Digestivo nº 375 >>>
Às vezes vale lembrar que a arte já foi sacra e que, até a Idade Média, não era conhecida a noção de artista. A máxima ambição de um "artista" até o Renascimento era tornar-se santo ou, em outras palavras, alcançar a santidade. O maestro João Maurício Galindo escreve no encarte de Cânticos à Rainha do Céu, de Walter Weiszflog e Selma Asprino, que a música sacra deixa o cotidiano das sociedades européias, nas primeiras décadas do século XX, "quando o homem, materialista e individualista, se torna o centro da vida moderna". Nem tanto à terra, nem tanto ao mar: o homem já era cogitado como "a medida de todas as coisas" desde a Renascença; o individualismo, como praga, é uma reinvindicação tanto política (com o "fim das utopias") quanto religiosa; e o materialismo talvez tenha nascido no século XVIII, com a Revolução Industrial (e, não, no XIX, com Marx). Enfim, controvérsias à parte, merece ser ouvido o álbum de Weiszflog e Asprino, só com peças dedicadas à Virgem Maria, no oitavo CD de uma série inteira voltada à música sacra, desde 2001. Embora o mesmo Galindo enfatize os compositores obscuros, e embora haja mérito na pesquisa de partituras (que abrange até a Biblioteca Nacional), os destaques vão para Beethoven ("O Sanctissima!") e Schubert ("Ich sehe dich in tausend Bildern"). Uma ótima surpresa é "Ave Regina", de Johann Michael Haydn (irmão de Franz Joseph). Chamam a atenção, ainda, Giovanni Battista Martini, o professor de Mozart, quatro peças de Charles Gounod, conhecido das cerimônias de casamento, e um meio deslocado Antonín Dvořák. Editado pela Melhoramentos, o disco é acondicionado num encarte de mais de 50 páginas, com todas as letras, e imagens várias. Se a arte sacra hoje parece limitada às igrejas em que está incrustada, vale lembrar, de tempos em tempos, que os grandes chegaram a praticá-la - e que artistas já quiseram ser santos.
>>> Cânticos à Rainha do Céu
A História da Música, desde a Idade Média européia, relata expressões musicais religiosas de grande porte, possivelmente pelo papel dos conventos e mosteiros no resguardo da cultura clássica por mais de mil anos. E nos castelos feudais, desde os tempos das cruzadas os músicos eram acolhidos e abastecidos em suas necessidades pelos senhores que nutriam a espiritualidade geral com sons e harmonias musicais. Tal escalada para a erudição musical continuou na Renascença, passou pelo Classicismo e pelo Barroco, chegando ao Romantismo do século XIX ainda traduzindo o desejo de perfeição do ser humano e sua carência de transcender o visível e o palpável. Apesar da crueza do homem do nosso tempo, essa ainda é a essência dos seus propósitos. Só que hoje ele olha para dentro de si em busca da inspiração e da verdade, em lugar de olhar para o céu à sua procura. Sua religião é a auto-adoração. É difícil a sua música expressar algo maior do que ele. Vivemos a mais pura involução artística, hoje...