Segunda-feira,
3/6/2013
Górgias, de Platão, por Daniel R.N. Lopes
Julio
Daio Borges
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Digestivo nº 492 >>>
Filosofia não é só uma questão de tradução. Claro, é importante dispor de textos, digamos, "canônicos" em nosso idioma. Ocorre que tão importante quanto a "versão brasileira" é o comentário. No caso de Platão, os textos podem ser lidos, em português, sem dificuldades. Mas sem uma introdução e sem notas... mais da metade da compreensão se perde. Reza a lenda que Platão abandonou seus versos aconselhado por Sócrates. Desistiu da carreira de trágico, mas acabou um grande dramaturgo escrevendo... diálogos filosóficos (!). Para quem vivia em busca da "verdade", a arte, a poesia, eram representação da realidade ― portanto, "simulacros". A verdade não estaria na arte, segundo Platão, por mais que essa nos fosse sedutora. Mas, como manifesta Sócrates ― a personagem maior do "teatro" de Platão ―, a verdade estaria nos discursos. Nos diálogos. No lógos. Assim, Platão subverteu a herança dos poetas trágicos, inspirados em Homero, para escrever diálogos. Foi maior que os trágicos? Foi maior que Homero? São perguntas sem resposta. Ou até perguntas que não fazem sentido, já diria Wittgenstein. A verdade é que o "teatro" de Platão, mais que encenação, é carregado de significados. Desde a entrada das personagens em cena até a sua saída, até a conclusão (ou o fim do diálogo às vezes sem conclusão), toda e qualquer refutação ou mesmo pergunta, de Sócrates, tem a sua razão de ser. E as personagens vão discutindo filosofia, aparentemente, como numa conversa. Grande parte da complexidade do vocabulário filosófico, exigindo léxicos e mesmo dicionários, surgiu depois de Platão. De Aristóteles, por exemplo, não temos diálogos. Temos, apenas, o que o Estagirita escreveu para os já iniciados em filosofia. De Platão, pelo contrário, dispomos dos diálogos ― que eram veículos para disseminar a filosofia entre não-iniciados. Portanto, a enganadora simplicidade dos diálogos de Platão esconde mais de dois mil anos de interpretações... Com a preocupação de explicar o que parece simples, a editora Perspectiva trouxe uma edição do Górgias, diálogo de Platão, com tradução, introdução e notas de Daniel R.N. Lopes, doutor em grego clássico pela Unicamp. O livro é, no dizer do tradutor, "fruto parcial" de sua pesquisa de doutorado, entre 2003 e 2007. Contudo, não tem nada de acadêmico (no mal sentido da palavra). O volume é legível, a escrita flui e qualquer pessoa alfabetizada pode tirar proveito da introdução e do mesmo Górgias. A inteligibilidade não descarta a complexidade dos raciocínios, que são árduos. O Górgias não é dos primeiros diálogos de Platão. É uma obra de transição. Mais ambiciosa que as primeiras. Lançando conceitos que seriam trabalhos em realizações mais vultuosas, como A República. Diz o lugar-comum que o Górgias trata da retórica, mas é muito mais que isso. Da retórica, que seria uma maneira de convencer os interlocutores de virtualmente qualquer coisa, passa-se a uma discussão sobre a justiça. Afinal, a retórica poderia ser usada, como uma arma, para cometer injustiças. Mais ou menos como muitos advogados, em nossa época, são acusados de fazer. Além de duvidar que a retórica possa nos levar à verdade, Sócrates, inclusive, questiona que o "rétor", o praticamente da retórica, professe algum tipo de saber. Pois convencer alguém de alguma coisa, eventualmente, implicaria em ostentar um saber que não se tem. O que Sócrates acharia da propaganda hoje? E do marketing? E das celebridades? Se para Sócrates, e Platão, a fama era "o perfume dos atos heróicos", qual classificação daria para o conceito de fama atual? Às vezes parecemos tão longe dos antigos valores... (Ou, por sua corrupção, talvez perto de retomá-los.) Sócrates, igualmente, foi criticado. Nem precisamos lembrar que o condenaram à morte. No Górgias, uma personagem sugere que Sócrates deveria "abandonar a filosofia" e "se voltar a coisas de maior mérito". De Sócrates, restou a filosofia. E, dessa personagem, o que restou (além de uma participação em um famoso diálogo de Platão)?
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Julio Daio Borges
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