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Quarta-feira, 13/2/2002
Digestivo nº 68

Julio Daio Borges

>>> CABEÇA DE MOSQUITO A RABO DE LEÃO Cobras criadas, de Luiz Maklouf Carvalho. Segundo Millôr Fernandes, um livro magnífico. Bem-vindo ao mundo de David Nasser. Muito provavelmente, o maior repórter que o Brasil já viu. Dono de um estilo fantasioso que contaminou gerações. Um dos homens que forjou a revista O Cruzeiro e que consagrou o jornalismo da verossimilhança. Passando a léguas da verdade. Quando não, mentindo contumazmente. Comercializando a profissão como em nenhuma outra época possivelmente. Pondo em prática as lições de Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo, o Chatô, que construiu um império vendendo jornais e revistas. E tráfico de influência, obviamente. E muitas outras coisas, impublicáveis. Um sujeito, de acordo com o testemunho dos próprios filhos, sem caráter, amoral, macunaímico. Alguém acima do bem e do mal, dizem os amigos. Um gângster, dizem os inimigos. A quem Fernando Morais dedicou uma bela biografia: Chatô, o Rei do Brasil. O que não é o caso de Luiz Maklouf Carvalho. Em Cobras criadas, não esconde a decepção para com a figura de David Nasser. Inaugura um gênero até então inusitado: o da “biografia constrangida”. Ainda assim, extremamente necessária. Preenchendo uma lacuna de, pelo menos, três décadas de jornalismo. Documentando os feitos de gente que – independentemente de julgamentos de valor (ainda mais a posteriori) – escreveu, à sua maneira, a história do País. Impossível compreender a Era Vargas, os Anos JK e os Anos de Chumbo sem eles. São quase 600 páginas. Dos primeiros passos do Turco, com uma imaginação de Balzac, que junto a Jean Manzon revolucionou algo que antes nem havia, até a implosão dos Diários Associados, pelas mãos dos mesmos nomes que supostamente ajudaram a construí-los, causando engulhos ao leitor. Qualquer leitor. Cobras criadas, de Luiz Maklouf Carvalho, é, portanto, uma experiência, mais que um livro. Imprescindível. Ao menos, para quem quer compreender o mundo em que vive. Ou o mar de lama, se preferirem.
>>> Cobras criadas - Luiz Maklouf Carvalho - 599 págs. - Ed. Senac
 
>>> PÉROLA DE SUPERFÍCIE IRREGULAR Barroco, aprendemos com a professora de literatura, é sinônimo de conflito. Oposição entre corpo e alma, céu e terra, carne e espírito. É também (diz a mesma mestra), o exagerado, o excessivo, o desmedido. Portanto, o espetáculo “Barroco!”, de Marcelo Fagerlande e Alberto Renault, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil, poderia nos sugerir uma performance carregada e agressiva. Mas não é nada disso. O “barroco” do presente recital, que agrupa compositores desse período da História, de acordo às “Paixões da Alma” de Descartes, serve apenas de mote para compor uma apresentação agradável e revigorante. Tanto é verdade, que a composição do cenário, em branco, com formas geométricas, alternando uma ou outra cor bem básica, transmite um preciso senso de harmonia e serenidade (contrastando imensamente com o centro da cidade, do lado de fora, por exemplo; esse, sim, barroco até não poder mais). O programa se compõe de árias de Rameau, Purcell, Monteverdi, Haendel e Boismortier – surpreendentemente bem interpretadas por sopranos, tenores e baixos brasileiros. O público sabe se comportar e o teatro é suficientemente pequeno – o que garante uma audição excelente e uma visão que permite acompanhar, de qualquer assento, a expressividade dos nomes no palco. A formação – de violino, viola, violoncelo, flauta, oboé, percussão, tiorba e cravo – opta pela discrição e pelas feições graves (sofrendo inclusive intervenções cênicas, mas sem se abalar). A execução é muito eficiente e o espectador se sente transportado para tempos imemoriais. A higiene mental compensa um dia inteiro de trabalho, cheio de atribulações. E a grande música, bem, essa está entre as melhores coisas que o homem soube realizar.
>>> Barroco!
 
>>> PORISSO E PORAQUILO A Editora Globo, numa iniciativa inédita, está relançando toda a obra de poesia, ficção, teatro e crônica da controversa escritora Hilda Hilst. Para inaugurar a bela coleção (com títulos em relevo, fotos esplendorosas da Casa do Sol, num formato leve e elegante), Alcir Pécora, o organizador, escolheu duas produções bastante significativas da autora: “Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão” (de 1974) e “A Obscena Senhora D” (de 1982). A primeira compreende um conjunto de poemas que, apesar da introdução ao volume (que indica o contrário), evocam as cantigas de amigo, presentes na escrita feminina ou naquela feita para mulheres. Túlio é o grande inspirador do “eu” que se esconde por detrás dos versos. A estrutura, bastante livre e despretensiosa, apóia-se basicamente no coloquialismo, na palavra-viva, conferindo à poética um traço, digamos, mais “mundano” (no melhor sentido do termo). Hilda Hilst procurou, constantemente, dessacralizar a vida e os atos pretensamente elevados do homem – feito que atingiu, e que lhe garantiu a admiração de sujeitos como um certo Carlos Drummond de Andrade. Já “A Obscena Senhora D” aborda, contundentemente, o tema do isolamento, da solidão e da afirmação da personalidade perante o mundo. Pauta-se, certamente, no exílio voluntário de Hilda Hilst, na mudança para a sua chácara em Campinas, onde desde 1966 reside. A protagonista destila reminiscências que envolvem: “invasão de privacidade” (para usar uma expressão atual) por parte de seus vizinhos; registros que misturam alucinação e memória; e a consagração solene do “amor carnal” (eternamente renegado ao sexo feminino, mas que “D” toma como uma bandeira a ser defendida). Os caminhos são tortuosos e, às vezes, cutucam trevas, que preferimos não enxergar. Eis o grande mérito de Hilda Hilst: por meio da obscenidade, incutir-nos lucidez, como ela própria profetizou.
>>> Hilda Hilst
 
>>> O CONSELHEIRO TAMBÉM COME (E BEBE) O “All Seasons” fica no Paulista Plaza, o primeiro hotel brasileiro afiliado à rede Golden Tulip. Localizado na Alameda Santos, o restaurante carrega a assinatura do prestigiado chef Christophe Besse – um suíço, formado na Escola de Cozinheiros de Sion, que desembarcou no Brasil em 1987 para trabalhar no “Le Canton” (de Teresópolis), e que marcou presença na Argentina, no México e na Venezuela, através da cadeia Sheraton, pela qual passou antes de se estabelecer no hoje “All Seasons by Christophe Besse”. Além de chef executivo, é também diretor de alimentos e bebidas, comandando um time imbatível de profissionais - desde maîtres e garçons até um sommelier exclusivo, um barman especializado em coquetéis, e um chef pâtissier, que veio direto de Marseille, tendo se graduado no Lycée Hôtelier de Nice, o francês Marc Gonzalez. Como se não bastasse, Besse fundou, junto a nomes como Emmanuel Bassoleil e Luciano Boseggia, a Associação Brasileira de Alta Gastronomia. Só pela equipe e pelo currículo do anfitrião, a experiência de se desfrutar um almoço, jantar, café da manhã, brunch ou happy hour, no “All Seasons”, já seria incomparável. Conforme o próprio nome indica, o cardápio muda de acordo à época do ano, embora Besse considere com sabedoria que, no Brasil, as estações se resumam a tão somente duas: a de frio e a de calor. Neste momento, as especialidades são as de primavera-verão: o pato defumado, com melão em geléia e tartare de tomate (como entrada); o risoto de lula ao suco de laranja e aspargos, ou a codorna recheada com pêra e uva passa ao molho de canela (como prato principal); e o duo de chocolate e cupuaçu com salada de manga (como sobremesa). Tudo apresentado e servido de maneira impecável, graças à delicadeza ímpar do staff. É por gente assim, que podemos colocar São Paulo entre as capitais mundiais de alta gastronomia. Ir ao “All Seasons”, portanto, é, antes de tudo, render uma homenagem. E retribuir uma distinção internacionalmente conferida à nossa cidade.
>>> All Seasons by Christophe Besse - Al. Santos, 85 - Tel.: 3177-0436
 
>>> ACONTECIMENTO DE PARTICULAR VIBRAÇÃO O Canal Brasil levou ao ar o documentário “Em Foco - Cinemateca Brasileira”, de Kiko Mollica, sobre os 50 anos da mais importante instituição dedicada ao cinema brasileiro. Para quem cresceu ouvindo as chorumelas das viúvas do Cinema Novo (durante anos subsidiadas pela Embrafilme), praguejando contra o governo Collor e dando vivas à chamada Lei do Audiovisual, imagina que os tempos anteriores a estes (de agora) foram áureos para a telona, no Brasil. Acontece que não foram melhores. Talvez até muito piores. De modo que os companheiros não tão geniais de Glauber Rocha têm as suas pitangas para chorar, mas sem Paulo Emílio Salles Gomes e Francisco Luiz de Almeida Salles, provavelmente passariam incólumes, não importando quais idéias tivessem na cabeça ou quais câmeras tivessem na mão. A “Cinemateca Brasileira” nasceu em agosto de 1940, como “Clube de Cinema de São Paulo”. A primeira tarefa (árdua) de seus fundadores, os dois Salles, foi provar, por “a + b”, que cinema era arte. Em seguida, conseguir uma sede. Uma novela que se estendeu por décadas, com um acervo que se ganhou e que se perdeu por causa de três incêndios. Paulo Emílio morreu de enfarte em 1977, quando já enfrentava as batalhas sozinho. (Detalhe: sem ver seu sonho realizado.) Por incrível que pareça, no entanto, seus pupilos, alunos da cadeira de cinema que ele ajudou a fundar na Universidade de São Paulo, levaram a coisa adiante, até transformar a “Cinemateca” em órgão federal. Em 1988, conquistam a sede definitiva, contando com a simpatia do então prefeito Jânio Quadros. A partir de 1993, o acervo (ou o que restou dele) ganha uma sala climatizada e um laboratório especial, para restauração. Hoje são mais de 150 mil rolos e mais de 30 mil títulos. Paulo Emílio e seus ideais, enfim, triunfaram. E por mais que permaneçam as querelas, em torno do real valor da sétima arte à brasileira, o trabalho da “Cinemateca” é, sem sombra de dúvida, de se admirar.
>>> Cinemateca Brasileira
 
 
>>> Julio Daio Borges
Editor
 

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