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Quinta-feira, 6/3/2008
Um Luis no fim do túnel
Guga Schultze

No fim do túnel Rebouças tem uma luz. Lá é o Rio, a zona sul do Rio de Janeiro, que é uma cidade feia, no geral, como qualquer outra grande cidade. Digo, a maior parte da cidade do Rio de Janeiro é muito feia. A exceção é essa zona sul que, por contraste, é um lugar famoso pela beleza natural. Mais do que isso, o que existe ali é uma vibração peculiar. Ali é o Rio, simplesmente o Rio, em qualquer época do ano, sem a definição mensal do seu nome completo, inalterável em sua alegre urbanidade.

Entrei nessa luz, atravessando o Rebouças, numa tarde quente e cinzenta; margeando a lagoa Rodrigo de Freitas até desembocar na Av. Nossa Senhora de Copacabana e, dali, contando as ruas até virar e estacionar o carro na Barão de Ipanema, uma rua calma, sombreada por aquelas árvores que a gente só vê no Rio, cujos troncos negros estão sempre úmidos ao contato. Estacionei muito próximo a uma árvore dessas e bati com o joelho nela, ao sair do carro, sujando meu jeans.

O suposto barão de Ipanema, seja ele quem for, provavelmente não iria reclamar do fato da sua rua estar em Copacabana. É uma característica carioca legítima, todos parecem estar permanentemente à vontade, na zona sul do Rio.

Depois de me acomodar no apartamento em que eu me hospedava, desci e liguei de um orelhão para o Luis Eduardo Matta, o LEM, um dos colunistas do Digestivo Cultural, que mora por ali e marcamos um encontro. Fui esperá-lo na calçada do cine Roxy, no final da tarde. Ou princípio da noite, tanto faz.

Eu não conhecia o Luis e, no telefonema, disse a ele que era fácil me identificar: careca com blusa preta. Ele disse que não haveria problemas, mesmo porque era um bom fisionomista e havia visto alguma foto minha na Internet. Caminhando para o cine Roxy, começei a torcer para que ele fosse mesmo um bom fisionomista porque, como constatei, o Rio é uma cidade cheia de carecas. De blusas pretas, inclusive.

Fiquei por ali, zanzando na calçada, até que um cara saiu pelas portas envidraçadas do Roxy e veio diretamente em minha direção, "Guga, muito prazer em te conhecer". Embora eu também já tivesse visto alguma foto do Luis na internet, demorei um segundo para ajustar o foco. Porque só conhecia o Luis textualmente e, nos textos, é um sujeito mais velho, ou menos jovial, sei lá. Mas ali estava um cara que aparentava ser ainda mais jovem do que já é, ainda que sua jovialidade seja uma coisa cuidadosamente controlada. Trajes, atitude e cordialidade impecáveis, um controle muito fino da situação, assumindo discretamente o papel do anfitrião que deixa os convidados à vontade, apesar do convite ter partido de mim. Mas, tudo certo, ali é o território do Luis. Ele, como eu já disse, com a roupa impecável de um jovem executivo bem sucedido. Eu, totalmente pecável, jeans, camiseta e barba por fazer. Tudo bem, as ruas de Copacabana são cheias de tipos estranhos.

Caminhamos até um pequeno bar das imediações, onde escolhi uma mesa na calçada, porque gosto de fumar enquanto bebo. Uma garçonete gorducha nos atendeu. Quebrei o gelo, pedindo logo um Red Label com duas pedras e meia. De gelo. Ela saiu, toda sorridente. Quando voltou, Luis pediu uma taça de vinho, mas acho que atrapalhei um pouco o ritual dos tomadores de vinho, que gostam de uma certa seriedade ao escolher, pedir e serem servidos. A moça ficou rindo porque eu contei três pedras de gelo no meu copo de uísque e não duas e meia, como havia pedido.

Conversamos um bom par de horas, talvez mais, talvez menos. Falamos do Digestivo Cultural. Luis se interessava pelos outros colunistas mineiros atuais, a Ana Elisa e a Pilar Fazito, que ele conheceu no último réveillon. Eu me interessava pelos amigos dele, o Ram, o Rafael Lima, ex-colunistas, o Polzonoff. Contou casos engraçados, vivenciados com essa turma. Imitou, com perfeição, a fala do Lula, a voz do Paulo Coelho, com seus sotaques distintos. O Luis tem um talento mímico que ele usa quando quer, mas duvido que consiga me imitar com o pouco material que ofereci, porque não falo muito e gosto de ouvir coisas interessantes, de forma que nossa conversa era, basicamente, eu ouvindo o que ele tinha pra dizer, sobre assuntos diversos. E ele tem muito a dizer. Passamos sobre o problema educacional brasileiro, religião, literatura e coisas assim. Luis tem uma opinião muito clara e bem estruturada sobre cada um dos assuntos que aborda. Não é muito de perguntar. Melhor pra mim, que não sou muito de responder.

Lá pelo quarto uísque me bateu uma fome. Mandei vir um omelete, presunto e queijo. Luis, ainda bebericando sua única taça de vinho, pediu um carpaccio. A comida tem o poder de assentar as coisas em seus devidos lugares e eu senti que já estava meio cansado. Mas eu disse que ia passear um pouco pela Av. Atlântica, antes de ir dormir. Pagamos a conta e o Luis, muito gentilmente, ainda me acompanhou até lá. Atravessamos alguns quarteirões e ele me mostrava detalhes de uma arquitetura oculta, nas fachadas dos prédios mal iluminados do bairro. Preocupou-se, mais de uma vez, com a forma com que eu pretendia atravessar as ruas, passando à frente dos poucos carros que vinham. Um hábito mineiro, talvez, porque em Belo Horizonte, se você não fizer isso e esperar pacientemente que todos os carros passem, não vai sair da calçada.

No calçadão da Av. Atlântica havia o burburinho normal de uma noite quente, uma noite de sábado. Gringos passeando, exibindo um exotismo de feições, cor da pele, roupas, mas nada fica muito exótico no Rio. Moças, que parecem ter saído daquele filme da Demi Moore, pernas nuas e saltos plataforma, batendo impacientes pelo calçadão, nas imediações da boate Help. Os gringos seguiam atrás, como sonâmbulos. Um povo sentado pelas mesas sem fim na calçada; o carioca não faz alarde e toma seu chope no meio do fuzuê. Ali nos despedimos, eu e o Luis. Ele voltando e eu indo noutra direção. Eu estava com a idéia boba de ver o mar à noite, mas desisti. Deixei para fazer isso na manhã seguinte, antes de voltar a BH.

Estava chovendo, garoando, na manhã seguinte. Andei por ali e, mais uma vez, senti que minha cidade natal estava mais dentro de mim do que eu dentro dela. Não me lembrei se eu cheguei a comentar isso com o Luis, que eu também nasci no Rio. Mas sou da zona norte, o que, pra ele, deve significar tanto como se eu dissesse que nasci na Baixa Eslobóvia. Não sei.

E, nessa manhã de Domingo, antes de voltar pro ap. em que eu estava, quero crer que vi o Millôr Fernandes, se exercitando pela ciclovia da praia, montado numa bicicleta.

Guga Schultze
6/3/2008 às 22h18

 

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