Como numa casa de campo, passei meus dias de repouso. Casa cheia, cheiro de comida aguçando os sentidos o tempo todo. Ah, e a cerveja, a cerveja regada ao bem dará como os Deuses pedem. A paz e o silêncio existiam mesmo em meio a degladiações das incansáveis línguas. Lá, meus amigos, discos e livros faziam compania perfeita ao corpo cansado de seus limites. O anfitrião, soberbo de si, orgulhoso do lar construído, bigode anos oitenta, coração anos sessenta, talvez outrora um hippie desprendido da família em busca de aventura, agora um comandante do lar de mão cheia. A mãe era a mãe, bastava dizer isso, mulher de coração e alma, entregue ao bel prazer do lar, divertida e diversão. O cara, puro coração, uma flor no pantâno paulistano e, por quê não, mundial no qual nos encontramos. Não tão falador ou tão chamativo, porém de presença magnética. A caçula, meiga... a caçula, dona do encanto mistérioso que cerca esse tempo já distante nas brumas do passado, a caçula foi uma grata surpresa.
Após o natal, vem a tranqüilidade da capital mineira. Tranqüilidade que se estende até a quarta-feira de cinzas e toma forma de um enorme marasmo, capaz de fazer os mais nostálgicos sentirem falta do trânsito infernal, da poluição na Avenida Amazonas e daquela quantidade de gente fervilhando nas ruas.
De repente, todo mundo desaparece e BH volta ao que era há vinte anos. Num domingo desses, dá até para descer a Afonso Pena em carrinho de rolimã, ou comer pipoca no Pirulito da Praça Sete.
A cidade conta, oficialmente, com 2,3 milhões de habitantes. Nosso metrô é de fazer dó e, a cada dia, mais gente prefere arrumar um carro para ficar, confortavelmente, preso no engarrafamento, enquanto emite gás carbônico às pampas.
Todos os dias eu acordo e penso que somos muitos no mundo. Todos os meses, faço meu irmão (um douto demógrafo preocupado com a sociedade e o ser humano, ao contrário da irmã) relatar os índices do ibope em pormenores: quantos já somos? A quantos chegaremos em 10 anos? E em 50? Quando começaremos a ser menos? E faço os cálculos de mortes anuais no trânsito. Adiciono os 6 mil brasileiros mortos de tuberculose por ano, 3 milhões ao todo no mundo, mais um tanto por desastres naturais (furacões, tsunamis, terremotos e por aí vai) e chego à conclusão de que a natureza é sábia.
Meu irmão me diz que já chegamos aos 7 bilhões de pessoas em todo o globo. A expectativa caiu, graças a Zeus, nos últimos anos e não chegaremos a 12 bilhões como se acreditava, mas talvez a 10 bi. Ainda acho muito. Mesmo que me digam que a aceleração já parou e que, em 50 anos, o número começará a cair. Ainda assim, às vezes tenho pesadelos e imagino onde e como esses 3 bilhões de pessoas que estão por chegar se acomodarão. Os 3 bilhões de carros que vão querer ter, as casas que terão que ser construídas, a água que deverão usar, a energia e todos os benefícios a que qualquer pessoa deveria ter direito.
Nunca fui boa de números e menos ainda de distribuição espacial. Acabo tendo meus pesadelos, imaginando 3 bilhões de pessoas no meu quarto, dividindo não apenas o espaço, como também o ar que respiro. E me sinto sufocada.
Já convivo com 2 pessoas que se multiplicam exponencialmente durante férias, feriados, sábados e domingos. Após uma semana de convívio, começo a sentir uma comichão, uma vontade de me enclausurar na minha toca espaçosa de 12 metros quadrados. Sozinha. Não sei como conseguiria conviver com mais 3 bilhões de pessoas no mundo.
As pessoas precisam de um mínimo de distância para não enlouquecerem umas às outras. Até essa típica overdose familiar mineira irrita. E como irrita! Família é bom. Mas é melhor ainda quando há distância porque a gente passa a sentir falta e, quando encontra, não tem tempo para brigar.
Ok, nenhum homem é uma ilha. É verdade que depois de 8 meses de isolamento e falta de um abraço ou aperto de mão em país frio e franco, voltei ao Brasil com uma estranha e bizarra vontade de "me jogar para a galera". Nunca fui muito de futebol, mas realizei meu grande desejo num clássico com 80 mil pessoas no Mineirão: Cruzeiro e Flamengo em... 2003? Naquele ambiente único em que o contato físico é tão intenso que a gente sai do lugar sem precisar por o pé no chão. Flutuei, literalmente, enquanto a massa de torcedores me levava para a arquibancada. E, nessas horas, a "sobaqueira" toda vira perfume de rosas orvalhadas aos primeiros raios de sol da manhã. O suor da classe operária, dos trabalhadores braçais e dos intelectuais esportivos de domingo... Nunca pensei que pudesse cheirar tão bem. Como diria o Peter Gabriel, I have the touch.
Depois de saciada a necessidade tátil, voltei à condição sociopata, à ojeriza de atitudes pegajosas e a fugir de viagens de ônibus em horário de rush acebolado.
Sendo assim, eu deveria adorar a situação desértica de BH nesta entressafra de feriados e ficar por aqui. Por isso mesmo, não consigo entender essa tentação de passar o réveillon em meio a 2 milhões de criaturas que se estapearão nas areias de Copacabana ao som de fogos de artifício, mandingas e pedidos de paz e tranqüilidade.
Devo ser masoquista.
Masoquista ou não, feliz 2008 para todos, um abraço e... chega, já tá bom. Agora arreda um pouquinho prá lá, por favor.
Em O escritor e seus fantasmas Ernesto Sabato diz que o principal problema do escritor "Talvez seja o de evitar a tentação de juntar palavras para fazer uma obra. Disse Claudel [imagino que Camille, e não seu irmão] que não foram as palavras que fizeram a Odisséia, mas o oposto."
Sem querer de maneira alguma diminuir a questão levantada por Sabato, eu diria que o maior problema do escritor é a queda de energia. Acabei de perder um post, pois o estava escrevendo no Bloco de Notas. É que não gosto de escrever no Word. Na verdade, nem no micro, gosto mesmo é de escrever no papel. Mas, a partir de agora, usarei o Word, quando estiver escrevendo no pc.
Assim, colocaria o "evitar a tentação de juntar palavras" em segundo lugar na lista de problemas do escritor.
"A princípio, acho que nós, da periferia, somos tratados como se morássemos em outro país, um país considerado menor, na visão dos seus colonizadores. Somos a Palestina Brasileira. E como palestino me sinto no direito de lutar pelo meu território. Com pedras e poemas."
"Quando ele se inclinou aproximando a cabeça careca e brilhante um pouco mais perto de minha órbita, saltei de repente e dei um tapão na sua orelha com a palma da mão esquerda. Ela estava levemente dobrada em forma de concha, para proporcionar o máximo de energia ao impacto. Um volume isolado de ar é conduzido subitamente pela trompa de Eustáquio até o meio do cérebro em velocidade quântica, provocando dor, medo e insulto extremo ao tecido.
O monge cambaleou de lado e gritou, segurando a cabeça, agoniado. Depois caiu no chão e me xingou. 'Seu porco!', berrou. 'Por que me bateu e arrebentou meu tímpano?'"
Hunter S. Thompson, em Reino do medo (meu presente de Natal para mim mesmo), dando um surdão num monge, depois de um questionamento filosófico.
Em outubro, quase novembro, vi na TV uma propaganda com temas natalinos. Custei a crer. Será possível? Cheguei a conferir a data no relógio. Meu Jesus Cristinho, nem bem atravessamos a primavera e as lojas já começam a fazer a cabeça do consumidor. Nem vou tocar no assunto "religiosidade". Não vale a pena. O negócio é mesmo o consumo.
De outubro para cá, o número de cenas de árvores de Natal só aumentou na telinha. Meu filho, que não sabe bem do que se trata (ainda), pensa que Natal é sinônimo de luzes piscantes. Chama qualquer lanterna estragada de Natal. Por mim, tudo bem. Mas já andou perguntando sobre Papai Noel. Na dúvida, alimentei a fantasia. Qualquer coisa que ele peça, inclusive comer leite condensado na colherzinha, é atribuição do Papai Noel.
O shopping mais próximo da minha casa é bem na frente da obra da Linha Verde. Chegar até lá é uma cruzada cheia de aventuras. Atravessar a avenida leva alguns minutos, bastantes minutos, diga-se. E entrar naquele lugar é uma festa para os sentidos: cheiro de perfume nacional, coxinha e empada, decibéis acima do suportável, engarrafamento nos banheiros, preços nas alturas. As lojas novas já aparecem dos cantinhos mais improváveis. Ampliação do shopping bem na época do Natal, claro.
Mas Natal é muito chato. Ninguém mais acha não? Pois eu me regalo é com outras épocas do ano. Para quem não curte confusão e programa tosco, Belo Horizonte é o melhor lugar para se estar no Réveillon e, especialmente, no Carnaval.
As festas de família pipocam e as estatísticas de roubo de carros e arrombamentos vão ao auge nestas épocas. No Natal, muita festinha na varanda, muita bebedeira no quintal, muito acionamento de seguro, essas coisas. As famílias gastam alguns encontros definindo o amigo oculto, faixa de preço de 30 reais, bolsa de oncinha, carteira de couro sintético, CD do Calypso, não é? Comelança, como diz um amigo. Detesto comida salgada misturada com doce. Não como passas no arroz à grega. Dá um trabalhão separá-las no canto do prato. Azeitona preta me dá azia. Não suporto nem o cheiro do panetone. Come, come, bebe, bebe. E eu que não tomo cerveja de nenhuma espécie? O jeito é participar, bater papo e não ligar muito. Torcer para o dia passar, aí vem o réveillon. Fogos de artifício e meu filho morrendo de medo. Medo de foguete, acho.
Presente meia boca, declarações de amor insossas, até mesmo falsas. Viagens de férias para disputar sombrinha na areia de alguma praia. Aventura no deserto. E BH mais nossa. Cinema à vontade, vaga para parar o carro na rua, até os flanelinhas vão para Cabo Frio. As moças compram biquínis caros e fazem marquinhas de bronzeamento na altura da anca. Uma graça.
Papai Noel deve estar de saco cheio. Meu filho só pensa em Hot Wheels. Tudo é carrinho. Não pode ver uma linha atrás da outra que diz que é pista. Não pode abrir a porta de casa que quer ver carro batido. Impressionante. E a gente compra Maisto pra ele pensando que engana. É que nem quando minha mãe me deu um Bamba no lugar de um All Star. Pensou que enganava minha sede de consumo da marca bacana, dos tênis de cano alto, mas se deu mal. Ou eu é que me dei mal. Não é que Bamba fosse ruim, o nome é até mais bacana, mas é que a grife não era aquela norte-americana. Não é não?
E lá vou eu comprar presentes. A família cresceu em 2007. São irmãos e seus pares, filhos, enteados, tios bacanas, retribuição de favores. Lá vou eu procurar bagulhos bacanas pra marcar esta data. Todo mundo louco pra ver 2007 pelas costas. Não foi um ano bom para muita gente. Demissão, assalto, seqüestro, é isso aí, mas deu pra esconder uma graninha dos bandidos que entraram em casa. A mensalidade da escolinha aumentou. Ano que vem serão 15 reais a mais por mês. Por enquanto. Lá vou eu. Mas eu bem que gosto de ir às feiras de artesanato chique. Lá eu compro presentinhos mais baratos e exclusivos para as pessoas de que realmente gosto. Há outras tantas que bem mereciam um presente, mas a grana está curta, não dá pra sair da intenção tão cedo.
Natal é isso aí. O trabalho dá um tempo, a escola pára, não tem correria pra levar criança para a escola, a tia e a avó vêm do interior, a cidade fica intransitável. Papai Noel pede demissão a qualquer momento.
Há um ano, no especial "Melhores de 2006", escrevi que o melhor do brasileiro, culturalmente falando, era a sua estática cultural. Dizia o artigo que o brasileiro gostava de ser inerte quanto ao que se passava à sua volta, tendo alguns relances de consciência sócio-cultural quando mexiam no seu bolso.
Infelizmente, meu artigo não serviu em nada!
Para provar minha tese com episódios recentes (já que dizem que brasileiro tem memória curta e tem, senão o Collor não teria sido reeleito), vou comentar três fatos deste final de ano que não levaram a população a nenhuma reação:
a) Renan Calheiros foi absolvido pelo Senado Federal. O que vamos ensinar aos nossos filhos? Que roubar é amplamente legal;
b) Uma menina é estuprada por 40 pessoas em uma cela que não cabem 4. Que lição tiramos disto? Que não aprendemos nada com o livro Dos delitos e das penas, escrito em 1764, por Cesare Beccaria e a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU. O primeiro filosofa sobre o valor da pena e sua função, e o segundo "regula" a base legislativa penal para assegurar a dignidade da pessoa humana, que, desde 1948, de nada serviu aos brasileiros;
c) A fraude no concurso da OAB, secção São Paulo, e no concurso da polícia rodoviária federal, o que significa, desta vez sem retórica, o jeitinho brasileiro.
A partir destes acontecimentos, este ano mudei de idéia. Não acho que a população seja estática! Acho que ela é hipócrita. Não quer ver o que está à frente dela.
Puxa vida, nada dá certo no Brasil. Continuamos diariamente bombardeados com desgraças, planos econômicos públicos que viraram planos econômicos privados e um governo que subsiste à base do populismo.
A questão é: por que o futebol é tão mais importante do que discutir e se mexer, nem que seja um pouquinho, para acabar com as barbáries? Por que na frente do "país" falamos que está tudo ótimo, mas por trás reclamamos tanto?
Tenho minhas idéias. Falta, no brasileiro, competitividade. Somos ensinados, desde criança, a competir com moderação. Falar "eu sou o melhor", mesmo que você seja o melhor, soa esnobe e não realista. Assim, nos escondemos atrás da verdade, em prol da convenção social da hipocrisia.
Há culturas, como a norte-americana, onde as pessoas são incitadas a competir sem medo de "acusar" os incompetentes. Pelo contrário, sem apontar o desqualificado a criação de valores não vai para frente.
No Brasil, somos obrigados a conviver com desqualificados e preguiçosos, pois se apontarmos que determinada questão não se desenvolveu por causa de fulano ou sicrano somos "dedos-duros".
Cuidado: ser sincero, não é ser mal educado!
Ou mudamos nosso posicionamento ou teremos que conviver com as seguintes indagações: O Senado não tem culpa dos desvios morais de Renan? O delegado que acha que a menina se insinuou para os presos, realmente acha isto? E o jeitinho brasileiro, pode prejudicar a tudo e a todos?
A resposta: Sim, em nome da Hipocrisia! Chega de passar a mão na cabeça das pessoas...
Quando nos deparamos com uma crônica ou uma charge política nos jornais, não é difícil imaginar que seu autor aproveite o espírito sarcástico em outros momentos do cotidiano. O que nem todos sabem é que alguns vão além e aproveitam as piadas, trocadilhos, sátiras e críticas para criar arte. No caso dos irmãos Chico e Paulo Caruso, a arte em questão é música, mais especificamente o jazz. Junto com o escritor Luis Fernando Verissimo, formam a banda Conjunto Nacional, que se apresentou na última terça-feira no Bourbon Street. O show fez parte do programa Sala do Professor Buchanan´s, recém premiado pela APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) como melhor programa musical, apresentado por Daniel Daibem na Rádio Eldorado FM.
O Conjunto Nacional é formado por Fernando Barros (baixo), Pedro Barros (bateria), Sérgio Gama (guitarra), Paulo Caruso (piano e voz), Luis Fernando Verissimo (sax alto) e Chico Caruso (voz). A banda, que já gravou dois CDs, começou em 1985, no Salão de Humor de Piracicaba, onde vários artistas e humoristas se reuniram para fazer música. O nome que usaram no evento foi inspirado no slogan de Tancredo Neves, que havia falecido pouco tempo antes deste primeiro encontro. "Muda Brasil, Tancredo já!" se tornou "Muda Brasil Tancredo Jazz Band", título de uma das músicas do repertório. Verissimo também integra o Jazz Seis, grupo com quem já gravou quatro álbuns.
Fica claro que a banda não é daquelas que ensaiam muito. É a base instrumental sincronizada que segura a onda quando Chico Caruso esquece a letra ou pula alguma parte ― o que dá um toque ainda mais cômico à apresentação. Outro fator que diferencia o grupo de um conjunto de jazz tradicional é a performance cômica dos cartunistas. Ora se vestem de Bush e Bin Laden, ora colocam abacaxis na cabeça e cantam um samba, e por aí vai. "Muitas pessoas perguntam: por que você não faz música séria? E eu explico que já tem muito compositor romântico e sério. Acho que eu posso me divertir no processo, fazer algo diferente e juntar as duas artes, que é o desenho e a música", justifica Paulo Caruso.
A primeira parte da apresentação foi comandada por Daibem, que entre uma música e outra fazia perguntas, dava dicas sobre jazz e trocava informações com os músicos. "Aqui no Sala a gente tenta desvendar o universo do jazz, esse ritmo que nasceu da simplicidade do povo negro, depois ficou mais elitizado. Queremos tirar o jazz do gueto", explica Daibem, que também é músico (guitarrista) e até deu uma canja em uma das músicas apresentadas no show.
Um dos números que mais arrancou risadas da platéia foi a canção "Bom é ser presidente", que, de refrão em refrão, Chico Caruso imitava um presidente do Brasil e, com um pente, ia mudando o penteado para ficar mais parecido com o político que satirizava. Com essas performances eles conseguem sintetizar na música todo o humor e a criatividade das charges com a postura crítica necessária para tratar de um assunto sério, que é a política. As letras, todas muito criativas, relatam episódios ou ajudam a caracterizar o personagem que estão destacando.
O clima alegre e divertido das canções e performances dos irmãos Caruso casou muito bem com o perfil do programa da Eldorado. O apresentador, que normalmente já cria uma atmosfera mais descontraída em um ambiente cada vez mais sisudo (e até frio), quebrando as barreiras entre os músicos e o público de jazz, não precisou se esforçar muito para que isso ocorresse no último Sala. "O jazz é uma linguagem sedutora, basta você se dispor a ouvir", afirma Paulo Caruso. A missão foi cumprida e bem sucedida: além de ouvir, quem estava no Bourbon na última terça também aprendeu um pouco mais sobre o ritmo e ainda pôde se divertir.