Quarta-feira,
13/3/2002
Digestivo nº 72
Julio
Daio Borges
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ZEITGEIST
Nem só de controvérsias vive a Bienal de São Paulo. Ainda que abundem as polêmicas em torno do conceito, dos artistas, dos trabalhos e até mesmo do cartaz, de dois em dois anos, o evento ocorre e continua, ao lado da Bienal de Veneza, um dos três mais relevantes no mundo das artes contemporâneas. Desta vez, a 25ª, a exposição tem como tema as chamadas "Iconografias Metropolitanas". Segundo o curador-geral, o alemão Alfons Hug, é preciso atentar para o fato de que, desde o século XX, os grandes centros urbanos têm se convertido na influência mais determinante no "fazer artístico". Essa constatação, apenas, bastaria para que se orientasse todo o evento nesse sentido. Para reforçar esse princípio unificador, porém, Hug dedicou um dos cinco segmentos da 25ª Bienal a 12 cidades que, na sua concepção, representam o fenômeno: Nova York, Caracas, Berlim, Londres, Moscou, Johannesburgo, Tóquio, Istanbul, São Paulo, Sydney, Pequim e a nomeada "12ª Cidade" (inspirada na Utopia de Morus e nas Cidades Invisíveis de Calvino, contemplando artistas de todos os continentes). O Núcleo Brasileiro (outro dos segmentos), a cargo do curador Agnaldo Farias, privilegia, segundo o próprio insiste, a qualidade, embora a seleção tenha atentado para a questão geográfica e tenha preterido a participação de artistas constantemente requisitados desde 1990. Outra singularidade presente nesta edição refere-se à supressão dos conhecidos "Nucleos Históricos". O presidente, Carlos Bratke, reafirma, nessa escolha, o caráter "educativo" e não mais "museológico" da Bienal. Suas intenções compreendem ainda um esforço de "ação social", procurando, por meio de patricínios, baixar o preço dos ingressos e promover até, quem sabe, acesso gratuito. As portas serão abertas daqui a alguns dias e as críticas virão (como já estão vindo). Qualquer que seja o julgamento, contudo, é imprescindível que se reconheça a seriedade das intenções e na condução do projeto. Até porque, afinal, independentemente dos resultados, arte e intriga, como disse Millôr Fernandes, não costumam andar separadas.
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25ª Bienal de São Paulo - Pavilhão da Bienal - Parque do Ibirapuera |
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O MAR E O LAGO
Notas em revistas e jornais informam que Mário Lago está entre a vida e a morte. Qual a imagem que se guarda dele? Sem dúvida, a do ator maduro, transbordando serenidade, em conselhos seculares e sabedoria decantada. Sem falar na meia dúzia de paixões nostálgicas, nuns quantos brios exaltados, reavivados quando convém, pelo sopro do tempo. Aliás, dentro desse tema, mereceu destaque seu relato de sobrevivente, atravessando com altivez os “anos de chumbo”. (Apenas uma pequena concessão, de um artista de mais 90 anos, a um dos assuntos mais caros à imprensa contemporânea.) O que interessa, talvez, não seja nada disso. A Revivendo recentemente lançou uma compilação de suas composições, nestas nove décadas. Um Mário Lago autor desponta para a ignorância musical reinante. Quem o conhecia apenas de “Ai, que saudades da Amélia” (a tal “mulher de verdade”), vai encantar-se como ele na voz de Mário Reis (“Menina, eu sei de uma coisa”), Carmen Miranda (“Sambista da Cinelândia”) e Orlando Silva (“Mentirosa” e “Número Um”). Compositor de boa lavra, teve como parceiros Custódio Mesquita, Ataulfo Alves e Benedito Lacerda. As marchas de carnaval, a alegria prafrentex, não se encaixam muito bem no perfil estabelecido (o do senhor de voz grave, olhar estudado e gestos calculados, contracenando em tramas de tevê). Para aqueles que preparam seu necrológico, um recado sutil dado por Francisco Alves: “Quem tem você que se meter / Na minha vida particular // Se eu tenho um amor / Se eu tenho dois / Se eu tenho três / É porque posso arranjar // Que tem você se eu vivo alegre / E se agora sou feliz?”. [Ah, se a juventude pudesse... como nesses dias pôde... a trilha sonora – de agora – seria bem outra.]
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Mário Lago - 90 anos |
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COISA DE ARTISTAS
Cada um entrou, fez com ela o que quis, depois saiu. Parece a história da Maria Madalena? Parece a história da Terra Brasilis? Parece... mas não é. Trata-se da história da televisão brasileira. Depois de 50 anos de aviltamento, esboça-se uma reação orquestrada – por parte da classe artística –, contra a proliferação dos “reality shows”, essa excrescência. De Gianni Ratto a Rita Lee, de Marília Pêra a Raul Cortez, de Marcos Mion a Sílvio de Abreu, de repente, todo mundo resolveu se indignar diante de um microfone (quando ele surge): porque “assim não dá”; porque “isso é um absurdo”; porque “onde é que nós vamos parar?”; porque “a que nível chegamos?”. Tudo bem. De fato, ninguém discute a real crise do meio televisivo. Acontece porém que a “exploração do corpo da mulher” sempre esteve aí (desde as chacretes, pelo menos); os estupidificantes “programas de auditório” sempre estiveram aí (desde Flávio Cavalcanti, ao menos); e a teledramaturgia de “quinta categoria” sempre esteve aí, do mesmo jeitinho (desde a xaropada até a canastrice, nem é preciso citar nomes). Por que então – só agora – pisaram no calo de tanta gente que, durante tanto tempo, sobreviveu às custas do gosto médio (ou baixo) da telinha? O raciocínio é simples: com a explosão dos “big brothers” da vida, ficou provado que essa longa caminhada (na verdade, um cinqüentenário de traseiros, animadores e dramalhões) resultou numa fórmula que hoje prescinde de certos recursos obsoletos, tais como: o “ator”, o “diretor”, o “roteiro”, e – no auge da evolução – até mesmo o “público”. Assim, de uma hora para outra, todos aqueles “monstros sagrados” (que bem conhecemos) se viram na iminência de perder o emprego, e se lançaram numa cruzada para restaurar antigos “padrões de qualidade”. Por mais que tentem, contudo, estão velhos e sem energia; e essa onda, de voyeurismo, é mundial e irreversível. A tevê (ou a TV, como dizem) está destinada aos mascates; será tomada como a Praça da Sé. Até porque as novas gerações de cérebros, há muito, desistiram das redes de sinal aberto. É caso perdido. Alguém tem de avisar os dinossauros: acabou a mamata.
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A programação de mal a pior |
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O CONSELHEIRO TAMBÉM COME (E BEBE)
Sabor e arte. A combinação já se tornou tão conhecida, e indevidamente utilizada, que quase não tem efeito sobre os ouvidos do respeitável público. Acontece que o “Café Santa Bárbara” chegou justamente para redimir essa expressão, devolvendo-lhe o real significado e a força original. Em primeiro lugar, porque oferece sabor de verdade, graças às criações da proprietária, Lourdina Jean Rabieh, e da chef, Gabriela Lazzuri. Em segundo lugar, porque apresenta, expõe e respira arte, com a autoridade de quem conviveu décadas com Renato Magalhães Gouveia (hoje no comando do Masp e da Fundação Oscar Americano, dentre outras atividades), e de quem passou um ano em imersão cursando, almoçando e jantando arte na Christie’s de Londres. Estamos falando de Lourdina Jean Rabieh, que responde a esse chamado desde os 17 anos, quando desembarcou direto do Líbano, tendo passado os mais de 20 anos seguintes formando-se em galerias, mostras e museus no Brasil e no mundo. Se existe um estabelecimento que reflete a alma e as aspirações de quem o monta e administra, esse estabelecimento é o Santa Bárbara. Lourdina orna as paredes com trabalhos de artistas contemporâneos, molduras do século XIX, e artefatos típicos da cultura brasileira – muitos deles oriundos de sua coleção particular. A cozinha tem como principal inspiração a comida mediterrânea, dadas as origens da família Rabieh, acrescentando-lhe uma ou outra especialidade libanesa. Prima, portanto, pelas opções leves e pelas porções módicas. Sugere-se, como entrada, o carpaccio de peru defumado, coberto com alcachofras; ou o medalhão de berinjela assada, recheada com frango. Como prato principal, o filé de linguado, grelhado ao molho de gergelim; ou o risoto de frutos do mar. E, para fechar, como sobremesa, o sorvete de creme com tâmaras e damascos. Santa Bárbara, padroeira de quem nasceu no dia 4 de dezembro, deve estar orgulhosa. Quem não estaria?
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Café Santa Bárbara - Rua Tutóia, 964 - Tels.: 3884-1133 e 3889-9613 |
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PLAY IT AGAIN, SAM
Ir ao cinema hoje em dia é, quase que invariavelmente, ir de encontro à violência. Não se sabe se por pressões comerciais escusas, mas a componente agressiva e chocante está sempre lá, para dar aquele toque de irrealismo ou absurdo. Até mesmo no último filme dos Irmãos Cohen, os maiores estetas da telona na atualidade. “O Homem Que Não Estava Lá” (título traduzido literalmente do inglês) revive a personagem humphrey-bogartiana, que habita o inconsciente coletivo de dez entre dez conhecedores de “As Time Goes By” (muito mais a canção do que “Casablanca”, o longa com Ingrid Bergman). Billy Bob Thornton, que faz o protagonista, Ed Crane, e que já vinha de uma curva ascendente desde “Um Plano Simples” (1998) e “Vida Bandida” (2001), simplesmente arrebenta na interpretação do pacato barbeiro que escondia tenebrosos segredos. Os Cohen são daquele tipo de cineasta que adora levantar o tapete da América e mostrar que, por baixo da aparente normalidade, geralmente se camuflam bestialidades horrendas. A tese é provada, no final. Mas não convém entrar em detalhes (eles já são suficientemente desagradáveis para quem assiste). Enfim. Ainda assim (ainda que a sucessão de sangue, lágrimas e indiferença nos empurre para fora da sala de cinema), o branco-e-preto, a fotografia e a trilha sonora vencem. Sublimemente. É preciso considerar “O Homem Que Não Estava Lá” como mera experiência plástica, privada de qualquer “mensagem” ou “sentido” (mesmo que o nosso cérebro insista em encontrar nela aquele “algo mais”, que justifica o todo). É como num videoclipe: a imagem pela imagem, subordinada ou não à música, e ao subtexto, pois a dupla continua afiada nas tiradas e nos pequenos e corriqueiros aforismos. Claro que pedir para ver “isso” e não ver “aquilo” – se estamos sempre acostumados a ver logo “tudo” –, não soa muito razoável, como pedido. De qualquer maneira, por mais má vontade que se tenha ao sair, ninguém vai negar que, pouca vezes, por exemplo, as sonatas de Beethoven foram tão bem “ilustradas”. Pois é. É mais ou menos por aí.
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The Man Who Wasn't There |
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>>> SUGESTÃO ESPECIAL DO CHEFE
O Digestivo Cultural aproveita a ocasião para agradecer citação honrosa feita por Daniel Piza, na sua coluna dominical do Estadão, nesta semana, no dia 10 de março de 2002.
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Julio Daio Borges
Editor |
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