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Quinta-feira, 10/10/2002
Um presente contínuo

Julio Daio Borges




Digestivo nº 103 >>> A exemplo da China, a Rússia construiu também sua muralha e isolou-se do mundo durante quase todo o século XX. Estamos falando da "Revolução Russa", que, de 1917 até a Perestroika de Gorbatchev (1985), jogou o país no limbo. Esta não é propriamente a tese de Alexander Sokúrov em "Arca Russa" (2002), em cartaz na 26ª Mostra BR de Cinema, mas é como se fosse. Além da curiosidade técnica (o filme é feito a partir de uma única tomada de 97 minutos), Sokúrov convida o espectador para um passeio pela História da Rússia, dando destaque a grandes figuras (Pedro, o Grande, Catarina, a imperatriz, Puchkin, o poeta), enquanto registra o esplendor de uma nação hoje em ruínas. Forma e conteúdo se misturam de tal sorte que descrever essa experiência cinematográfica é inevitavelmente passar pelo roteiro e pela feitura quase artesanal do longa. O filme começa em meio a um corre-corre atrás do que parece ser um baile ou simplesmente uma festa. A câmera sobrevoa os salões e corredores, flutua entre os convivas, atravessa cenas como se perseguisse a narrativa. Ao mesmo tempo, um narrador surpreendido com o que vê tenta se localizar no espaço e no tempo. A ele, junta-se um outro sujeito que aparentemente também viaja pelas mesmas épocas; deixa escapar que é europeu (provavelmente francês) e sua ranzinzice contrasta com o deslumbramento da voz de quem narra (certamente de um russo). Esse "diálogo" entre o nosso "cicerone" e o seu "convidado", permite que o espectador se situe (não perfeitamente, é lógico) e possa igualmente se encantar com as belezas escondidas num palácio perdido em São Petersburgo. São sem paralelos, por exemplo, as tomadas de uma grande valsa, com dezenas de personagens em passos e movimentos de encher os olhos. É nesse ponto que o narrador pergunta ao nosso francês ranzinza: "Vamos para a outra sala?". O forasteiro retruca: "Mas o quê há lá? O que nos espera?" - fazendo obviamente alusão ao futuro. O russo então confessa: "Realmente, não sei o que há além daquela porta. Mas você não vai mesmo?". Ao que o outro responde: "Não, não vou. Eu fico aqui." É claramente a resposta do próprio Sokúrov aos anos 1900 e mesmo 2000, que, apesar de revolucionários, modernos e científicos, mataram a grande Rússia para nunca mais.
>>> The Russian Ark | Jornal da Mostra
 
>>> Julio Daio Borges
Editor
 

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