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Quarta-feira, 17/7/2002
Digestivo nº 90

Julio Daio Borges

>>> ALL YOU BASE ARE BELONG TO US Nem só de jornalismo vive a inteligência internética brasileira. Daniel Pádua, 22 anos, chamou a atenção de internautas de todo o mundo, por causa de uma grande idéia, direto de sua central em Minas Gerais, Belo Horizonte. Desenvolvendo um pequeno (mas potente) adendo aos chamados blogs, Daniel permitiu que "blogueiros" de todo o planeta se localizassem (e fossem localizados) por um critério meio fora de moda hoje em dia: a posição geográfica. De repente, o sujeito está atualizando seu site e pode ser cutucado pelo vizinho (no mundo real), que nem sabia que ele estava ali... logo ao lado. Daniel batizou sua ferramenta de "blogchalking" ("chalking" evocando o traçado de giz, os rastros dos andarilhos pela América do Norte de 1929). Graças a ela, qualquer mortal pode digitar algumas palavras mágicas em mecanismos de busca, como o Google, e encontrar internautas do outro lado da rua. Essa iniciativa reforça um dos aspectos mais significativos do que vem a ser a "internet": a tal formação de "comunidades". As pessoas estão se trombando em sites e portais (nesses menos), sem saber por quê, mas estão também começando a perceber que esses encontrões ("embora haja tanto desencontro nessa vida...") podem catapultar iniciativas sólidas, concretas, palpáveis... do "mundo real" (!). A internet ainda é hoje como um gigante adormecido, estabelecendo o diálogo, às vezes, entre surdos-mudos (ou, como se diz em Portugal, entre mudos-surdos). Saint-Exupéry escreveu que amar não é olhar um ao outro, mas sim olhar junto, na mesma direção. Os internautas contemporâneos parecem crianças, pegando o telefone, discando qualquer coisa, falando por acaso (aleatoriamente) com alguém interessante, mas sem construir um relacionamento sério ou começar um "movimento" (qual seja), que transcenda a rede elétrica, a aparelhagem e os circuitos. Quando essa gente crescer e amadurecer vai dominar o mundo, pois tem o mundo todo à disposição, "conectado", a seu favor. Não se sabe quando isso vai acontecer, mas que vai acontecer, vai - ainda que alguns dinossauros, em vias de extinção, insistam em dominar a Terra.
>>> O número um | Os Fluxos de Daniel Pádua | BlogChalking News | Metáfora
 
>>> ARDOR, FERVOR E MUITO APREÇO Quando se pensa no compositor de "Brasileirinho" (1949), a tendência é evocar épocas ancestrais (o início do século passado, por exemplo), ainda que Waldir Azevedo estivesse na área até há 22 anos (faleceu em 1980). Com a produção cuidadosa de Henrique Cazes, a Kuarup lança a coletânea "Sempre Waldir". A intenção do discípulo é, como sugere o encarte, mapear as influências a partir da música de Waldir Azevedo: Ademilde Fonseca e Chiquinho do Acordeon, em sua própria época (anos 50 e 60); Déo Rian e Zé da Velha, no choro dos anos 70; e, para fazer a amarração, Bruno Rian e o grupo Rabo de Lagartixa, nos dias de hoje. Como pode perceber até o ouvinte mais desavisado, e como também coloca Henrique Cazes, o que salta do cavaquinho do compositor são suas melodias ricas e cromáticas. Tudo bem, "Brasileirinho" se tornou circuito para os pilotos de instrumentos em alta velocidade, mas, tomando a obra em conjunto, fica evidente que a pressa e a agilidade no dedilhar nunca foram um fim (talvez nem mesmo um meio). Quem duvida que escute as interpretações cadenciadas e saborosas de Déo e Bruno Rian (em "Não há de ser nada", "Quitandinha" e até mesmo "Brasileirinho", que não poderia faltar); também o quase tango "Mágoas de cavaquinho", arrastado, juntando o mentor da coleção, Henrique Cazes, e o fabuloso Chiquinho do Acordeon; mais fabuloso ainda no baião "Delicado", em que está solo; até o cantar lamuriento (à la Aracy de Almeida) de Ademilde Fonseca (na clássica "Pedacinhos do Céu": [...]"E incluir neste chorinho / Entre beijos e carinhos / Pedacinhos lá do céu"[...]). Marcam igualmente presença os cavaquistas de primeira água: Márcio Almeida (em "Sentido") e Valmar Amorim (em "Cinema mudo" e "Você carinho e amor"). Este último inclusive apontado como o herdeiro mais próximo do mestre. No limite dos 45 minutos, o CD passa voando e - ao contrário dos arabescos e das firulas costumeiras da música instrumental - soa agradável e descomplicado, podendo ser tocado reiteradamente. Como o verdadeiro choro, aliás.
>>> Sempre Waldir - Seleção de Henrique Cazes - Kuarup
 
>>> ESTABELECER UM ESPAÇO FEMININO Carolina Ferraz alcançou o mainstream, estabelecendo-se no cast global e firmando-se como uma das belezas mais aclamadas do Brasil. Casando-se, para completar, com um dos publicitários mais bem sucedidos do País. De uns tempos para cá, porém, ocorreu-lhe contestar tudo isso. Primeiro, separando-se de Mário Cohen. Segundo, lançando-se em projetos arriscados e financiando iniciativas, no mínimo, não-convencionais. O público mais afeito a atos de alcance nacional vai logo pensar em sua ligação com Murilo Benício, desfeita há pouco, e no filme "Amores Possíveis" (um resultado desse casamento para a sétima arte). Escavando mais fundo, o espectador atento certamente irá se lembrar de "Mater Dei": o obscuro longa dos Irmãos Mainardi, com o qual a atriz inexplicavelmente simpatizou. E, desde a semana passada em São Paulo (antes no Rio), a peça "Selvagem como o vento", escrita por Tereza Freire e dirigida por Denise Stoklos. Nessa cruzada, Carolina Ferraz decidiu se reinventar. Só daqui a algum tempo vamos saber se conseguiu de fato. No teatro, não deixa por menos e encara um monólogo, lutando pela atenção do público aos gritos (literalmente). Encarna uma mulher abandonada (personagem que a crítica especializada adora odiar), tentando se reerguer e reafirmando a independência feminina no século XX. Nesse sentido, é reveladora a trinca de realizadoras por trás de "Selvagem como o vento": as já citadas autora e diretora, mais a iniciante Antonia Ratto, como assistente de direção. Quem referenda e certifica as quatro mulheres (contando a protagonista) é seu pai, Gianni Ratto, lenda viva do teatro brasileiro, assumindo desta vez a iluminação e o cenário. Vamos aos fatos: o texto é bom, a direção, segura, a atuação, suficiente e a ambientação, não mais que exata. O conjunto lembra os retratos que atualmente se tenta montar da "mulher moderna": Patrícia Melo e Fernanda Young (na roteirização), Deborah Bloch e Fernanda Torres (em frente às câmeras). Não é unânime, mas é emblemática, arrancando risos nervosos das feministas de plantão. Recomenda-se vivamente para dois grupos: o de mulheres solteiras e o de homens interessados nessa falsa convicção.
>>> Selvagem como o vento
 
>>> RECORTES DE PENSAMENTOS VISUAIS Há uma semana, está aberta, em forma de exposição, a "Coleção de fotografia do mam". São 100 obras, mais de 50 artistas, abarcando registros que vão de 1940 a 2002, acumulados pelo museu em mais de 20 anos de atividades. A fotografia, que herdou a tradição do retrato (diretamente da pintura), deve muito do seu desenvolvimento às técnicas apuradas no século XX e ao poder crescente da "imagem" (hoje um dos testemunhos mais verazes de que se tem notícia). É o que se confirma também na exposição, que parte das "vintage prints", atravessando experiências com luz, sombra, foco (de acordo à perícia do fotografo), desembocando nas pretensões do fotojornalismo, comprometido até a medula com a temática social, dando voz aos "excluídos". O clamor da realidade (instantâneos da urbe, composições com meninos de rua), não é, no entanto, o que mais chama a atenção (afinal trata-se de tema recorrente, consumido no dia-a-dia). Afirma-se - para a surpresa dos circunstantes - a beleza estética (numa peça de Arthur Omar, por exemplo). A aridez e o denuncismo de um Sebastião Salgado (que não está na mostra, mas que rodou o mundo) instalou-se tão fortemente na retina do espectador, que este, sempre que possível, refugia-se no colorido e no esplendor das saudosas formas naturais (clássicas?). Nesse sentido, é um alívio encontrar trabalhos como os de German Lorca, Marcos Piffer e Eduardo Muylaert, quase humanistas, na sua busca pelas paisagens (por quê não?) e pelo lirismo do homem comum. Ainda nessa linha, é representativo o retrato do pintor Francis Bacon, em seu ateliê, feito por Carlos Freire em 1977. No caos de pincéis, tintas e materiais abandonados, ele parece reafirmar a necessidade de se produzir o belo (qual seja). O público, é certo, não reclamaria se a arte atual também perseguisse esse objetivo.
>>> Coleção de fotografia do mam
 
>>> A VISÃO CERTA O que têm em comum José Saramago, Hermeto Pascoal e Win Wenders? Aparentemente nada, mas João Jardim e Walter Carvalho colheram seus depoimentos (entre tantos outros) para montar o documentário "Janela da Alma". São pouco mais de 70 minutos de colagens, trechos de perguntas e respostas, discutindo o ato de ver, olhar, enxergar - suas limitações, extrapolações e falhas. Interessante notar como essa vertente vem se estabelecendo no cinema brasileiro atual, na medida exata de um "gênero": não existem grandes desafios em termos de sétima arte, apenas uma habilidade especial para montar um "discurso", a partir de diferentes visões de mundo, como numa reportagem. Depois de décadas de inércia, frente à televisão, o público já parece "formatado", disposto a encarar e a desfrutar esse tipo de "pacote" - apreendendo, reagindo e posteriormente refletindo sobre as idéias ali apresentadas. Ou seja: ninguém precisa ser um Glauber Rocha para entender quando Saramago compara os infinitos canais de tevê a cabo aos supostamente infinitos periódicos os quais poderia assinar; nem precisa ser um Nelson Pereira dos Santos para entender quando Hermeto conta da sua vesguice: de como ela lhe permitiu, durante a adolescência, paquerar três ou quatro meninas ao mesmo tempo; muito menos precisa ser um Arnaldo Jabor, para entender quando Wenders explica sua necessidade de enxergar dentro de um enquadramento (framework), sendo-lhe impossível viver sem óculos. Em resumo: o filme não é, em nenhum momento, específico, técnico, hermético, de alcance limitado; é, ao contrário, simples, direto, claro, revolvendo em temas universais, da vida como ela é, para crianças e adultos, dos 8 aos 80 anos. O espectador não é obrigado a saber que Saramago é escritor, que Hermeto é músico e que Wenders é cineasta - pouco importa. "Janela da Alma" será desfrutado, do mesmo jeito, por sábios e ignorantes. Mas o que isso pode significar a longo prazo? Ninguém sabe. A curto pode, no entanto, significar que os nossos homens de cinema conseguiram, finalmente, se fazer entender pela massa.
>>> Janela da Alma
 
>>> DIGESTIVO CULTURAL NA REVISTA GEEK

A revista Geek, em sua edição de julho, republica o artigo "A internet e o fim do no.", de autoria de Julio Daio Borges, Editor do Digestivo Cultural, incluindo um post scriptum sobre o advento do no minimo. Leia Mais

 
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Editor
 

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