Digestivo nº 480 >>>
O que é a crítica? Ninguém mais sabe. Quem é o crítico? "Aquele chato que vai geralmente contra a maré, solapando toda a divulgação, prejudicando todo o marketing". Nem sempre foi assim... E, para nos lembrar, do que é a crítica, está Décio de Almeida Prado, um dos nossos maiores críticos de teatro, em Exercício Findo, a coletânea de sua produção última, de 1964 a 1968, pela editora Perspectiva. Décio começa definindo o crítico como "alguém que pensa depressa", "às vezes nos poucos minutos que medeiam o fim do espetáculo e o início da impressão do jornal" (hoje, a atualização do site na internet). E ― para quem acha o trabalho fácil ― o crítico "tem de adivinhar qual semente germinará", "sob a pressão de modismos passageiros", "ondas de entusiasmo e de descrédito". Afinal [a crítica], muitas vezes, se torna "o único testemunho prestado na ocasião", "de forma imediata, sem retoques". A crítica, portanto, é "tudo aquilo que nos comove e nos exalta", para depois "começar a se desvanecer e a se desfigurar na memória"... Já para aqueles que acham que "quem não sabe, ensina (ou faz crítica)", Décio devolve: "Ao julgar um prato mal temperado, não estamos dando a entender que faríamos melhor se fôssemos para a cozinha". Lembrando ainda que "somos todos críticos, irremediavelmente críticos, incansavelmente críticos". Pois, qualquer produção cultural "nunca nos deixa indiferentes", sempre "suscita em nós uma certa reação" ― que "manifestamos", " em palavras", "na expressão do corpo" ou até "na fisionomia", num simples "ar de euforia ou de aborrecimento"... Em sentido estrito, "o crítico é simplesmente 'o outro'", o "não-eu" ― "de cujo escrutínio e julgamento nunca conseguiremos escapar". Mas, para falar a verdade mesmo, só o "crítico-por-dever-de-ofício". O verdadeiro crítico quase sempre "infringe os mais elementares preceitos da boa convivência e da boa educação". E como avaliar um crítico? "Pela competência no assunto", "por sua informação estética e histórica", também "por sua perspicácia e seu discernimento". Até porque "o crítico tem permissão para falar em nome do público", "dependendo", justamente, "do grau de representatividade que lhe é atribuído", "de sua repercussão sobre o corpo de leitores". E há, claro, muitos tipos de crítico: "do retardatário ao vanguardista", "do impulsivo ao moderado", "do reverente ao iconoclasta" e "do benevolente ao implacável". Décio de Almeida Prado considerava uma das maiores dificuldades do ofício de crítico "extrair um relato coerente", "dotado de um relativo enredo", contendo, "no sentido aristotélico", "princípio, meio e fim". Décio, sabiamente, achava que o crítico não estava acima de ninguém, mas que a verdadeira crítica exigia "tanto quanto qualquer trabalho criador".
>>> Exercício Findo
Crítica honesta anda meio escassa, por toda parte. Creio que se vê comprometimento pessoal (ou empregatício) com patotas ou carteirinhas ideológicas por toda parte num grau nunca visto. Ademais, há "impressionismo" excessivo na era digital - pra ficar só na Literatura, vê-se em alguns lugares resenhas que deixam óbvio que o resenhista leu quando muito a orelha de um livro e se deixou levar por uns fragmentos de enredo, juntando cacos e construindo uma peça unitária cujo fundamento básico foi a preguiça e o palpite, não mais. Como sou escritor (e também comento livros alheios), sei que é assim. Muitas vezes li comentários sobre livros meus que me deixaram fulo da vida pela imprecisão, pelos chutes... (enumerando influências de escritores que nem li). Jamais comentei um livro que não houvesse lido cuidadosamente, e isso me parece o fim da picada. Mas parece que hoje em dia a crítica, se for elogiosa, é considerada sempre benvinda pelo escritor, ainda que parta de alguém que nem o leu.