Quarta-feira,
23/3/2011
Hitler, de Ian Kershaw, pela Companhia das Letras
Julio
Daio Borges
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Digestivo nº 477 >>>
O século XX não ficou indiferente a Hitler e é uma ilusão achar que o século XXI ficará. Hitler, os nazistas e a Alemanha, em menor escala, mudaram a paisagem europeia, quase destruíram a nossa civilização e redefiniram a política, a sociedade e a cultura. Se os anos 50 foram amargos e conservadores ao extremo, redundando em rock'n'roll, nos hippies, na subversão e no "poder jovem", tudo isso aconteceu porque houve um Segunda Guerra Mundial e um gênio do mal que a provocou, amparado por um partido e, vamos admitir, por um povo. Nosso temor de uma Terceira Guerra, nosso medo das armas atômicas, nossa prevenção contra radicalismos (não só religiosos) são herança de uma época que não vivemos, mas que ainda paira sobre nós, como um lembrete de que, se voltar, pode levar à extinção do gênero humano. Ler a vida de Hitler, portanto, não é um mero exercício fetichista, de puro sadismo ou de curiosidade mórbida: é um mergulho na nossa História, é um oportunidade de entender como aceitamos conclusões tão óbvias (agora) e, sobretudo, um alerta de que a tirania, a barbárie e o apocalipse podem estar, logo ali, ao lado. Hitler foi um gênio. Mas um gênio incômodo. E maligno. E terrivelmente perigoso. A ponto de seu biógrafo se posicionar o tempo todo, praticando raramente a isenção e, muitas vezes, desistindo de entender o homem. ("Que homem?") O Hitler, de Ian Kershaw, é narrado em ritmo de thriller. Suas origens familiares quase obscuras, sua juventude de dissipação em Viena, seu alistamento na Primeira Guerra, seu crescimento como orador, e doutrinador, sua ligação com o Partido, sua fase de agitador social, sua tentativa de golpe, sua prisão, sua libertação, seu livro e sua ascensão à chancelaria - sua carreira meteórica, enfim - são narrados epicamente, sem tempo para delongas. Os personagens coadjuvantes vêm e vão, e ficamos imaginando se na versão original da biografia, em dois volumes, estão os pormenores que faltaram neste volume único. O poder supremo, na Alemanha, claro, não foi suficiente para Hitler. Era preciso anexar a Áustria, subjugar a Tchecoslováquia, invadir a Polônia, humilhar a França... Até atacar a União Soviética, declarar guerra à Inglaterra, desafiar os Estados Unidos, perseguir, prender e, em última instância, exterminar milhões de judeus. Kershaw dedica capítulos inteiros à "questão", pois, além da violência do regime, de sua fome de poder (e da sua megalomania suicida), o ódio mortal aos judeus ainda sobressai, e consegue ser um dos aspectos mais monstruosos de Hitler. O ataque à democracia, à propriedade, seguido do ataque ao estado de direito e, finalmente, aos direitos humanos reduziram uma das civilizações mais admiráveis da Europa à barbárie mais condenável. Mesmo lendo o Hitler, de Kershaw, não conseguimos entender o que ocorreu. Essa tentativa é, contudo, o melhor que temos no momento...
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Julio Daio Borges
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