Quarta-feira,
4/9/2002
Digestivo nº 97
Julio
Daio Borges
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A CULTURA É O ÓPIO DO POVO
Estranhos os caminhos que as publicações percorrem nas bancas. Muitos meses depois, ainda é possível encontrar "O Nó Górdio" - ano 1, número 1. Detalhe importante: de dezembro do ano passado. Tudo bem que a grande filosofia só é digna desse nome quando se torna extemporânea. Mas também não precisa exagerar. Mais de um semestre (!). O exame, no entanto, do periódico (nascente) ainda vale. Capa, página 3, página 5: e se alguém disser que a melhor coisa da revista toda é o seu "editorial"? Estará cometendo alguma heresia? Ainda mais com outros textos de luminares como Hegel, Heidegger e Merleau-Ponty? Do primeiro, publicaram uma "carta"; tão tortuosa que lembra seus escritos sobre Direito. Do segundo, "esboços"; vendidos com concisos e "diretos", mas encharcados de nomenclatura insossa. Do último, "notas"; colhidas por alunos, sobre o seu "conceito" de "natureza". É por essas e por outras que as pessoas de bem fogem correndo da disciplina fundada por Sócrates, Platão e Aristóteles. A impressão que se tem é que os atuais "filósofos" querem preservar a sua ciência de qualquer intervenção do público, tornando-a impenetrável. Estão conseguindo. O problema é que quando se lê verdadeiros filósofos - e não esses "intermediários" -, numa tradução decente (é lógico), a forma de expressão é clara e cristalina. Pior: há coisas realmente importantes e que fazem pensar (!). Como é que pode? Afinal, a filosofia não era apenas a burocracia elevada ao status de linguagem? Era e não era. Hoje parece ainda mais fácil se perder entre tanto jargão, mas, em realidade, sempre foi assim. Voltando ao referido "editorial" - que se salva junto com Hannah Arendt e outros poucos -, a idéia é afugentar os interessados. Quanto menos gente, menor o número de "chatos" produzindo ruindo e interferindo na comunicação. Até que faz sentido, mas não para uma publicação que se pretende vender em banca. Era o caso até de perguntar, aos patrocinadores da publicação, se eles querem efetivamente "divulgar" suas marcas e seus produtos ou se preferem ficar dentro da caverna vendo sombras.
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O Nó Górdio |
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ESTÁ NO AR; NAS ONDAS DO RÁDIO
"Revolução! Revolução! Revolução!" ― é o que pede entre palmas a platéia de uma banda perdida lá pelos idos de 1986. Estamos falando do "Érre Pê Ême", segundo o encarte do ultimamente relançado "Rádio Pirata Ao Vivo". Alguém ainda se lembra o que foi esse disco no tempo em que o Brasil venceu a inflação (e até carne faltou no pedaço)? Foi provavelmente o mais próximo que conseguimos chegar da Beatlemania, com direito a Globo Repórter, "rebeldia" juvenil, explosão hormonal em massa, histeria coletiva, que ecoam, que ecoam... que ecoam até hoje (!). Até hoje? Bom, pelo menos é o que pensam Paulo Ricardo, Fernando Deluqui, Luiz Schiavon, P.A., Guto Graça Mello (que produziu) e a MTV (que lançou): "RPM 2002". [É mole?] É mole mas sobe nas paradas, com vem demonstrando não os sucessos reciclados, como "Revoluções Por Minuto", "Alvorada Voraz" (com uma letra "atualizada" e infame), "London, London" (Caetano até desistiu dela), "A Cruz e a Espada", "Exagerado" (Cazuza revirando na tumba [o clichê aqui é válido]), "Louras Geladas", "Rádio Pirata" e "Olhar 43" ― mas sim a melosa e derradeira "Onde Está o Meu Amor?" (Paulo Ricardo certamente aprendeu alguma coisa em sua fase de cantor e compositor brega). Falando sério, agora: não é má vontade, mas é que eles já voltaram tantas e tantas vezes... (!). Talvez seja uma nova modalidade no show business nacional: ficar indo e voltando, como fazem, por exemplo, os Rolling Stones, há 40 anos. Falando mais sério ainda: quem hoje ouve RPM que não seja um nostálgico assumido, um entusiasta de hits "mela-cueca", ou então um desinformado crônico? E é certo ― também ― que considerações desse tipo não têm por que ofender os RPMs, afinal, quem sobrevive a tantos sucessos e fracassos: ou tem a auto-estima elevada a patamares inabaláveis e inatingíveis; ou então é a própria encarnação do cinismo e da falta de caráter. Qualquer que seja o caso, o RPM está aí para quem quiser ouvir (de novo); e para quem não quiser, também.
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RPM 2002 - Universal |
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MIRAGEM
Cacto. O nome é espinhoso; a capa, de um vermelho berrante. A recomendação, muito obsequiosa, de um certo Tarso. Tarso de Melo, é o editor; junto com Eduardo Sterzi. Parecem homens de boa vontade. As controvérsias porém afloram logo: a apresentação anuncia uma entrevista com Augusto de Campos, uma avaliação crítica sobre a sua obra, etc.; pois, segundo se lê, trata-se de "um dos maiores poetas do Brasil" (mas e o Haroldo?). Vamos às páginas. De fato, abre Augusto: "faça / o que / faça // o que / quer / que // quei / ram / que // faça / não / faça // faça / o que / quer". Fazer o quê? Próximo. Um que valha à pena. Bilíngüe não. Heine, para nos salvar: "Oh, que dama fácil, a felicidade! / Mal se acosta num lugar, ela já sai... / Afaga teu cabelo, cheia de vaidade, / Beija-te às pressas, bate as asas e se vai. // Dona Infelicidade, ao contrário, / Te prende ao coração a ferro e corda / Para ir embora, diz não ter horário, / Senta-se contigo à cama e borda.". Mais um ótimo comentário do tradutor (Marcelo Backes). Bem, melhorou. Ou não: brincadeiras com a forma; palavrões; jogos de palavras. Opa, o Tasso de novo. Ecos de Ferreira Gullar (que abandonou esse negócio de concretismo há muitos anos). Vários nomes, várias línguas - difícil se concentrar em algum(a). "Mosaico", "fotografia", "caligrafia" - sem novidades no front. Tem de haver pelo menos mais um. O poeta não pode ser mero encaixador de palavras. Voltam as ruas (Rodrigo Petronio): "- E aí tru, rolô a fita? / - Só. Cola na goma e a gente racha. / - Cê dá um cavalo? / - Na boa. / - Ixe, mó güela". Dante em tradução de Eduardo Sterzi. Também Joyce. Mais um "Fim do Poema" (será que essas coisas nunca acabam?). Notas de pé de página. Tradução, de novo (reinventada, de novo). Encerra com um "Sinal de Menos". No deserto, o cacto costuma ter água dentro. Nem sempre.
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Cacto | Tarso de Melo | Eduardo Sterzi |
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O CONSELHEIRO AINDA COME (E BEBE)
Discreto e sóbrio, na rua Bela Cintra, entre as alamedas Jaú e Franca, o Folha de Uva remonta a uma tradição de mais de um século no Brasil. Fundado e dirigido por Samir Cauerk e Fernando Camasmie, originalmente como uma rôtisserie, foi buscar inspiração no Rio de Janeiro do início do século XX. Lá, o avô de Samir, Elias "Hallab" Cauerk, abriu as portas do primeiro restaurante árabe brasileiro, o Oriente-Ocidente, depois simplesmente Hallab, em homenagem ao seu proprietário. Por essas e por outras, o Folha de Uva não se entregou à pasteurização típica das cadeias de shopping center; nem fez a sua cozinha inacessível a meros mortais (leia-se: não praticou preços exorbitantes). Pelo contrário: preservou aqueles princípios fundamentais e, ao mesmo tempo, manteve a vocação genuína do velho Hallab, que acolhia a todos os clientes indistintamente (abonados ou não). Simples e despretensioso, em pouco mais de dez anos de funcionamento, o Folha de Uva já conquistou o prêmio "melhor prato do Brasil servido em restaurante", conferido por Josimar Mello. Mereceu essa distinção, o realmente irrepreensível Fatti de Carneiro (pernil, coalhada, hortelã, snoubar, grão-de-bico e manteiga), uma especialidade de Samir Cauerk. Levam também a sua assinatura, o Bacalhau Mourisco (assado em lascas, azeite, cebola, alho e salada de grão-de-bico) e a sopa Chich Barak (capeletes recheados com carne de kafta, cozidos na coalhada em altas temperaturas). Entre as entradas, os destaques são as saladas, as pastas e as coalhadas, além do irresistível Quibe Naye (quibe cru). Dentre as sobremesas, destacam-se o M'Hallabye (manjar de leite e água de flor de laranjeira com calda de damascos), o Becklewa, o Burma e o Ataif. Como se não bastasse o banquete gastronômico, o cliente ainda pode desfrutar do Arguile (cachimbo árabe) e da Raks Sharki (a popular dança do ventre, às quintas-feiras). Não é à toa que os proprietários reconhecem: no Folha de Uva, o Macktub se impõe para bem.
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Folha de Uva - Rua Bela Cintra, 1435 - Tel.: 3062-2564 |
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CINEMA DE CRUELDADE
Em Carta Capital (que completa um ano de periodicidade semanal: "Parabéns, Carta Capital!"), Ana Paula Sousa assina uma excelente reportagem sobre a "Cosmética da Fome". Corruptela da "Estética da Fome" de Glauber Rocha, serve para classificar a cinematográfica exaltação da periferia, dos morros da favela - ultimamente vista em tela grande. Ana Paula chama, além da inventora da expressão (a pesquisadora Ivana Bentes), gente do mais alto gabarito para opinar: Eduardo Coutinho e Carlos Riechenbach. O assunto todo logicamente surge por conta do lançamento de "Cidade de Deus", em circuito nacional esta semana. Longa assinado por Fernando Meirelles, vem dividindo a crítica por conta de ser, ao mesmo tempo, estilização e denúncia. Graças a ele, muitos outros, no mesmo gênero, são invocados: "O Invasor" (de Beto Brant), "Uma Onda no Ar" (de Helvécio Ratton, recentemente exibido no Festival de Gramado), "Carandiru" (preparado por Hector Babenco) e até "Pulp Fiction" (de Quentin Tarantino). A querela não é nova: os artistas querem conscientizar a sociedade; a sociedade só se deixa atingir por produtos de massa; os artistas embalam com pele de cordeiro o lobo - e "nessa", a coisa pode não colar. De um lado, os que acusam Meirelles de banalizar a violência e a realidade do tráfico; de outro, os que vêm bradando em coro: "gênio!", "divisor de águas!", "marco!" e louvores similares. "Cidade de Deus" vai ser o filme obrigatório de 2002, com relação ao qual todo mundo vai ter de se posicionar. É melhor preparar então o colete à prova de balas, pois o tiroteio ideológico vai começar.
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Cidade de Deus |
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Julio Daio Borges
Editor |
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