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Quarta-feira, 1/8/2007 Ouro Preto 2007 Camila Martucheli Vontade de sentir um ventinho frio no rosto, passear por ladeiras carregadas de energias ancestrais, respirar cultura em volta de artistas e seus admiradores por todos os lados. A expectativa por essas sensações, com algumas horinhas de atraso, se concretiza às cinco da tarde quando chego a Ouro Preto, com o carro recepcionado por palhaços em performances no Centro. Do hotel direto para o Centro de Convenções, subindo ladeira, esquentando o corpo, e com a credencial rumo ao Anexo I. Confortavelmente no carro da produção chego no horário para jantar em um Deguste (o restaurante), para meu espanto, vazio. Logo estou acomodada para a minha primeira atividade no Festival de Inverno. Às sete da noite, Ruanda in memorian de Samba Félix N'Diaye é exibido. O documentário integra a Mostra "A África se Filma". Em um festival marcado por homenagens à cultura africana e à história de Chico Rei, Ruanda in memorian foi escolha certa quando se quer mostrar ao mundo as mazelas que o povo negro sofre. Em meio a Copa do Mundo de 1994 e o fim do Apartheid, um genocídio ideológico matava cerca de 500 mil pessoas em Ruanda. O documentário mostra, através de entrevistas com sobreviventes e historiadores, como os Tutsi e os Hutus se mataram e foram mortos pela força militar naquela época. Fatos e imagens que até então não tinham sido mostrados de maneira crua e verídica para o mundo. O filme é composto de muitos fade out, imagens detalhistas, estagnadas em rostos assustados ou tristes, casas cheias de corpos mumificados em Murambi, cujos mortos ainda não foram enterrados, em conjunto com crianças esperançosas que brincam e jogam bola na cena ao lado. Dentre as várias imagens e informações, são os mortos, famílias inteiras em suas casas no campo em que foram dizimadas, sem pele, mas com expressões de dor ainda reconhecíveis. "É preciso enterrar os mortos", diz uma mulher, que parece não ser ouvida. Não se pretende tornar Murambi, o campo em que foram mortas milhares de pessoas, um ponto turístico. Estas imagens hoje não podem ser desfeitas, é preciso antes que o mundo veja as testemunhas desse genocídio causado pelo desejo de se acabar com uma raça. No final, uma música alegre e imagens feitas em movimento de dentro de um carro mostrando a despedida dos cineastas daquela terra. Era necessário divulgar em novo ângulo a história outrora esquecida. Do choque à metáfora do cotidiano: às 20h30, de encontro ao Grupo Espanca!, com a peça Amores Surdos, estava eu. No início uma cortina quase transparente deixava a família à mostra, logo uma carta do vizinho lida em voz alta na qual este explicava o motivo da música alta e das brigas. Até então cenas reais que podem acontecer com quem mora nos grandes e pequenos centros. Um filho sonâmbulo que interage com a família durante as caminhadas pela casa sonhando, o caçula que não usa sapatos, a filha que não se cansa de escutar música no headphone e o filho que diz ir trabalhar, mas nunca vai. O pai nunca aparece e a mãe tenta cuidar da família como qualquer outra. O quarto filho mora fora e sempre liga para a família. Na peça a confusão da família é ressaltada pelas várias ações ao mesmo tempo no palco. A ópera alta demais em certos momentos causa incômodo, a metalinguagem presente causa risos. Um som de piano e o caçula imagina tocar com suas peças do castelinho, em meio uma cena e outra, uma coreografia de sapateado com a mãe a chamar os filhos, repentinamente uma sujeira toma conta do palco, da família. No ponto crítico da peça o imaginário toma conta do real, como no sonho do filho sonâmbulo em que as cenas acontecem sem nexo: há um hipopótamo no quarto do outro filho ausente. O filho pequeno, que freqüentemente sente falta de ar, adota o animal com a justificativa deste ter um grande pulmão. O fato acontecera há cinco anos e ninguém da família havia percebido, assim como a ausência do pai que fora engolido pelo bicho. Decide-se matar o hipopótamo, mas a mãe impede: "Há coisas que foram feitas para se viver com elas", repete várias vezes, em gritos que incomodam e ressoam como a consciência de que mesmo que você não saiba ao certo da existência do outro, ou finge não saber, ele vai estar ali, sempre. A situação fantástica que quebra todo um propósito de representar uma família comum, na verdade ilustra de maneira lúdica a falta de importância que as pessoas demonstram com os seus. Amores Surdos ao mesmo tempo que nos faz rir, leva o público a uma profunda análise sobre a relação que temos com nossa família e se de fato conhecemos nossos entes queridos e estamos cientes dos acontecimentos e feitos destes. No final o caçula dança sozinho enquanto a luz de apaga. De volta às representações da cultura negra, nada mais afro-brasileiro que o samba. Às 22h30, com meia hora de atraso, o grupo do Rio de Janeiro Farofa Carioca mostrou todo o gingado e malandragem que o estilo tem. Um misto de samba, pagode, reggae, pitadas de rap e muito alto astral dos integrantes. O vocalista mostra seus dotes de sambista enquanto canta as dores e alegrias de ser negro em nosso país. As letras do Farofa Carioca, desde os tempos em que tinha Seu Jorge nos vocais, tratam de temas que envolvem o preconceito, a vida nas favelas, a malandragem carioca e o orgulho de ser negro. A banda é composta por três metais (trompete, trombone e saxofone), baixo, guitarra, bateria, cavaquinho elétrico, dois percussionistas e vocalista. Mesmo sendo um grande número de músicos, o entrosamento é perfeito. A qualidade musical de toda a banda impressiona, o revezamento de músicos comprova, em alguns momentos da apresentação, seus vários talentos. Vocalista que vai para o surdo, também tenta tocar trombone e os responsáveis pelo surdo e trombone que assumem os vocais fizeram a festa que fez o público e toda a produção sambar durante o show. Entre as várias músicas, sucessos que fizeram todos cantar junto como "Pretinha" e aquela que diz "ô coisinha tão bonitinha do pai". Destaque para o momento que o vocalista pede para as pessoas que acreditam na paz, no amor e na fé levantarem as mãos. Um dos momentos emocionantes foi a execução (e interpretação do vocalista) de uma música que conta a história de um ex-viciado em drogas e álcool. Interessante notar que, em meio às falas sobre o morro, o negro das favelas, o ritmo é ditado por instrumentos e equipamentos de última geração. Cada instrumentista teve o seu momento, às vezes o cavaquinho sobressaía, depois era a vez dos metais, mas a hora da percussão foi o momento determinante do show, quando a banda convida algumas garotas para sambar no palco. No final, um lenço branco carregado pelo vocalista e o grito "Viva Chico Rei!" ressoando por toda a Praça da UFOP. O final da noite foi reservado à música latino-americana com a banda União Latina se apresentando no Bar do Festival. Composta por 12 músicos e no palco em Ouro Preto com apenas 11, a banda mostrou o melhor da salsa, merengue, mambo e até um pouquinho de samba. As músicas compostas em espanhol fizeram Ouro Preto dançar da meia-noite até quase três da manhã. O Bar estava lotado e por volta das 23h30 ainda havia uma grande fila na porta à espera para curtir o show. A banda apresenta um show atípico, voltado apenas para o contagiante ritmo latino, contando com músicos vindos do Uruguai, Cuba, Colômbia e alguns brasileiros. O modo de cantar e ao mesmo tempo dançar freneticamente conquista até mesmo aqueles que não estão acostumados a esse tipo de som. É perfeita a sinergia presente no palco, que fica pequeno para os metais, violão, guitarra, percussão, bateria e vocalistas/dançarinos. Os passos improvisados na hora, a agilidade do guitarrista, a força das vozes sempre agudas, os pequenos instrumentos de percussão que fazem a diferença, tornaram a apresentação da União Latina única. O público dá um show a parte, dançando sozinho ou acompanhado, mesmo sem a noção exata de como se interpreta uma música latina, deixando seu corpo se levar pelo ritmo, principalmente quando o compasso acelerava. É divertido assistir às danças, ora engraçadas, ora sensuais. Até no samba eles se deram bem, mesmo porque enfatizam na letra: "Todo mundo tem um jeito de sambar". No meio da apresentação alguns músicos do Farofa Carioca aumentaram a família latina com mais dois metais. Foi uma festa da música feita aqui na América do Sul. Quase no final uma coreografia é ensinada, novamente garotas são convidadas ao palco para dançar. Depois do orgulho negro se manifestar foi a vez do orgulho latino, que encantou a todos. Mesmo com o final do show, o pessoal continuou animado na boate montada atrás do palco até altas horas da manhã. Assim que pude, me dirigi ao hotel e às quatro eu já estava apagada. Acordei cedo, um friozinho bom, um café-da-manhã delicioso que somente Minas Gerais pode proporcionar. Foi uma estadia rápida, que deixou um sentimento de remorso por não ter participado dos outros 20 dias. Acredito que as quatro atividades que participei foram uma amostra de tudo que foi organizado no Festival de Inverno, com altíssima qualidade. Saí de Ouro Preto já com retorno garantido para o próximo inverno, mas com estadia prolongada. Para ir além Festival de Inverno de Ouro Preto e Mariana Camila Martucheli |
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