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Sábado, 14/1/2006 Cinema em Atibaia (III) Marcelo Miranda A seleção de curtas e vídeos exibida ontem no Festival de Atibaia Internacional do Audiovisual, que acontece na cidade paulista desde quinta-feira e segue até amanhã, foi incrivelmente superior em relação ao dia anterior. Apesar do ainda grande número de trabalhos apresentados (12) e a extensa duração do programa (duas horas e meia de projeção sem interrupções), tudo correu mais solto e mais fluido. Pesou nisso a qualidade de praticamente todos os filmes, uma aparente melhoria no som da sala do Centro de Convenções e a participação empolgada do público local, que já parece se acostumar com o ar de cinema exalado na cidade. Alguns temas já podem ser delineados na programação da Mostra Competitiva de Curtas Brasileiros. Dois em especial se sobressaem: a morte e a exclusão. Impressiona o quanto estes assuntos estão presentes, em maior ou menor grau, nos filmes até aqui exibidos. Em vários aspectos, seja em forma de comédia, drama, romance, de maneira direta ou metafórica, tudo se conjuga para certo senso comum na relação dos filmes com suas narrativas e enredos, ainda que, naturalmente, através de diferentes linguagens. Como o Festival de Atibaia tem a proposta de exibir filmes premiados em outras mostras ao longo do ano anterior, essa "coincidência" de temas pode representar um recorte do que júris oficiais e populares vêm mais valorizando no curta-metragem - e, talvez, no cinema em geral, tanto em ficção quanto em documentário.
A abordagem de excluídos muda de foco para um lado mais sociológico em Fã, do carioca Fábio Lima. Ele aborda fanáticos por determinados músicos largados pela mídia, gente como Jerry Adriani, Wanderley Cardoso e Paulo Sérgio, "abandonados" pelas rádios e TVs e sobrevivendo apenas no fascínio de pessoas humildes que não tem vergonha de assumir seus gostos chamados bregas (um entrevistado afirma que "brega é algo inventado pela classe A, que se diz fã de Maria Bethânia, Caetano Veloso e esses outros aí"). Há no vídeo uma exclusão dupla: a dos fãs e a dos próprios artistas. Aqui Fora, de Cláudio Nunes e Juliana Penha, fala de pessoas que mantém fortes vínculos familiares ou afetivos com condenados à prisão. É uma rotina de dor e sofrimento para visitá-los, mas a fé na liberdade permanece, como igualmente captado no curta Visita Íntima, de Joana Nin. É o mesmo tema, porém com abordagem distinta: são os dramas e histórias de mulheres que assumiram romances com presidiários e assim vivem por anos - há uma entrevistada cujo marido está preso há mais de 30 anos; outra conheceu o atual namorado quando este estava na cadeia, e assim segue o romance, vendo-o apenas esporadicamente e passando por aquelas tradicionais humilhações de quem se submete ao sistema carcerário brasileiro. Um dos vídeos que mais mexeram com a platéia de Atibaia foi Mais um Domingo, do pernambucano Daniel Barros. Morador de Olinda, ele gravou imagens da praia de Casa Caiada, espécie de "piscinão de Ramos" da cidade, onde centenas de pessoas de classe baixa vão curtir o sol e a água (ali, nem tão cristalina) do mar. Imagens de simplicidade, mostrando as "tradições" desse povo que não possui tantos outros divertimentos, comovem ao mesmo tempo em que divertem. É o registro de uma cultura local tornada universal, de um mundo tão distante da classe média, mas geograficamente tão próximo de quem passa por esses locais. O próprio realizador disse que a idéia de fazer o vídeo surgiu justamente por ele sempre transitar na região de Casa Caiada e ficar impressionado com aquele montoeiro de gente simples se deleitando na areia e na praia. Foi Assim, de André Amparo e Ana Cristina Murta, é outro vídeo que mostra diversão popular, mas num viés mais irônico e debochado: sem querer, a dupla gravou o churrasco de três vizinhos em cima de um terraço. Num espaço exíguo, próximo a caixas d'água e pedaços de madeira, o trio conversa, come, ri. Amparo e Murta inserem legendas que "simulam" os diálogos com frases de efeito e forte carga filosófica sobre cinema, arte e o estado do mundo - no fim das contas, Foi Assim (ou Sal Grosso, título "alternativo" do trabalho) fica parecendo uma versão avacalhada e irônica de Da Janela do Meu Quarto, de Cão Guimarães, exibido anteontem no festival. E isso é um baita elogio, sem dúvidas. Entretecidas, mais poético entre os vídeos, e também o mais curto, é um olhar singelo e delicado para o trabalho de tecelãs. A diretora Elisa Maria Cabral mostra a incrível habilidade dessas trabalhadoras na concepção de pequenas obras de arte, mesclando as imagens a visões de mar e areia, provocando sensações e reflexões sobre o tempo e a memória. Um projeto pequeno e belo. A morte, o outro tema percebido no Festival de Atibaia, marcou ponto em apenas um único trabalho de ontem na competição - depois de ser a atração principal em vários do dia anterior, como A Hora do Galo, O Último Raio de Sol e mesmo o experimental Barata. Na última noite, Vinil Verde, do recifense Kleber Mendonça Filho, provocou calafrios no público com a história da garotinha proibida de ouvir um disquinho verde que ganhou da mãe, mas desobedece a ordem. Inspirado em conto russo, narrado de maneira genial e com notável uso de efeitos sonoros, o filme é todo contado por fotografias "movimentadas", dando-lhe o estilo de fábula infantil - que, a certa altura, torna-se verdadeiro filme de terror e angústia, permeado por humor negro dos mais cruéis e com direito a decepamentos e ironias.
Fugindo desse lado melancólico, outros dois documentários da competição mostraram o universo musical: O Mundo é uma Cabeça, de Cláudio Barros e Bidu Queiroz, sobre o movimento mangue beat do nordeste; e Viva Volta, de Heloísa Passos, que resgata o talento esquecido do trombonista Raul de Souza. Ambos têm seus pontos de valor, mas tropeçam no esquematismo puro e simples de um assunto fartamente abordado, no caso do primeiro; e na pouca crença da realizadora em seu personagem principal, no segundo - impressão vinda, ironicamente, de um trabalho de louvação à arte do trombonista. Porém, incomoda o momento em que vemos Maria Bethânia e Raul de Souza improvisando num estúdio: a câmera fechada em Bethânia lentamente vai se afastando do rosto dela e revela a presença de Souza, no canto esquerdo da tela; quando ele começa a tocar, a câmera não se fixa nele como fizera antes com a cantora, mas mantém ambos no quadro, parecendo tão ou mais preocupada com a reação de Bethânia do que com o talento enorme do músico. Há, enfim, um deslumbramento razoavelmente incômodo com a presença da baiana no filme. Porém, o talento de Souza consegue vencer essa impressão.
As 450 pessoas que lotaram o Centro de Convenções permaneceram até o fim, com poucas desistências. É outro termômetro da boa safra de ontem. A torcida agora é que o último dia da mostra competitiva de curtas (que inclui hoje mais 13 trabalhos em vídeo, 35mm e 16mm), a se iniciar às 20h, mantenha o nível elevado. Alguns prometem, como Noturno, de Daniel Salaroli, Historietas Assombradas (para crianças malcriadas), de Victor Hugo Borges, e Curta-Metragem Metalingüístico de Baixo Orçamento ou Aceita Mais Café, de Byron O'Neall. Há, por fim, o surpreendente Durval Discos, longa de Anna Muylaert, às 21h, na Praça da Matriz (e erroneamente indicado aqui para a sexta-feira). Para ir além Parte I Parte II Marcelo Miranda |
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