Quarta-feira,
31/7/2002
Digestivo nº 92
Julio
Daio Borges
>>>
BABY BOOMERS
É um paradoxo. As telecomunicações evoluíram tremendamente, mas as pessoas se afastaram como nunca. Quanto mais podemos nos comunicar, mais relações construiremos (em termos de número). Inutilmente, porém. A superficialidade tende a ser também crescente. Alimentando esse ciclo, na insatisfação dos contatos rasos e imediatos, procuraremos ainda mais seres humanos - na esperança vã de aprofundar alguma coisa. Mas, novamente, a "quantidade" prevaleçará sobre a "qualidade", e nos sentiremos, no fim das contas, ainda mais sozinhos e vazios. Qual a solução? Não há nenhuma à vista, por enquanto. "Carta Capital", através de uma matéria do "The Observer", noticia a onda de luxúria que invade Nova York depois do 11 de setembro: no desespero de se sentirem vivos e "funcionando", os nova-iorquinos se lançaram ao sexo, mesmo que caça-níqueis, pois foi a única resposta contundente que encontraram para a ameaça de morte iminente. Como no paradoxo dos relacionamentos que não se bastam, embarcaram numa moda de procurar mais e mais parceiros, no sonho (sempre frustrado) de uma existência plena. A revista conta que esse quadro costuma se repetir em tempos de guerra: a geração pós-1945, os filhos do Vietnã e as criancinhas encomendadas graças ao conflito da Coréia, provocaram saltos na taxa de natalidade dos Estados Unidos e do mundo. Na Big Apple, quase um ano depois do atentado ao World Trade Center, os hospitais já registram um aumento de 15% a 25% nos nascimentos (ainda que as estatísticas não sejam precisas). No Brasil, que grosso modo não chegou nem na era dos contraceptivos, vive a síndrome maníaco-depressiva das ligações intermitentes aqueles que habitam as metrópoles, invadidas pelas "teles" e pela parafernália tecnológica de "afastar quem está perto" e "aproximar quem está longe". Quem sabe seja um problema para o "homem cordial" resolver, embora a "cordialidade" do brasileiro hoje passe longe, tendo sido abandonada em algum ponto.
|
|
>>>
New York, new hedonists | Sex in a time of terror |
|
>>>
COMPANHEIRO DILETO
Depois de celebrar o centenário do nascimento (em 1998), a Revivendo comemora o cinqüentenário da morte do artista que inaugurou seu catálogo: Francisco Alves. Dono da discografia mais farta da música brasileira em 78 rotações, espraiou-se por tantos ritmos e estilos que foi consagrado como o "Rei da Voz". A efeméride mereceu uma caixa com 4 CDs (92 faixas) categorizando o "velho Chico" justamente entre o "Seresteiro", o "Sambista", o "Carnavalesco" e o intérprete de "Grandes Versões". O encarte ainda conta que Francisco Alves, filho de português de bar, teve como modelo Vicente "O Ébrio" Celestino, embora sua grande chance tenha surgido graças a um convite de José Barbosa da Silva, o Sinhô. Nestes tempos pós-bossa nova, os registros de cantores "com voz" remetem a um Brasil antigo, onde reinavam o rádio, a influência operística e do bel canto nas primeiras gravações. Os erres pronunciados, as vogais estendidas em vibrato - antes de se converter em cacoetes e excessos de, por exemplo, um Cauby Peixoto. Se o álbum "Seresteiro" enfatiza o Francisco Alves compositor, com parceiros como Orestes Barbosa e David Nasser, o "Carnavalesco" guarda surpresas como os duetos com Mário Reis (em "Marchinha de Amor" [1932] e "Formosa" [1933]), confrontando duas eras: a do coloquialismo (que se afirmava) e a da voz empostada (que partiria, caricata). São igualmente representativas as intervenções de Lamartine Babo, campeão de audiência da época com Ary Barroso. No "Sambista", são coroados, além desses, Herivelto Martins e Ismael Silva; nas "Grandes Versões", curiosidades pitorescas como "Beija-me Muito" (sim, a partir de "Besame Mucho"). Completam o trabalho, as indispensáveis notas de Abel Cardoso Junior, junto à Revivendo, a nos guiar, mais de cinco décadas depois.
|
|
>>>
Cinqüenta Anos Depois - Francisco Alves - Revivendo |
|
>>>
AD IMORTALITATEM
Vozes inconformadas se levantam neste momento contra o ingresso de Paulo Coelho à Academia Brasileira de Letras. Para além da indignação geral e do absurdo, essa eleição talvez se destaque das outras por seu caráter eminentemente histórico: ela espelha inequivocamente o estado de confusão mental em que se encontram as artes e a cultura contemporâneas. E também a noção que as pessoas fazem de literatura, na aurora do novo século. A criação foi definitivamente dessacralizada, e a fruição banalizada até o limite da ignorância e da insensibilidade. Qualquer cidadão, não importando sua origem ou formação, deve estar apto a consumir "produtos artísticos" e "bens de cultura", independentemente de ter inclinação ou nutrir gosto pela coisa. A necessidade, portanto, das obras-primas se afirmarem justamente por seu caráter mundano permitiu o ingresso de magos dos números (e das cifras) no panteão de espíritos elevados, secularmente inacessíveis ao vulgo. Machado de Assis nunca freqüentou a lista dos mais vendidos, mesmo quando impingido como leitura obrigatória em sala de aula - naturalmente, como se vê, não faria barulho num país de 170 milhões de habitantes e num planeta de 6 bilhões de terráqueos. Já Paulo Coelho obteve consagração intergaláctica, sendo recebido por pequenas multidões de leitores e de chefes de estado, onde quer que pisem seus livros e sua pessoa. Faltava-lhe, nesse contexto, a legitimação dos grandes das letras brasileiras - e onde obter isso senão na casa fundada por Machado de Assis (tradicional, ainda que contestada por muitas gerações)? Paulo Coelho conseguiu; mas isso não o livra de ser esquecido pela posteridade; nem salva seus apoiadores do fogo da inquisição intelectual, em épocas futuras. A literatura de Paulo Coelho não melhora e a literatura brasileira não piora, por ele ser hoje um "imortal". Até porque a imortalidade, aquela que só o tempo confere, está muito além do juízo dos homens.
|
|
>>>
Paulo Coelho |
|
>>>
O BRASIL DA INOVAÇÃO
A prática de spam, ou o envio de e-mail não-solicitado, é uma das maiores pragas que ameaçam a internet. Herdeiro das malas-diretas postais, mas de custo quase zero e alcance praticamente ilimitado, surgiu para promover sites, embrenhou-se nas malhas do e-commerce e atualmente é instrumento de ramos cada vez mais insuspeitados, como a propaganda política. O que faria um candidato acreditar que o usuário de correio eletrônico votaria nele caso recebesse uma mensagem sua? Acontece que, conforme atestam as tentativas desesperadas de políticos nanicos em chamar a atenção na mídia, o e-mail se transformou em mais uma ferramenta da máquina partidária, para desespero dos usuários de computador. Então, como já desperdiçam em panfletos, bandeiras e adereços os mais inventivos, não custaria nada (literalmente) bombardear a caixa postal de internautas desprevenidos, do Oiapoque ao Chuí. É um mistério como se elegem certos nomes no Brasil. Os habitantes de Lilipute, no cenário político brasileiro, vivem de repetir generalidades e de recauchutar programas de governo. Fazem igual no e-mail: prometem aumentar o emprego; elevar o "mínimo"; garantir a segurança; investir em saúde; focar na educação; construir moradias; e incentivar a previdência. Ou seja, ruminam o blablablá populista que se arrasta desde tempos imemoriais. O que será necessário para deter os candidatos "spammers"? Apocalípticos do universo virtual prevêem a derrocada do e-mail, numa época em que as mensagens invasivas serão em número muito superior àquelas solicitadas efetivamente. Como se não bastasse a imposição de arcaísmos como o horário eleitoral gratuito, ainda temos de driblar "unabombers" da política nacional em defesa da nossa privacidade.
|
|
>>>
Spam eleitoral irrita californianos |
|
>>>
LA COUPABLE
Com a ascensão e a consagração de Almodóvar, veio à tona o cinema sentimental, de gestos exagerados e de cores berrantes. Ganharam papéis de destaque, as mulheres e os homossexuais - foram praticamente suprimidos os homens. Com a falência do macho, as atrizes conquistaram a primazia em roteiros e salários - os atores se tornaram meros coadjuvantes. A história se repete em "Oito Mulheres", de François Ozon, uma homenagem às divas do cinema, onde praticamente não há homens. (Nesse clube, menino não entra.) Um elenco com tão acentuada "polaridade" sexual só poderia se sustentar se, a cada estrela, fosse atribuída uma personalidade forte e marcante. Foi o que ele fez (o diretor). Catherine Deneuve, por exemplo, é um arremedo de Marilyn Monroe; Virginie Ledoyen, da Sabrina vivida por Audrey Hepburn - a assim vai, octeto afora. O argumento (um policial), portanto, não segue adiante e não tem importância, num contexto dessa natureza. Cada fêmea dá o seu show, cantando, dançando, atuando - e é só. Os cinéfilos, por essa razão, se divertem muito mais que o próprio público, reconhecendo falas, cenas e figurinos. O que, por si, não explica esse "sucesso todo" na França. Ainda mais depois de "Pacto dos Lobos" (2001) e "Amélie Poulain" (2001). (Quem entende os franceses?) Ninguém venha dizer que foi por conta da publicidade no metrô. De qualquer jeito, é um desperdício de beldades: dado o formato, nenhuma consegue ser muito bem aproveitada. Sobressai Isabelle Huppert, vivendo uma solteirona ranheta e voluntariosa. Também Emmanuelle Beart, na via oposta: silenciando e falando só quando recebe ordem para tanto. Dentre as menos aproveitadas, reina infelizmente Fanny Ardant. É provável que não dure nas bilheterias do Brasil, que perdeu há muito da sua inclinação francofônica.
|
|
>>>
8 femmes |
|
|
|
>>>
Julio Daio Borges
Editor |
|
|