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Sexta-feira, 28/3/2003
Realismo fantástico

Julio Daio Borges




Digestivo nº 127 >>> Embora tarde pelo menos dois anos (entre concepção, realização e contato com o público) e embora mobilize uma estrutura e uma quantidade de pessoas nem de perto comparável ao que acontece nas demais artes, o cinema brasileiro é o que parece estar mais próximo da realidade brasileira. Mesmo nas suas limitações e nos seus exageros. Pegue o caso de "Durval Discos", por exemplo: aquela abertura, flutuando pelas ruas de São Paulo, filmando calçadas esburacadas, realçando cartazes mal-ajambrados, enquadrando portas de padaria, é muito mais significativa, para o espectador médio, do que a música, a literatura e as artes plásticas que atualmente são produzidas. Beto Brant, Fernando Meirelles, Domingos de Oliveira e Hector Babenco encontraram uma voz, e uma ressonância (junto à audiência), que hoje em dia muito poucos artistas, nos mais diversos métiers, podem se gabar de ter. Neste princípio do século, no Brasil, a mensagem do nosso cinema tem sido a mais direta e a mais contundente. Por essa trilha, segue o longa de Anna Muylaert, ovacionado em Gramado (2002), com nada mais nada menos que sete kikitos. Conta a história, obviamente, de um dono de loja de discos (de vinil), o Durval (Ary França), e de sua mãe (Etty Fraser), que dividem um sobrado. Certo dia, resolvem contratar uma empregada (Letícia Sabatella), cuja suposta filha (Isabela Guasco) vai causar uma reviravolta em suas vidas. O centro das atenções, que no início parecia ser a própria Durval Discos, se desloca para a criança, Kiki, que passa docemente a tiranizar a existência daqueles que a paparicam. A adulação assume tons surreais, como quando a personagem de Etty Fraser adquire um cavalo, e instala-o no quintal, para agradar a menina. Já o personagem de Ary França enlouquece num outro sentido: quando percebe que a mãe começa a torrar as economias da família (por causa da "netinha"), mostrando-se disposta até a matar, para não se separar de Kiki. Como a primeira metade se concentra na música, a trilha sonora é um dos destaques de "Durval Discos". A crítica certamente se viu conquistada pelo final hiperbólico, misturando demência e lirismo. O filme termina então como uma experiência válida, ora se aproximando, ora se distanciando da platéia. Ideal para quem se interessa pelo absurdo e pelo bizarro, reafirmando que o nosso cinema também já preencheu essa lacuna.
>>> Durval Discos
 
>>> Julio Daio Borges
Editor
 

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