Salvei um copo. Fui apanhar o cinzeiro na mesa, esbarrei no copo que rolou até a beirada. Minha mão trêmula da ressaca conseguiu alcançá-lo a tempo. Talvez nem tudo esteja perdido.
A vizinha discute com o marido. Ela fala do som alto que eu ouvi até de manhã. Ele parece que não liga muito. O cara é meio surdo, fala alto e cuspindo e ela diz pra ele não cuspir nela. Diz que se ele fosse homem me dava um tiro na cara, que a vida deles virou um inferno desde que mudei pra cá.
Esses dias, encontrei o cara com o ouvido encostado no outro lado do muro, sentindo as vibrações do meu som. Pensei em ir lá, mas ao mijar e me ver no espelho, desisti. Acho que ela tem razão, eu mereço um tiro na cara. Meus dentes parecem pequenos cadáveres. Meu rosto cansado e sofrido não me diz mais nada. Não, não tinha jeito.
Olhei pela janela e eles ainda estavam lá. O cara ficava olhando pra boca da mulher com a única cara que ele, naquela altura da vida, poderia ter. Foi aí que me veio a idéia. E se eu comesse a vizinha? Quem sabe ela parava de brigar um pouco com ele, eu já não agüentava mais ver aquilo. Liguei o chuveiro pra fazer a barba.
Ele trabalhava numa fábrica de sapatos ou de absorventes. Saía cedo e só voltava no início da noite. Ela ficava lá, lavando, cozinhando, e sempre tentava acompanhar o rádio com aquela voz horrível, com aquele corpo horrível. Mas eu também era horrível. Naquela vizinhança, ninguém sabia o que era o amor. Talvez um casal de estudantes que morava há três ou quatro casas à minha direita. Eles ainda não haviam vivido o suficiente.
Era sempre assim, tudo uma questão de tempo.
José Guilherme Fidelis, no seu artificcional, que linca pra nós.
Como sempre, resolvi onde iria passar meu réveillon no derradeiro momento. Recebi um convite em cima da hora de uns primos, naquele esquema carnavalesco que agora é chamado "0800", ou seja, sem pagar nada, e me mandei para o Rio.
Embora a turma toda fosse animada e muito gente boa, deixei-os para encontrar outra turma tão animada e gente boa quanto e que, até então, eu acreditava ser mais séria, sisuda e caladona (rá! Ledo engano.). Lá pelas tantas, fui encontrar outros colunistas do Digestivo Cultural ― Ram, LEM, Diogo Salles e Rafael Lima ― para o nosso réveillon.
Pela internet, esses Digestores sempre me pareceram sérios demais. É um tal de discutir utilidade de papel em era digital, a necessidade de publicar, Paulo Francis aqui, o fim das redações de jornal acolá. Sei não, às vezes me sentia meio burrinha no meio de todo esse chumbo cruzado via lista de discussões. Ficava pensando se eu era a única ali que estava a fim de tomar um vinho, uma cerveja, ou até um sorvete; andar na praia ou numa alameda e fazer como o touro Ferdinando, que "só cheiraaaava as flores", ou fazer qualquer coisa que cobrasse menos do meu Tico-e-Teco.
Antes de colaborar no DC, eu já conhecia a Ana Elisa, ou Ana ê, para os chegados, o Guga e o Marcelo Miranda, também confundido com o governador do Tocantins. E só. Todo o resto do quadro de colaboradores, editores e colunistas era apenas verbo para mim. Verbo e ilusão, porque, queira ou não, a gente acaba imaginando um monte de troço sobre as mãos que teclam esses e-mails que a gente recebe.
E já pisei no Rio, cometendo gafes. A primeira foi ligar para o LEM e perguntar qual era o nome do Ram. Sim, porque LEM não é Luís? Ram, decerto, deveria ser Roberto, Ricardo, Renato ou sabe-se lá o quê. Um cara tão simpático que nunca me viu e me convida para passar o réveillon com eles, em sua casa, em meio a sua família... Eu deveria saber ao menos seu verdadeiro nome. E aí, descobri que o nome do Ram é "Ram" mesmo. Tudo bem, quem sou eu para dizer que este é um prenome incomum?
Só fui entender quando cheguei ao apartamento dele e a irmã abriu a porta. Enquanto eu deixava minhas sandálias ao lado da porta e todos me cumprimentavam, a mãe do Ram atravessou a sala, usando um sari lindo. A casa era toda decorada com motivos indianos e aquela gente tinha um bronzeado natural que nós, mortais brasileiros, nunca vamos conseguir ter. A confirmação da ascendência indiana veio quando alguns convidados abriram a boca e começaram a conversar em hindu, inglês e outro dialeto que, por mais que me esforce, não me lembro o nome. Diz aí, Ram.
Após o cumprimento inicial e suando às bicas, por conta do calor carioca e do trajeto feito à pé, juntei-me aos descalços na sala. E aí eu constatei algo que julgava impossível, até então: existe gente no mundo que fala mais e mais rápido do que eu. Senhoras e senhores, prezados amigos, ponham o Ram e o LEM para conversar e tomem seus lugares. Ver esses dois conversarem é um espetáculo à parte: por mais rápido que nossas cabeças "ping-pongueiem" de um lado para o outro, é difícil acompanhar o ritmo da conversação.
Eu e o Rafael até tentávamos aproveitar uma brechinha ali, vez por outra, mas o Diogo ficava com uma expressão meio assustada com aquele turbilhão de informações todas. Quando eu liguei os fatos e lembrei que o Diogo era o das caricaturas, fiquei preocupada. Essa gente que desenha e fica calada observa tudo e um dia, certamente, usará isso contra os que falam pelos cotovelos.
Ficamos um bom tempo nesse embate, tomando vinho e falando mal da vida alheia. Ao vivo, o LEM, com sua voz de locutor, é muito... er, digamos, peculiar? Exótico? Indefinível, talvez fosse a palavra. Até o último minuto de 2007, tive a impressão de estar do lado de um niilista convicto, um carioca de alma paulista ou um brasileiro de alma britânica. Mas em 2008 ele resolveu assumir suas raízes e seu amor pelo samba-enredo. Se eu tivesse ficado mais tempo, talvez tivesse presenciado uma confissão de amor por Duque de Caxias, ou pelos bailes funks da periferia carioca, quem sabe. Mas a verdade é que ele parou no samba-enredo.
O Ram, com sua voz de dublador de desenho animado, e o Rafael tentavam convencer o LEM e o Diogo que eles estavam em estados trocados. O primeiro deveria ir para São Paulo e o segundo, ficar de vez no Rio. Mas eu sou apenas uma mineira e não me meto nesses qüiproquós do eixo.
Tivemos uma ceia indiana, com direito a grão-de-bico e uma mesa repleta de sobremesas, entre elas um doce de cenoura. Havia carne também, mas como eu não como nada que tenha mais de duas patas e adoro um mato, essa foi a parte que me interessou mais.
Em seguida, fomos ver os fogos na orla de Copacabana. O Ram se perdeu de nós, na hora, o LEM não queria por os pés na areia e, então, fomos eu e a Adriana, a simpática namorada do Diogo, pular as sete ondinhas ― eu sou supersticiosa mesmo, e daí? ―, enquanto o Rafael e o Diogo assistiam àquela "pataquada". Numa dessas sete ondinhas, meu celular caiu no mar e só fui dar pela falta dele já voltando para o apartamento do Ram.
Na volta, o papo foi um pouco mais cabeça-espiritual. Discussões sobre profissão, as exigências fora do País e aqui no Brasil etc. O Ram com o dilema da pós nos EUA e o Rafael com saudades dos cangurus australianos. Tá bom, houve uma hora em que ficaram falando sobre mulher e ele se lembrou das australianas, enquanto o LEM sonhava com uma francesa peluda*.
Eu me lembro de ter dito que escreveria sobre algum ponto específico tratado nesse encontro, mas acho que o teor etílico apagou o assunto da minha cabeça. Se alguém lembrar, complete a história, por favor.
Se é verdade o que dizem, passarei o ano de 2008 rindo até desopilar o fígado. Cheguei em casa às 4h da manhã, com a impressão de ter tido um excelente réveillon. E isso foi tão bom quanto o fato de ter conhecido essa gente agradável.
* É preciso dizer que a questão capilar aqui descrita ainda é um ponto nebuloso e controverso na discussão dos Digestores...
Lá pelos idos de 1987, quando eu tinha sete anos de idade, já era fã incondicional de Ludwig van Beethoven. Certa noite estava sem sono e comecei a "zapear" os canais. Parei num filme que me chamou a atenção por ter como trilha sonora as sinfonias do grande mestre alemão. Fiquei encantada, mas logo percebi que não se tratava de um filme normal ou mesmo suave. Era um filme forte, tenso e dinâmico, assim como as músicas de Beethoven, entretanto a violência era explícita. Laranja Mecânica, de 1971, muito tempo antes de eu pensar em nascer, foi-me apresentado dessa forma, assim como o diretor americano Stanley Kubrick.
O filme é espetacular, violento, provocativo, polêmico, beethoveniano, e nos leva a refletir sobre o sistema em que vivemos e como ele trata jovens delinqüentes. A trama é futurista e, para demonstrar o mundo moderno, fala-se uma língua quase própria, algo como "gírias futuristas". Nesse sentido, o livro A clockwork orange (título original), de Anthony Burgess, é mais envolvente. A linguagem das primeiras páginas parece coisa de maluco, nada se compreende, mas com o decorrer da leitura, gírias como "ultraviolência", "druguis" (os amigos Pete, Georgie e Dim) e "o velho entra e sai" (referindo-se a sexo) tornam-se parte do nosso vocabulário e passamos a utilizá-lo em nosso dia-a-dia. Claro que, quem o fizer, passará por louco. De qualquer forma, os agressivos jovens do filme estupram, espancam e, para "eliminar" esse instinto violento, um deles é preso e passa por uma lavagem cerebral tão violenta quanto suas ações.
Outros filmes tão polêmicos estão sendo exibidos no Centro Cultural São Paulo para homenagear a carreira de Stanley Kubrick, que em 26 de julho deste ano completaria 80 anos de idade. Sua ampla obra pode ser vista, gratuitamente, até dia 13 de janeiro, mas, para quem perder, corra à locadora mais próxima e faça da sua casa um cinema com filmes de qualidade. O Centro Cultural exibirá filmes clássicos, famosos, e outros nem tão famosos assim. O público terá a oportunidade de rever ótimos filmes, como Laranja Mecânica, Lolita, O Iluminado, Barry Lyndon, Dr. Fantástico, 2001: Uma odisséia no espaço, Nascido para matar, e alguns dos mais recentes, como De olhos bem fechados, seu último filme; isso para não citar outros tantos.
Kubrick é considerado um excelente cineasta, com várias obras-primas, como as citadas acima; entretanto, há que se dizer que muitos de seus longas são tão lentos que beiram a sonolência. Explico: 2001: Uma odisséia no espaço, de 1968, uma epifania espacial, é classificado como uma de suas grandes obras, e é realmente, para muitos, a melhor ficção científica já produzida. Tal filme inaugurou uma era, foi totalmente original, e Kubrick conseguiu uma eficácia singular em passar o sentido de sua mensagem quando construiu a subjetividade da cena com imagem e música. A contagiante Also sprach Zarathustra, obra de Richard Strauss ― que era para ser provisória ― foi imortalizada nas telas de cinema, trazendo força, intensidade e, de certa forma, personalidade ao filme.
A história da tripulação de uma espaçonave, que é enviada para investigar o aparecimento de um monolito na órbita do planeta Júpiter, mas que possui um computador de bordo que revela tendências psicóticas e decide atacar os astronautas, é definitivamente interessante e possui imagens revolucionárias para a época. Entretanto, é um filme mais para se admirar do que qualquer outra coisa. Para muitos, pode ser chato e tedioso o fato de o primeiro diálogo aparecer somente 20 minutos após o início da película, mas tal fato chama a atenção para o mundo ali apresentado. Realmente, algumas pessoas podem achar o filme tão lento, que terão que ter muita paciência e café para conseguir assistir até o final. Kubrick gostava de assuntos futuristas, estava sempre de olhos bem abertos para o futuro.
Falando nisso, seu último filme De olhos bem fechados, de 1999 ― último filme também de Nicole Kidman e Tom Cruise juntos, pouco antes da separação do casal após 10 anos casados ―, é polêmico e confuso ao mesmo tempo. Como em muitos filmes de Kubrick, há violência, morte, sensualidade e nudismo. Apesar de pouco dinâmico, o filme é envolvente e perturbador. O casal Kidman e Cruise, que viviam uma crise conjugal durante as filmagens, interpreta outro casal também em crise. Depois que sua esposa admite ter desejos sexuais por outra pessoa, o médico William Harford é jogado numa aventura erótica que ameaça seu casamento e que o envolve em um misterioso caso de assassinato. Polêmico sim, mas definitivamente instigante.
Muitas histórias sobre guerra também povoam os filmes de Stanley Kubrick. Glória feita de sangue, de 1957, com o belíssimo Kirk Douglas, passa-se durante a Primeira Guerra Mundial, e tem como trama principal a traição em nome da manutenção do poder. Indo mais a frente na História, mais precisamente à Guerra do Vietnã, temos Nascido para matar, de 1987, em que jovens têm que combater os horrores de tal guerra.
Outro filme polêmico e aterrorizador é O Iluminado, de 1980, que tem como protagonista ninguém menos que Jack Nicholson. Baseado no romance de Stephen King, Kubrick conta a história do escritor que aceita um emprego para tomar conta, junto com a família, de um hotel isolado nas montanhas e passa a ter alucinações. Apesar de receber críticas ferrenhas, O Iluminado sem dúvida é um dos filmes de terror psicológico mais assustadores de Kubrick.
É impossível falar de toda obra de Stanley Kubrick aqui. Vale a pena conferir o festival em sua homenagem ou mesmo alugar os DVDs, para que se conheça a obra desse polêmico cineasta que faleceu em Londres, em março de 1999, logo após finalizar seu último filme.
Por que a gente nunca fica feliz por completo? Queria entender. Saber explicar. E tentar mudar. É que uma hora eu quero. Quero muito. Mas, logo em seguida, não quero mais. E isso é chato, meio complicado. Porque eu nunca sei direito o que eu quero e o que eu não quero. Então, a minha vontade é ficar parada. Sem querer e não-querer nada. Mas é até meio sem graça isso. E é nessas horas em que eu passo a achar tudo assim. Ao contrário de ontem. Onde a graça era maior que todos os maiores possíveis de se existir nesse universo que a gente conhece e no que a gente desconhece também. É uma inconstância que me trástraz umas dores, uns sentimentos que eu queria encarar como banais. Queria fechar os olhos e fingir não enxergá-los. Mas não há empecilhonada que os contenha. Eles não têm a dureza da minha pouca força. Da minha forçada determinação para mudanças. Eu preciso esquecer. Preciso lembrar. Preciso correr. Preciso ter calma. Quero um abraço. Quero abraçar. Queria me odiar um pouquinho menos. Porque eu me odeio muito, muito, muito. Porque eu não aceito as minhas perdas e nem acredito nas minhas conquistas. Como pode alguém ser feliz assim? O pior é que eu tenho a consciência plena... De tudo, ou quase tudo. De bastante coisa. Sabe o que eu faço pra mudar? Nada! Nadinha. Nada-nada-nada. E então eu me odeio mais ainda. Com as forças que tenho e com as que não tenho. Parece até que eu me realizo ao saborear esse gosto. Mas não é. E isso me faz odiar-me ainda mais. As minhas aparências para mim mesma. As minhas dúvidas de mim mesma. As minhas suspeitas de mim mesma.(...)
Giselle Lucena, no seu blog, que, claro, linca pra nós.
O ano nem bem começou, mas já foi dada a largada para as homenagens ao Centenário da Imigração Japonesa, a ser comemorado em junho. Um exemplo é a exposição "JAPÃO: Um perto distante", no Espaço Nossa Caixa Arte e Cultura. Com curadoria de dois artistas japoneses, André Oliveira e Sheila Oi, que também apresentam obras na exposição, ela é composta por 13 jovens artistas e 17 obras que abordam a terra do sol nascente e a segunda maior economia do mundo.
Apesar de envolvidas pela mesma temática, elas apresentam influências distintas. São fotografias, xilogravuras, impressões digitais, lápis de cor, grafite, estêncil e cerâmicas que reúnem elementos da cultura japonesa contemporânea e tradicional. O mais interessante é quando conseguem fundi-las em uma mesma obra, como os leques, de Fátima Lima, um com uma leitura oriental (Ninguém sabe) e o outro ocidental (Continuam sem saber), ambos com kanjis em sua composição para mostrar o diálogo entre as duas culturas. As figuras de gueixas que se encontram em meio ao conflito entre desejos e deveres são influenciadas por gravuras e o teatro japonês. No leque com leitura oriental, não há uma estrutura narrativa, mas um ciclo. No outro, temos uma história e a evolução de sentimentos, tão conhecida por nós.
Ni gen sei ― Sheila Oi
Já o detalhado conjunto de peças de cerâmica Preto e Branco, de William Iamazi Ferro, é uma homenagem a dois personagens de um clássico do Mangá criado por Taiyo Matsumoto. As duas figuras se completam em uma referência ao Yin Yang. Como na obra original, retrata dois meninos de rua inseparáveis que moram em um cenário urbano dominado por gangues, sendo o Preto racional e, eventualmente, violento por necessidade. Já o Branco representa a inocência e tem uma mentalidade infantil e fantasiosa. A história de de Mtsumoto trata de amizade e equilíbrio entre o bem e o mal, na sociedade e dentro de nós, um dos pontos fundamentais da filosofia nipônica.
Outra obra interessante é História do mendigo, de Shin Moromisato, que é atravessada por outra narrativa, Corredor de Pedestres. A técnica utilizada chama atenção: o cliche-verre, confecção de negativo a partir da raspagem de uma superfície preparada, usando técnicas de grafismo ou frotage. O artista também utilizou a Van Dyk e cianotipia, técnicas de revelação e impressão de negativos a partir de misturas de compostos químicos fotossensíveis, relacionadas com o Mangá.
Para ir além
"JAPÃO: Um perto distante" ― Espaço Nossa Caixa Arte e Cultura ― Rua Álvares Penteado, 70, 2º mezanino ― Centro, São Paulo ― Até 11 de janeiro de 2008 ― De segunda a sexta, das 10h às 16h ― Entrada Franca ― Informações ― Tel.: (11) 3244-6838 ou 3244-6839
Como numa casa de campo, passei meus dias de repouso. Casa cheia, cheiro de comida aguçando os sentidos o tempo todo. Ah, e a cerveja, a cerveja regada ao bem dará como os Deuses pedem. A paz e o silêncio existiam mesmo em meio a degladiações das incansáveis línguas. Lá, meus amigos, discos e livros faziam compania perfeita ao corpo cansado de seus limites. O anfitrião, soberbo de si, orgulhoso do lar construído, bigode anos oitenta, coração anos sessenta, talvez outrora um hippie desprendido da família em busca de aventura, agora um comandante do lar de mão cheia. A mãe era a mãe, bastava dizer isso, mulher de coração e alma, entregue ao bel prazer do lar, divertida e diversão. O cara, puro coração, uma flor no pantâno paulistano e, por quê não, mundial no qual nos encontramos. Não tão falador ou tão chamativo, porém de presença magnética. A caçula, meiga... a caçula, dona do encanto mistérioso que cerca esse tempo já distante nas brumas do passado, a caçula foi uma grata surpresa.
Após o natal, vem a tranqüilidade da capital mineira. Tranqüilidade que se estende até a quarta-feira de cinzas e toma forma de um enorme marasmo, capaz de fazer os mais nostálgicos sentirem falta do trânsito infernal, da poluição na Avenida Amazonas e daquela quantidade de gente fervilhando nas ruas.
De repente, todo mundo desaparece e BH volta ao que era há vinte anos. Num domingo desses, dá até para descer a Afonso Pena em carrinho de rolimã, ou comer pipoca no Pirulito da Praça Sete.
A cidade conta, oficialmente, com 2,3 milhões de habitantes. Nosso metrô é de fazer dó e, a cada dia, mais gente prefere arrumar um carro para ficar, confortavelmente, preso no engarrafamento, enquanto emite gás carbônico às pampas.
Todos os dias eu acordo e penso que somos muitos no mundo. Todos os meses, faço meu irmão (um douto demógrafo preocupado com a sociedade e o ser humano, ao contrário da irmã) relatar os índices do ibope em pormenores: quantos já somos? A quantos chegaremos em 10 anos? E em 50? Quando começaremos a ser menos? E faço os cálculos de mortes anuais no trânsito. Adiciono os 6 mil brasileiros mortos de tuberculose por ano, 3 milhões ao todo no mundo, mais um tanto por desastres naturais (furacões, tsunamis, terremotos e por aí vai) e chego à conclusão de que a natureza é sábia.
Meu irmão me diz que já chegamos aos 7 bilhões de pessoas em todo o globo. A expectativa caiu, graças a Zeus, nos últimos anos e não chegaremos a 12 bilhões como se acreditava, mas talvez a 10 bi. Ainda acho muito. Mesmo que me digam que a aceleração já parou e que, em 50 anos, o número começará a cair. Ainda assim, às vezes tenho pesadelos e imagino onde e como esses 3 bilhões de pessoas que estão por chegar se acomodarão. Os 3 bilhões de carros que vão querer ter, as casas que terão que ser construídas, a água que deverão usar, a energia e todos os benefícios a que qualquer pessoa deveria ter direito.
Nunca fui boa de números e menos ainda de distribuição espacial. Acabo tendo meus pesadelos, imaginando 3 bilhões de pessoas no meu quarto, dividindo não apenas o espaço, como também o ar que respiro. E me sinto sufocada.
Já convivo com 2 pessoas que se multiplicam exponencialmente durante férias, feriados, sábados e domingos. Após uma semana de convívio, começo a sentir uma comichão, uma vontade de me enclausurar na minha toca espaçosa de 12 metros quadrados. Sozinha. Não sei como conseguiria conviver com mais 3 bilhões de pessoas no mundo.
As pessoas precisam de um mínimo de distância para não enlouquecerem umas às outras. Até essa típica overdose familiar mineira irrita. E como irrita! Família é bom. Mas é melhor ainda quando há distância porque a gente passa a sentir falta e, quando encontra, não tem tempo para brigar.
Ok, nenhum homem é uma ilha. É verdade que depois de 8 meses de isolamento e falta de um abraço ou aperto de mão em país frio e franco, voltei ao Brasil com uma estranha e bizarra vontade de "me jogar para a galera". Nunca fui muito de futebol, mas realizei meu grande desejo num clássico com 80 mil pessoas no Mineirão: Cruzeiro e Flamengo em... 2003? Naquele ambiente único em que o contato físico é tão intenso que a gente sai do lugar sem precisar por o pé no chão. Flutuei, literalmente, enquanto a massa de torcedores me levava para a arquibancada. E, nessas horas, a "sobaqueira" toda vira perfume de rosas orvalhadas aos primeiros raios de sol da manhã. O suor da classe operária, dos trabalhadores braçais e dos intelectuais esportivos de domingo... Nunca pensei que pudesse cheirar tão bem. Como diria o Peter Gabriel, I have the touch.
Depois de saciada a necessidade tátil, voltei à condição sociopata, à ojeriza de atitudes pegajosas e a fugir de viagens de ônibus em horário de rush acebolado.
Sendo assim, eu deveria adorar a situação desértica de BH nesta entressafra de feriados e ficar por aqui. Por isso mesmo, não consigo entender essa tentação de passar o réveillon em meio a 2 milhões de criaturas que se estapearão nas areias de Copacabana ao som de fogos de artifício, mandingas e pedidos de paz e tranqüilidade.
Devo ser masoquista.
Masoquista ou não, feliz 2008 para todos, um abraço e... chega, já tá bom. Agora arreda um pouquinho prá lá, por favor.