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Quarta-feira, 6/9/2006 Nêumanne contra a Wikipedia Julio Daio Borges O Nêumanne sempre foi um grande amigo do Digestivo. Devemos a ele um dos nossos primeiros reconhecimentos públicos. E o Nêumanne ajudou a inaugurar, junto com o Daniel Piza, o Giron e o Sérgio Augusto, a seção Ensaios do site - cedendo, sempre de bom grado, seus textos para republicação. Mas eu recebi, por e-mail, um texto do Nêumanne sobre a Wikipedia (ou, em português, "Wikipédia") e me vejo, agora, quase na obrigação de rebater algumas críticas que ele fez à conhecida enciclopédia livre e, mais genericamente, à internet. Dentro dos temas de sempre do Nêumanne, é, na verdade, mais uma crítica às iniciativas do ministro Gilberto Gil, sistematicamente em direção ao Creative Commons, e aos candidatos do horário eleitoral gratuito (mais especificamente, aos petistas, mensaleiros e sanguessugas, que se (re)apresentam como se nada fosse...). Partindo de uma hipótese apocalíptica, Nêumanne começa seu artigo afirmando que vivemos "sob a égide da desconstrução", e da "desinformação" - que o conceito de "enciclopédico" está perto do fim e que a organização do conhecimento está, hoje, "fora de moda". É verdade que os "desconstrucionistas" de plantão andaram muito em voga no século XX, e eu concordo que a "evolução" das fontes de informação no mesmo período (jornal para revista, rádio para televisão) não contribuiu em nada para a educação do povo. Mas, depois da internet, da WWW e, principalmente, do Google, não dá para simplesmente dizer que "a organização do conhecimento está fora de moda". Nem entrei na Wikipedia ainda, mas o Google, por exemplo, é um esforço - como certamente nunca houve - de organizar o maior repositório de informações sobre a humanidade até hoje: a internet. E o Google é, coincidentemente, a mais bem sucedida empresa de internet hoje em dia. (E o Google vai dominar o mundo, como a Microsoft dominou, você tem alguma dúvida?) O tamanho do Google, sua influência e seu valor de mercado são, portanto, a prova de que o desejo de organização, a "fome por conhecimento" e até a ambição "enciclopédica" estão mais vivos do que nunca. Ninguém tem Diderot ao alcance do Messenger (ou do Skype), mas tem o Google e tem a internet. Eu prefiro; e você? Nêumanne então introduz subliminarmente alguns conceitos do Creative Commons - um movimento que procura conferir maior flexibilidade ao direito autoral (nos EUA, às leis de copyright) - mas interpreta tudo à sua maneira. Segundo ele, Gilberto Gil estaria, no fundo, trabalhando pela "demolição da autoria" e tirando definitivamente o direito de quem produz de viver da sua própria produção. Nem vou entrar aqui no mérito de que, no Brasil, só uma meia dúzia (Gil entre os poucos) vive de "arrecadação" de direito autoral. Vou entrar, sim, na discussão do Creative Commons... Para começar, o Creative Commons não é obrigatório para todos. Depois: quem define o tipo de licença (que determina o "uso" da obra) é o próprio autor. Ou seja: o Creative Commons não acaba com o direito autoral - apenas abre mais uma possibilidade para quem quer compartilhar, mais livremente, sua própria produção. Logo adiante, Nêumanne proclama que, atualmente, a "criação estética está submetida à coletivização" e que vivemos "sob o domínio do apócrifo". Então, para ele, a Wikipedia seria nada mais que "uma brincadeira de hackers", e que, devido à "criatividade" (no mau sentido do termo) e às "idiossincrasias" dos autores dos verbetes eletrônicos, a Wikipedia é, em resumo, uma "anti-enciclopédia". Para início de conversa, ninguém está submetendo ninguém à "coletivização". Na internet, a propósito, os blogs são hoje, pelo contrário (!), a maior manifestação de vozes individuais em muito tempo (ainda, claro, que muitas não tenham nada a dizer e que muitos só ressuscitem ultrapassadas escolas de pensamento...). Depois: embora haja muito pseudônimo na Web, há mais gente aparecendo, no balanço, do que se escondendo - mais assinaturas do que apócrifos. Por último, a Wikipedia, se for mesmo uma brincadeira, é uma brincadeira séria - que já dura meia década. Não foi fundada por hackers, não é alimentada só por eles e não é possível que o velho Nêumanne não conheça a comparação que a revista Nature fez entre a Wikipedia e a Enciclopédia Britânica... Tanto na profissional quanto na "amadora", em verbetes aleatórios de ciência, foi encontrado o mesmo número de erros. A Wikipedia, portanto, é tão falha quanto a outra. Por fim, não é a vitória das "versões" sobre os "fatos" (embora Nélson Rodrigues, por exemplo, preterisse futebolisticamente os fatos: "Se os fatos estão contra mim, azar dos fatos - pior para os fatos".) Os fatos, aliás, nunca estiveram tão à disposição das pessoas como estão hoje (fatos, inclusive, que nem gostaríamos de revelar - fatos que dizem respeito à nossa privacidade...). A diferença é que, com a abertura dos canais de comunicação, você encontra versões, em número praticamente infinito, para tudo o que quiser. Todo mundo pode, em princípio, dar sua versão de qualquer coisa. O Nêumanne, volto a repetir, é alguém muito importante na história do Digestivo. E eu sei que sua crítica é, no fim das contas, política (usando, como gancho, a WWW e a Wikipedia). Mas me preocupa, ainda assim, certa mentalidade, originalmente da classe jornalística, que persiste, para com a internet (como se ela e a imprensa fossem inimigas...). O Nêumanne teve apenas a coragem de expor. O fato - e não a versão - é que os jornalistas estão mais preparados do que qualquer outra categoria para a World Wide Web. Pena que nem todos perceberam ainda... Julio Daio Borges |
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