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Quarta-feira, 17/12/2008
Deficiente capilar
Guga Schultze

Nesses dias de chuva, chuva, chuva, eu tive que pegar um ônibus. Normalmente não ando de ônibus. As minhas fadas madrinhas, como na história da Bela Adormecida, me deram esse dom, ainda no berço: "terás medo das filas, das aglomerações, não usarás guarda-chuvas e não andarás de ônibus". Então eu não ando. Nem uso guarda-chuva. Mas ocasionalmente tenho que pegar um ônibus. Mesmo debaixo de chuva.

Como eu disse, chovia pacas. No ponto de ônibus tinha uma marquise, sei lá, com uns três metros quadrados de cobertura, abrigando umas trinta pessoas. Espremidas umas contra as outras, segurando suas sombrinhas e esperando o ônibus. Chamo a atenção para o fato de que a maioria delas segurava um guarda-chuva ou uma sombrinha; tudo molhado e molhando os vizinhos, todos espremendo-se uns contra os outros; uma pequena multidão de mau humor.

Pensei em falar para uma dona gorda, com meio corpo pra fora da cobertura da marquise, que seria bem melhor se ela esperasse o ônibus na calçada, devidamente protegida pela própria sombrinha, dando lugar a quem não tinha proteção nenhuma contra o aguaceiro. O olhar furibundo da dona gorda gelou minha careca, já fria pela chuva que caía. Rimas inúteis, pensamentos inúteis.

A calçada tinha uma rampa de acesso, especial para deficientes físicos. Alguns ônibus também têm uma rampa móvel para o mesmo fim. Debaixo da chuva percebi, com mais intensidade, que eu sou um deficiente capilar. Pensei num projeto de lei que estabeleça marquises pela cidade, para uso exclusivo de deficientes capilares. Para os dias de chuva e de sol. Imagino até o logotipo, a ser gravado em cada uma delas: um ovo dentro de um círculo vermelho. Assim como a gente não estaciona o carro sobre o desenho de uma cadeira de rodas, nenhum neandertal poderá ficar sob a marquise com o desenho do ovo.

Ficaremos nós ali, nos dias de chuva, esperando nossos ônibus. Ou sob o sol causticante, desfrutando a sombra protetora. Nossas marquises abrigarão poucas pessoas, em agradável conversação, porque não somos maioria e sorrimos com certa facilidade. O golpe profundo que sofremos contra nossa vaidade e amor-próprio nos tornou mais gentis.

As bandas de heavy metal passarão com suas guitarras sobre a cabeça, protegendo as cabeleiras; os emos passarão, as gotas de chuva pingando das franjas e se misturando às lágrimas que descem pelo rosto; as donas gordas e cabeludas passarão ao largo, com suas sombrinhas, ou ficarão nas imediações, ainda lançando seus olhares furibundos. Mas estaremos amparados pela lei.

Guga Schultze
17/12/2008 às 13h18

 

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