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Quarta-feira, 11/9/2002
Digestivo nº 98

Julio Daio Borges

>>> UM APOSTA NO ESCURO Há mais de um mês, “Meio & Mensagem” publicou um especial “internet”. Ao contrário de grande parte da mídia impressa, propôs-se a levar a sério a chamada “World Wide Web”. As expectativas são positivas (até porque a maioria dos depoimentos vêm de profissionais do ramo). Em números: 14 milhões de lares conectados (deixando para trás jornais e revistas, e já fazendo frente à tevê); R$ 224,9 milhões de receita publicitária (estimativa para 2002). O caderno de 20 páginas preparado pela equipe da “M&M” editora sinaliza, porém, para duas tendências radicalmente opostas. De um lado, os representantes das “velhas mídias”, tentando fazer da internet um mero braço eletrônico para suas iniciativas off-line. Na acertada definição de Cassiano Polesi, num dos poucos artigos de opinião do especial, pensam a Web como um “meio de comunicação” (um simples canal para algo que já existe) e não como uma mídia independente (portanto com vida própria). Do outro lado, obviamente, aqueles que, como Polesi, tentam entender a internet a partir da própria internet: sem comparações prévias, sem conceitos prontos, mergulhando de cabeça e interpretando a Web por dentro. Algumas conclusões parecem definitivas, independentemente da primazia de qualquer das duas visões. Primeira: a internet não veio para substituir ninguém. Segunda: as décadas de publicidade impressa viciaram as campanhas, que não têm funcionado num espaço onde o olhar é muito mais crítico e seletivo. Terceira: o acesso gratuito (para além das considerações contábeis) colocou o Brasil em posição de vanguarda, fazendo da Web uma realidade muito mais palpável até do que, em alguns setores, o dito “mundo real” (vide o boom do atendimento virtual bancário). Como em qualquer outro universo, na internet a luta continua entre “idealistas” e “utilitaristas”. Que ela permaneça e que a Web não seja nunca uma “solução fechada”, um “pacote acabado”, um meio limitado como tantas outras invenções que tiveram no seu nascimento também um futuro brilhante.
>>> Meio & Mensagem
 
>>> FUI Alguns artistas ficam no limiar da popularidade, evoluindo sem fazer qualquer concessão ao gosto médio - até que aparece um clone e toma o seu lugar em termos de crítica, mas, principalmente, de público. Esse parece ser o caso de Zélia Duncan (a artista) e Ana Carolina (o clone); mas não é. Ana Carolina, entre um tema de novela e uma regravação do pop italiano, vem sorrateiramente se afirmando no cenário musical atual. Para começar, gravou com Arthur Maia e Marcos Suzano (tudo bem que eles são quase a regra nas participações hoje), fez parceria com Adriana Calcanhotto, dividiu os vocais com Alcione, tocou ao lado de Victor Biglione (o violonista de Cássia Eller) e Chrystiaan Oyens (o parceiro da supracitada Zélia Duncan). Para terminar, registrou música inédita de Herbert Vianna e compôs sob encomenda da venerável Maria Bethânia. Para intermediar, Ana Carolina tem uma das platéias mais fiéis de que se tem notícia: daquele tipo que vai a shows em dias consecutivos, superlotando casas de espetáculo e esgotando ingressos em temporadas de fim de semana. Talvez, harmonicamente e liricamente, ela não seja mesmo o "dernier cri" - nem na linha "roqueira" da MPB que escolheu - mas, ainda assim, toca um dos melhores violões de sua geração, vira-se mais que bem com o pandeiro, é simpática, bom papo, sustentando a audiência, bravamente, em suas performances noturnas. E o que Ana Carolina tem, inegavelmente, é a voz - mesmo que desperdiçada em notas estendidas e longas (querendo demonstrar potência nas cordas [cacoete típico, há que se perdoar, do artista em sua juventude]). Se a ruiva vai se afirmar em definitivo, como estrela de luz própria, é a questão que agora se coloca; os apoios que vem recebendo - apesar dos detratores e das detratoras habituais - indicam que vai.
>>> Ana Carolina - Ana Carolina | Ana Rita Joana Iracema e Carolina
 
>>> HAVRE ET GUADELOUPE Édouard Manet foi um dos maiores pintores do século XIX. Reza a lenda que nos anos 1840, aos 17, ele esteve de passagem pelo Rio de Janeiro. São cartas dessa aventura ultramarina que lemos no bem-acabado "Viagem ao Rio", pela editora José Olympio. Mais tarde, já consagrado nos salões de Paris, teria sido vítima dos exageros dos nacionalistas Afonso Taunay, Antonio Bento e Agripino Grieco, que enxergavam em suas obras uma influência da Terra Brasilis (muito maior do que ela era na verdade). O pequeno volume, quase uma edição de bolso, é caprichosamente ilustrado com paisagens do Rio de Janeiro da época, por August Müller, Frederico Guillerme Briggs e Charles Ribeyrolles, entre outros. Talvez para compensar a monotonia do texto que, da saída do ponto de Havre até a chegada na Baía da Guanabara, diz muito pouco ou quase nada. Relatos basicamente sobre o céu e o mar, numa existência que o próprio Manet chamou de "ridícula". No Rio, porém, as coisas começaram a acontecer. O aspirante a pintor horroriza-se com o mercado de escravos, embora confidencie a um amigo apreciar a beleza das mulatas (desnudas da cintura para cima). Reclama das ruas muito estreitas, nas quais depois das cinco da tarde flerta com as brasileiras, "recatadas e tontas", à janela. Brinca também com elas o Carnaval, participando ativamente da guerra de "limões de cheiro". Observa que os brasileiros e portugueses são, em geral, preguiçosos e que a cidade é tomada por três quartos de negros que realizam todo o trabalho. Ao contrário de Gauguin, encanta-se com a visão do paraíso e à maneira dos tripulantes das caravelas de Pero Vaz Caminha, alimenta-se com uma ração de bolachas. São impressões, portanto, como outras quaisquer. Vindo de quem vêm, no entanto, a coisa muda de figura. Continuamos embasbacados com a chegada de estrangeiros e com os seus relatos sobre nós.
>>> Viagem ao Rio - Edouard Manet - 128 págs. - José Olympio
 
>>> ALLEGREMENTE Senso de espetáculo. É o que parece faltar aos sisudos programas de música erudita na cidade. A tirania dos performers, que a muitos continua a horrorizar. Portanto, nada como um redentor concerto do German Brass para colocar a coisa toda no seu devido lugar. Os simpaticíssimos alemães desse conjunto se apresentaram pela temporada do Mozarteum e, a preços populares, fizeram a platéia vir abaixo. Foi na pomposa Sala São Paulo. Nem parecia. Um monte de gente à vontade, batendo palmas, assobiando e soltando gritos de aprovação - só faltava dançar. A estratégia do German Brass foi notável. Começaram com os números clássicos de praxe: Bach, Pergolesi, Smetana, etc. Impecáveis nos sopros, mostrando que estão aí para encarar qualquer parada. Cumpridas as formalidades, partiram para a diversão rasgada. Temas do mundo inteiro, com direito a mestre de cerimônias lascando um tremendo de um portunhol. Sai de baixo: tango, samba, jazz e bolero. Como se não bastasse, os integrantes do "ensemble" são gozadores e engraçados (!). Nem os vestidos mais justos e os ternos mais apertados resistiram ao swing tedesco. Inclusive cantaram alguma coisa, sempre em coro, principalmente quando o dixieland subiu ao palco acompanhado da tarimba mexicana. Foi um show e tanto. As pessoas saíam e comentavam: "Muito mal divulgado!", "Era para estar lotado!", "Deviam ter tocado no Ibirapuera!", "A temporada devia ser maior!". Bem, aí está. Foi dado o recado do German Brass. Da próxima vez, é não deixar - de jeito nenhum - passar. Eles voltam.
>>> German Brass
 
>>> O CANÁRIO AZUL Lêdo Ivo brilhou no "Umas Palavras" de Bia Corrêa do Lago. Foi certamente um dos melhores episódios desse programa que vai ao ar no canal Futura. Esteve tagarelando sobre a sua biografia; intercalando chistes e gargalhadas hilárias. Falou no entanto só sobre coisas sérias. Seriíssimas. Apesar do tom bem-humorado, vê com muita tristeza o ocaso da crítica literária brasileira, que, tirando Wilson Martins, no seu entender não mais existe. Lêdo Ivo acredita que é impossível se formar uma nova geração de escritores sem que haja juízo crítico. Como se guiar num mundo onde foram abolidas as noções de valor? Outra coisa: acha a crônica uma prática indecorosa na idade adulta; do alto de sua sabedoria, abandonou-a ainda aos 30 anos. Desde então vem publicando ensaios. Mas ficou conhecido mesmo por causa dos seus poemas. "Ode e elegia, poesia" (1945) lançou-o nacionalmente graças ao beneplácito de tipos que se extinguiram, como Álvaro Lins. Considera o Rio de Janeiro uma ilusão de ótica; e as grandes cidades, cemitérios de sonhos. Viu vocações nascerem e serem assassinadas pela metrópole que a todos devora. Tem uma teoria impagável: o autor nada mais é que o personagem criado pela obra. Como corolário, proclama: "Sou o desconhecido de mim mesmo". O homem cria e é criado novamente por aquilo que deixa para a posteridade. Divide os poetas entre "malditos" e "mimados", embora haja também mimados-malditos e malditos-mimados. Poucas vezes a televisão consegue ser tão inteligente. A entrevista voa; os blocos parecem flanar. Bia Corrêa do Lago comprova semanalmente que é possível, sim, cutucar a mesmice, oferecendo uma alternativa de nível.
>>> Umas Palavras | Lêdo Ivo
 
 
>>> Julio Daio Borges
Editor
 

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