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Quinta-feira, 6/10/2005
Festival do Rio 2005 (IV)
Marcelo Miranda

Parte I
Parte II
Parte III

Voltando para a segunda parte da minha "segunda jornada" ao Festival do Rio. Depois de frisar a qualidade dos filmes brasileiros na mostra, agora parto para as grandes obras internacionais vistas ao longo dos dias 1 e 2 de outubro. Sem delongas, a elas, então:

Last Days — difícil acreditar, à primeira vista, que o mesmo Gus Van Sant de Gênio Indomável e Encontrando Forrester fosse capaz de realizar trabalhos tão profundamente filosóficos e reflexivos, porém gelidamente distantes do espectador, como a trilogia formada por Gerry, Elefante e, agora, Last Days. Sua propensão a falar de jovens, em especial os marginalizados, vem desde o começo da carreira, em trabalhos de grande interesse, principalmente Garotos de Programa, mas nada radical como os três últimos. São obras difíceis até mesmo para serem avaliadas assim de cara (lembro que não gostei do meu primeiro contato com Elefante, mas aprendi a apreciar o filme e, quando o revi, saí embasbacado). Este mais recente, então, talvez seja o mais complexo de todos, e curiosamente, talvez, o menos interessante.

Van Sant faz um ensaio fictício e contemplativo dos últimos dias de Kurt Cobain, ex-líder do Nirvana. Chamado no filme de Blake, é um roqueiro mergulhado nas drogas, no ócio, na melancolia e num estado de perturbação físico e mental que inadvertidamente o leva ao suicídio. Mas o que se vê, antes do desfecho, já é um homem morto: Blake vaga pela tela como um fantasma, alguém já desencarnado que parece buscar algo com que voltar à Terra, mas não encontra nada e decide ficar mesmo no céu (ou no inferno, que seja). Não é à toa que ele pergunta, em meio a uma canção e no melhor momento do filme, se será possível morrer novamente. Van Sant dá sua visão da morte pela terceira vez, de novo sem narrativa seqüenciada e com grande foco na sonoridade do ambiente. Elefante é mais impactante e crítico, mas Last Days guarda grandes achados na rotina daquela figura distante e sem rumo.

Manderlay — segunda parte da trilogia que o dinamarquês Lars Von Trier vem preparando e que tem como tema os EUA e seus preconceitos e injustiças. Agora com dois terços da saga de Grace definidos, e olhando em retrospecto, o anterior Dogville torna-se um filme ideologicamente infantil — apesar de muita gente já considerá-lo assim desde a estréia no Festival de Cannes 2003, sempre o achei poderoso e sincero naquilo que tenta transmitir. A força de Dogville não diminui, mas eu diria que Manderlay, que repete a falta de cenografia e a linguagem narrativa de antes (com divisão em capítulos e narração em off), o supera em diversos aspectos.

A começar pelo foco: a escravidão e o racismo na América. Quando a personagem Grace chega a uma fazenda que, setenta anos após a abolição dos escravos, mantém negros no antigo regime, ela decide assumir o local e coloca gângsteres do pai para ajudar na imposição de sua própria visão do que é correto. A crítica mordaz à política norte-americana surge logo de cara: Grace não questiona a necessidade de seus atos. Ela acredita na visão pessoal e a leva até o fim, independente de opiniões alheias — exatamente, aliás, como o próprio Von Trier faz na posição de diretor.

Só que, com o passar do tempo, a moça compreende que nem sempre o olhar particular é o correto. E aprende da forma mais dolorosa o quanto o "ajudado" pode deixar de ser vítima para se tornar algoz, num efeito inverso ao que acontecia na cidade de Dogville com a mesma Grace. Ao final (sem contar detalhes, para não estragar suspresas), o recado óbvio é de que, provavelmente, a América ainda não consegue lidar com as dores e chagas de seu passado, e pra isso tenta consertar as coisas no mundo à sua maneira. No fundo, o filme é sobre uma ditadura frustrada, tentativa mal sucedida de impor regras num universo que já as possui ao seu próprio modo.

Percebe-se que a força de Manderlay é mais certeira. O filme não é apocalíptico como seu antecessor, nem tão utópico ou simplista na resolução dos conflitos. É mais pé-no-chão, preocupa-se em criar outros tipos de laços entre os personagens, desenvolve as relações com ênfase na desconfiança e descrença. Até Bryce Dallas Howard, que substitui Nicole Kidman no papel principal, interpreta de maneira mais comedida, minimalista, tornando difícil compará-la à atriz anterior. São dois trabalhos de criação distintos, apesar de serem da mesma personagem. E a julgar pelas provações às quais Grace volta a passar, provavelmente na última parte, Wasington, ela aparecerá de novo modificada.

O Bigode — Marc mantém o bigode há anos. Certo dia, decide tirá-lo. Ninguém percebe a mudança no visual. Esposa, amigos, colegas de trabalho, todos parecem fingir não notar. Intrigado, Marc diz que tirou o bigode, e se surpreende ao ouvir dos conhecidos nunca ter tido um. Passa a ser, inclusive, considerado louco. A partir dessa premissa absurda, o francês Emmanuel Carrère adapta às telas o próprio livro e apresenta filme instigante, um pesadelo típico de Kafka na literatura ou Lynch no cinema. O que parecia se iniciar como comédia torna-se o drama de um homem que, de repente, se vê completamente sem lugar no mundo, perseguido pelas pessoas que ama e impotente diante de uma situação sem controle. O enigma se mantém quase o tempo inteiro, e uma das sacadas mais inteligentes do roteiro de Carrère é jamais revelar muito a respeito do que, afinal, está acontecendo — como fazem, aliás, os citados Kafka e Lynch (e é isso que ajuda torná-los geniais). Com maravilhosa trilha sonora do mestre Philip Glass e atuação perfeita de Vincent Lindon, o filme se torna uma das grandes pérolas a serem vistas num festival de cinema, já que as chances de lançamento comercial no Brasil são ínfimas. Se um dia surgir oportunidade, não deixe de conferir.

Caché — o austríaco Michael Haneke provavelmente é o cineasta mais provocador do cinema contemporâneo. Ácido, crítico, mordaz, ele se utiliza das situações mais banais para analisar a fragmentação e individualidade do ser humano. Falando apenas dos trabalhos mais notórios, ele abordou a fetichização do sofrimento alheio em Violência Gratuita, a incomunicabilidade e desentendimentos entre iguais na sociedade moderna em Código Desconhecido, as obsessões e loucuras do amor de A Professora de Piano e, agora, com Caché, as paranóias que cercam o ser humano num mundo perturbado.

Perturbação esta que não se sabe de onde vem, representada no filme pelas misteriosas gravações recebidas pelo casal protagonista (Daniel Auteil e Juliette Binoche). Por mais que se suspeite de quem seja, nunca há certezas, e é exatamente isso que Haneke quer frisar: os problemas que nos norteiam nem sempre têm causas aparentes, mas suas resoluções podem estar mais próximas do que queremos enxergar. Sem usar grandes recursos estilísticos, Haneke cria um suspense pesadíssimo, em que a falta de ação e de resoluções aumenta a tensão. Sem música, poucos diálogos e poucos movimentos de câmera, o diretor tira de suas cenas o que elas têm de mais potente e autenticamente realista, nas seqüências de inspiração em Robert Bresson ou John Cassavetes — mas muito mais incômodas e intrigantes naquilo que a imagem parece não comportar em termos de solução narrativa.

O controle e mão pesada são tamanhos que, num determinado momento de puro assombro (quando você vir o filme, vai saber qual é), torna-se impossível não haver choque imediato e perplexidade posterior. Se até ali o espectador ainda tinha dúvidas sobre o que Haneke falava, a partir de então o mergulho é total. E imergir no realismo estranho desse diretor é das coisas mais ricas e fundamentais que se pode ter atualmente em cinema — mas nem por isso das mais prazerosas. Só vendo.

Café da Manhã em Plutão — mais novo filme do irlandês Neil Jordan. Depois da experiência maravilhosa com o melodrama em Fim de Caso, ele volta a abordar a juventude e seus devaneios que tanto marcam trabalhos anteriores (como Nó na Garganta). Conta a história do jovem que, abandonado pela família, é adotado e torna-se um moleque anárquico e sem freios — além de travesti, o que complica sua situação. Decide sair em busca da mãe e encontra pelo caminho de tudo um pouco, desde mágicos que exploram sua beleza andrógina a terroristas do IRA (Exército Republicano Irlandês). É certamente dos melhores filmes de Jordan, e tem o primeiro grande papel da vida de Cillian Murphy (de Extermínio, Batman Begins e do recente Vôo Noturno). A narrativa corre solta em pequenos capítulos que acabam funcionando como esquetes na vida do personagem, incluindo sonhos e devaneios mais fantásticos. Aliás, a força do filme está mesmo nesse protagonista. Ele intercala momentos de afetação efeminada com um intimismo comovente de quem ainda está em busca da sua identidade, simbolizada pela mãe perdida. É um conto de amadurecimento, crescimento e ternura, regado a momentos de fantasia e fábula. Curioso.

E é isso, por enquanto, o que tenho a dizer do Festival do Rio 2005. Agora é aguardar que estes filmes estréiem logo no circuito brasileiro (alguns já garantidos, como Manderlay em novembro). Até a próxima!

Marcelo Miranda
6/10/2005 à 01h37

 

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