Domingo, 22/7/2012
Cinema: sintoma e remédio
Yuri Vieira
O filósofo romeno Constantin Noica, em seu livro As Seis Doenças do Espírito Contemporâneo, discorre sobre a acatolia, "doença" que ataca o homem europeu e, por conseguinte, o ocidental. A acatolia seria a rejeição a todo sentido geral, a toda ordem universal, atitude tão comum ao homem contemporâneo, que já não aceita Deus ou qualquer outro princípio geral organizador da realidade e das vontades humanas. Tudo é contingência, acaso, evento particular, acontecimento isolado. Noica chega a afirmar que foi graças a esse consciente menosprezo pelo geral que o anglo-saxão debruçou-se tão intensamente sobre as coisas individuais, desenvolvendo a técnica em alto grau, o que nos levou, entre outras coisas, a gêneros artísticos inéditos, tal como o cinema. Contudo, o cinema vive o duplo destino de ser tanto um sintoma de acatolia quanto um possível remédio para o vazio espiritual.
Nas palavras de Noica:
À alegria de fazer justiça ao real imediato corresponde plenamente uma das modalidades de criação do homem enquanto artista, modalidade aliás que a técnica moderna veio favorecer dia a dia. Com o homem moderno, a acatolia [a negação de um sentido geral] encontrou seus próprios meios e sua própria arte. Criar pode significar não somente obter a projeção do individual em algo geral mas também, na indiferença por todo geral, condensar um mundo de manifestações e até de simples miragens em destinos e em figuras individuais que as sejam capazes de fixar. E, como a visão é o principal sentido fixador (tendo os quatro outros como uma propensão para o que é difuso) e o que parece verdadeiramente dar ao homem o poder de delimitar tanto a idéia (que também para os gregos era ligada à visão) como a imagem real, esse gênero de criação será o do visual. Tudo se pode traduzir em imagens, como se o ato criador consistisse em transportar ou transpor um mundo para uma tela. Por isso, num mundo acometido de acatolia, aparecem as novas artes da tela, sobretudo a cinematografia, com suas veleidades de fixar tudo no individual, incluindo a imaginação mais desenfreada, mas também com a miséria de sua condição: não encontrar seu equilíbrio artístico último - e igualmente ontológico -, que é o dos sentidos gerais.
Com efeito, por que essas determinações, livres como são, se fixariam em tais realidades individuais e não em outras? Há nessa fixação em simples imagens como uma forma de fundamento não-fundado. As manifestações que demandavam fixação terminam, ao fim e ao cabo, na instabilidade de casos particulares (como aliás no romance moderno) condenados a proliferar ao infinito, para responder assim, com algo da ordem da quantidade, à carência fatal de sentido. Onde falta até o eco do sentido geral, tudo soçobra no mau infinito dos particulares. A alegria de fazer justiça ao real transforma-se - tal como nossas vidas vazias de sentido - em sentimento do nada.
(.)
Não obstante, assim como a música nos parecia caracterizar a atodecia [a negação da ordem individual], agora é a arte nova, a cinematografia, e não os expedientes das artes tradicionais, que nos pode dar a medida e a cor (cinzenta) da acatolia. Marcada pelo signo da precariedade (ontológica, afinal de contas) de não ter nascido do geral, como as outras artes da espiritualidade religiosa ou humana em sentido amplo, a cinematografia encontrou para si uma extraordinária função artística, sem no entanto tornar-se uma verdadeira arte. Na verdade, ela, desde o início, cumpriu duas funções: adquiriu tanto um sentido de arte popular - como o tinha, segundo se diz, antes da Renascença, e até na Antigüidade, o teatro, que não fazia nenhuma distinção de classe - como a função de servir de campo de experimentação artístico a criadores que já não se sentem a gosto nas artes tradicionais. Em ambos os casos, a cinematografia corresponde a um mundo onde prepondera a acatolia. Hoje as massas já não querem ensinamento nem sentido, recusando instintivamente o geral que lhes ofereciam outrora as grandes obras e os grandes livros de sabedoria da humanidade, mas, "esclarecidas" como são, reclamam, na falta de sentidos gerais diretores na arte, a simples "evasão" pelo espetáculo; e é certo que, por este fato e sob o impacto cada vez maior da acatolia de nossa civilização técnica, a cinematografia conservará sua popularidade. A partir de agora essa semi-arte se mantém generosamente à disposição do criador para novas experiências artísticas, ali onde a profusão de imagens e de pensamentos não cessa de preencher o vazio deixado pela deserção da "idéia": É provável que precisamente na cinematografia se tente em futuro próximo, com o máximo de felicidade, dar estatuto artístico às exigências espirituais impostas pela acatolia da civilização técnico-científica. E quem sabe se, mergulhando no individual, no humano e no contingente, o espírito ocidental não reencontrará um dia, às avessas talvez, o céu?
Nesse ínterim, vivemos num mundo onde o instrumento artístico mais difundido, o cinema, não produz arte, onde as realidades e os objetos mais numerosos, as criações técnicas, não têm investidura ontológica, e onde os conhecimentos locais menos incertos e mais indispensáveis ao homem moderno, a saber, os conhecimentos históricos e sociais, já não têm leis. Algo está desabando no mundo da acatolia, apesar de suas muralhas de exatidão. Já não resta ao homem, sobretudo o europeu, senão reencontrar, graças à contribuição de outros mundos do planeta - o oriental, o sul-americano e até, talvez, o infra-europeu - e ao contato com as demais doenças, sua própria riqueza espiritual, a fim de trilhar assim, ultrapassando o espírito de exatidão, alguns caminhos para a verdade, e reencontrar seu lugar de homem verdadeiro, não de laboratório, no mundo do espírito.
Yuri Vieira
22/7/2012 às 17h27
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