DIGESTIVOS
>>> Notas >>> Além do Mais
Segunda-feira,
9/9/2013
Os 'Dicionários' de Voltaire e Paulo Francis
Julio
Daio Borges
+ de 6600 Acessos
|
Digestivo nº 494 >>>
Paulo Francis, elogiando Millôr Fernandes, sentenciou que se o Guru do Meyer escrevesse numa língua mais conhecida, seria "um Voltaire". A frase, exata ou inexata, pegou. Quando se lê o Dicionário Filosófico, contudo, se constata que a frase guarda uma verdade oculta. Daniel Piza contava que Paulo Francis se decepcionou com o tamanho de seu Waaal ― O Dicionário da Corte (1996). Francis imaginara um livro da envergadura de A Bíblia do Caos (1994), de Millôr. Era a comparação mais aparente; a outra, menos honrosa, era com Voltaire ― François-Marie Arouet ―, o próprio. Francis, quando aproximava Millôr Fernandes de Voltaire, tentava se aproximar, ele próprio, do Dicionário Filosófico ― porque é bastante provável que Millôr não tivesse a mesma "pretensão". Irreverente, o Guru do Meyer não guardava o mesmo "respeito" pela filosofia ― como instituição ―, e muito menos pelos filósofos. A escolha do subtítulo de Waaal ― "Dicionário" da Corte ― é significativa. Por que não "Diário" da Corte, o título da coluna de Francis nos jornais (como a Publifolha veio a lançar depois)? E Voltaire, como se sabe, fazia parte da corte, de verdade ― da corte de Frederico, o Grande. Era um sábio a serviço do rei. Qual intelectual não se sentiria lisonjeado com uma "posição" assim? Paulo Francis gostava de usar o ponto de vista de alguém "próximo" ao poder. (Vide Trinta anos esta noite: 1964 ― o que vi e vivi.) Alguns jornalistas o foram, de fato, mas será que ele foi? Tudo bem, Diário da Corte, como o próprio Francis conta, na introdução de Waaal, foi uma sugestão de Cláudio Abramo. "Ficou". E Dicionário da Corte pode ter sido uma sugestão de Luiz Scharwcz, seu editor. Temos de admitir, contudo, que Voltaire dá um charme renovado à história. E as aproximações não são meramente formais. Por que começar Waaal com "aborto"? Por que transformar uma coletânea de artigos de imprensa numa coleção de verbetes (como se o embrulha-peixe guardasse uma dimensão filosófica)? Daniel Piza também conta que Francis tinha um projeto de escrever sobre "pensadores católicos". Por "católicos", entenda-se "cristãos". Mas não consta que Paulo Francis estivesse se referindo a Santo Agostinho ou ao autor da Suma Teológica. Alguém se lembrou de Pascal? Era nos "moralistas", afinal, que Francis estava pensando. Começar Waaal por "aborto", tecendo considerações ― morais? ―, não soa tão estranho, portanto... Voltaire, apesar de seu discípulo ilustre, contudo, dá um "baile" em Paulo Francis. Sua erudição transcende o próprio século. Paulo Francis era um "erudito em cinema", segundo Sérgio Augusto; "completou sua educação" em música e pintura, como assinalava, dos EUA; e foi mais que um resenhista, ou crítico literário, embrenhou-se na produção literária, lançando-se como romancista e memorialista. Cinema, música (popular) e jornalismo ― era um retrato do século XX. Já Voltaire, que ficou conhecido como "crítico" do cristianismo, fala da Bíblia como uma familiaridade de despertar inveja em Bento XVI. Não era um "simples" político, nem um "simples" filósofo ― Voltaire, concordando-se ou não com ele, é um titã das letras francesas. Além de não ser páreo para qualquer escritor, seu Dicionário não é para qualquer leitor. Na nossa época, talvez Umberto Eco pudesse resenhá-lo. Harold Bloom? Wilson Martins, mesmo sabendo tudo de literatura, precisaria saber tudo de religião; e de História do Mundo. Voltaire não perdoaria o "engajamento" em Antonio Candido. Sainte-Beuve poderia encarar Voltaire. Será que não encarou? (Deve ter encarado.) Claro, o humor inspirou o polemista Paulo Francis. Já as inconsistências que Voltaire encontra, na Bíblia sobretudo, antecipam os "estalos de Vieira" de Millôr. Traduzir o Dicionário Filosófico de Voltaire seria uma tarefa, por si só, hercúlea. No Brasil, quem foi o cristo que a encarou? (E em Portugal?) De Sartre, personagem do último romance inacabado de Francis, um biógrafo disse que "foi um século". De Voltaire, poderíamos dizer que foi... "mais de um século".
>>> Waaal ― O Dicionário da Corte de Paulo Francis | Dicionário Filosófico de Voltaire
|
|
Julio Daio Borges
Editor
Quem leu esta, também leu essa(s):
01.
O fim da revista Bravo!, na editora Abril (Além do Mais)
* esta seção é livre, não refletindo
necessariamente a opinião do site
|
|
|