nada, o que vai ser de nós, que precisamos andar a pé ou de ônibus?”; “Eu adoro a noite, não sou casado, mas não saio de casa. Isso é vida?”; “Um vizinho vigia o outro”; “O que eu posso esperar? Pode acontecer qualquer coisa comigo”; “O cachorro foi o melhor alarme que coloquei em casa até hoje”. Por mais cômico que soe, mesmo sem recursos, o povo consegue ser mais inventivo e pragmático que seus representantes. Como no caso do apagão, as medidas são tomadas na última hora. (Approposito: outro dia faltou luz...)
>>> Site da organização traz críticas ao PT
 
>>> VOCÊ VAI SER GRANDE O espírito de Raphael Rabello está vivo. Conforme acreditava Aristóteles, não existe alma imortal, mas o intelecto, de alguma forma, volta. É o que atesta o CD do genial violonista gaúcho, Yamandú Costa, também vencedor do Prêmio Visa do ano passado. Quase não dá para acreditar que tanta música, tamanha musicalidade, possam brotar dessa nascente: um rapaz charmosamente descabelado de vinte e um anos. Quem o viu em suas raras performances, ou em programas na alta madrugada na tevê, não tem dúvida de que ele domine o violão como, no Brasil, uma meia dúzia dominou. Aliás, reza a lenda que Paco de Lucia, o célebre instrumentista espanhol, em uma de suas passagens pelo País, ouviu Raphael Rabello tocar e decretou: "Você é o melhor do mundo." Se houvesse visto Yamandú Costa, teria dito a mesma coisa. Produção de Maurício Carrilho, o álbum intercala temas do próprio artista (um compositor de mão cheia) com grandes peças do choro e da música gaúcha. Principia por "Brejeira", de Ernesto Nazareth, com Yamandú solo, mostrando que sabe manejar o ritmo com bem entende. Logo em seguida, "Mariana", de sua autoria, acompanhado por executantes tão brilhantes quanto Toninho Carrasqueira (à flauta), Cristiano Alves (à clarineta) e Ricardo Amado (ao violino). Essa formação, às vezes, se completa com o próprio Maurício Carrilho (ao violão), Luciana Rabello (ao cavaquinho) e Silvério Pontes (ao trompete), dentre outros. Ainda da lavra de Yamandú, o ouvinte encontra "Chamamé" (um lamento grave, que acelera tropeiro), "Chorando por Amizade" (um clássico choro, evocando Guinga?), "Bahia X Grêmio" (um duelo com Armandinho, ao bandolim), "Cristal" (marcada e de fraseado curto, como um tango) e "Habanera" (lenta e reflexiva, como a brisa marítima). Entre os nomes laureados com interpretações de Yamandú Costa, estão Rubens Leal Brito, Angelino e Bonfiglio de Oliveira, Adaberto de Souza e, claro, Raphael Rabello. Os brasileiros - embora surdos para os verdadeiros sons de sua terra - continuam abençoados por talentos que descem dos céus.
>>> Yamandú Costa
 
>>> FASTER, BIGGER AND BETTER O suplemento da Business Week, no jornal Valor, acaba de publicar uma reportagem de capa sobre a situação da ex-superpoderosa Cisco Systems, a corporação que, um dia, chegou a ser a mais valiosa do planeta. Trata-se de um quase dossiê investigativo, esmiuçando as manobras contábeis e o delírio coletivo que permitiu à empresa, por 43 meses consecutivos, superar as expectativas de Wall Street, atingindo um valor de mercado de US$ 430 bilhões e taxas de crescimento de 70% ao ano. Um dos ingredientes da fórmula mágica da Cisco, em plena “bolha”, envolvia a aquisição de pequenas e promissoras organizações de tecnologia, que já haviam arcado com custos e riscos de desenvolvimento. Nessa brincadeira, foram empenhados US$ 5,4 bilhões nos últimos 5 anos, inclusive em situações absurdas onde o dispêndio por funcionário (da organização adquirida) beirava os US$ 24 milhões. Desnecessário acrescentar que, tão logo o negócio era fechado, muitos dos “novos talentos” pulavam fora, deixando a Cisco a ver navios. Para não assustar seus acionistas com cifras desse porte, a megaempresa não registrava, em seus livros, os bilhões envolvendo “fusões e aquisições”, lançando-os como “pesquisa e desenvolvimento” – o que, no exercício subseqüente, resultaria em lucros ainda maiores, produzidos “a partir do nada” (leia-se a custo zero). E isso é só a ponta do iceberg. A cada fim de trimestre, para não frustrar as expectativas de Wall Street, caminhões eram carregados com o máximo possível de mercadorias que, contabilmente, eram registradas como “vendidas” – a fim de alcançar, até a meia-noite, o faturamento desejado. Não obstante, muita gente mantém a mesma fé na Cisco. A começar pelo CEO, no cargo há 7 anos, John Chambers. E a terminar pelo acionista (as ações do ex-gigante da tecnologia – apesar de tudo – equivalem a 95 vezes o lucro estimado para 2002). É o que se chama jogar alto. E pensar que o “nosso problema” é a Argentina.
>>> Cisco: o que há, além daquele barulho todo
 
>>> FEIJÃO PRETO COM PAIO: DAQUI NÃO SAIO Era uma vez, em 1946, Affonso Paulillo, o Bolinha, e seu amigo, Zé Gordinho, que, motoristas de táxi, resolveram arrendar um boteco na avenida Cidade Jardim. A sociedade não prosperou. Sobrou para Bolinha que, arregaçando as mangas, resolveu transformar o local em pizzaria. Em 1952, porém, ele decidiu comemorar uma vitória no futebol com uma feijoada. Foi um sucesso. Tanto que Bolinha se sentiu obrigado a incluí-la no cardápio, às quartas e aos sábados, convertendo-a em prato diário, a partir de 1976, por sugestão de Caio Pompeu de Toledo (então secretário municipal de turismo). Hoje o restaurante segue sob a direção da família Paulillo: José Orlando e Paulo Affonso, ambos filhos de Bolinha (já falecido). Carne seca, costela, pé, rabo, orelha e lombo de porco; paio, lingüiça portuguesa, língua, bacon, feijão preto; cebola, alho, louro e laranja. É de se perguntar o que a geração light-diet vai fazer da feijoada. (Uma heresia para quem segue à risca os mandamentos da “tabela de calorias”.) Não por acaso, já foi incluída no cardápio do Bolinha, uma versão “magra” (sem orelha, pé e rabo). Em pleno século XXI, deliciar-se com essa iguaria, mais que um ato de resistência, é passar por um dos últimos rituais à brasileira, na metrópole. Desde o manobrista até os garçons, que trazem, uma a uma, as guarnições: arroz, couve, banana; mandioca, bacon, torresmo; bisteca, farinha e molho apimentado. Sem falar na batida de limão, que vai derrubar os mais esfaimados, no meio da refeição. O Bolinha segue, portanto, a todo vapor. Da primeira feijoada, a gente nunca esquece. Nem da última.
>>> Bolinha - Av. Cidade Jardim, 53 - Tel.: 3061-2010
 
>>> TO RULE THE WORLD Que jovem-bruxo, que nada. A grande aventura cinematográfica deste início de século é o Senhor dos Anéis. Ninguém deve se assustar com os efeitos especiais, nem com as três horas de duração. O mundo criado por J.R.R. Tolkien, e transposto para a tela grande por Peter Jackson, é belo e envolvente. Há tempos não se via heróis realmente cativantes e combates pelos quais o espectador poderia se empenhar. Finalmente uma trilogia infanto-juvenil à altura de suas predecessoras. Recheada com temas muito caros aos adultos também: a disputa pelo poder; a tentações da carne; a finitude da vida; a fraternidade entre os povos; o respeito às origens; o sentimento de impotência. Os dramas do Senhor dos Anéis são dramas humanos; os protagonistas não são o protótipo do “herói infalível”: sofrem baixas e, mesmo habitando um universo inventado, emocionam a platéia. A história por detrás do filme é também de se admirar. Peter Jackson, o diretor, concentrou-se com o elenco principal por oito meses na Nova Zelândia e completou as três partes ao mesmo tempo. Elijah Wood, o hobbit Frodo, que conduz a cena, antes da saga, não era mais que um ator de 20 anos, tendo se juntado a quatro amigos que, fantasiados numa floresta, conseguiram impressionar a Jackson na fase de testes. Liv Tyler, anteriormente desprezada pelos fanáticos do livro, hoje é solicitada em Hollywood para reproduzir falas em “quenya”, a linguagem dos elfos, forjada por Tolkien. Se o argumento do Senhor dos Anéis é forte e consistente, suas paisagens, imagens e cores são de provocar inveja em toda e qualquer superprodução que se preze. A câmera realiza vôos e percorre ângulos como num balé, embriagando até o mais ferrenho detrator da estética. Os cartões postais já valem a incursão pela Terra Média. Felizmente, há mais. No ano que vem, inclusive.
>>> The Lord of the Rings
 
 
>>> Julio Daio Borges
Editor
 

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