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Segunda-feira, 19/6/2006
Deus, Diabo e carnaval baiano
Marília Almeida

No final do ano passado, o diretor Fernando Guerreiro tomou conhecimento do projeto de montagem de um musical sobre a Bahia, que seria produzido para comemorar os trinta anos da Fundação Cultural do Estado. Com o pesado apoio da Lei de Incentivo do Ministério da Cultura e da Petrobrás, tornou-o real na peça Vixe Maria Deus e o Diabo na Bahia, em temporada paulista no teatro Fecomercio até o dia 6 de agosto, após dois anos de uma bem-sucedida temporada em Salvador, onde foi vista por mais de 125 mil pessoas.

Fernando Guerreiro é um dos fundadores da Companhia Baiana da Patifaria e produtor da comédia A Bofetada, que está em cartaz há mais de 15 anos e já foi vista por 500 mil espectadores. O encenador tem como característica o ecletismo quanto aos autores que servem de base para suas montagens, na maioria das vezes comédias, e já trabalhou até mesmo com um texto do cineasta espanhol Pedro Almodóvar. Trabalhou também com atores globais como Raul Gazolla e Caco Ciocler além de Danton Mello e Marcos Mion na filmagem e refilmagem de sua peça Cacilda Baker.

Inspirada no conto "A igreja do Diabo", de Machado de Assis, Vixe Maria Deus e o Diabo na Bahia foi escrita por Cacilda Póvoas, Cláudio Simões e Gil Vicente Tavares, que resolveram buscar inspiração no popular teatro de revista, misturando o trash e o teatro de cordel, tão presente na cultura regional. O resultado é uma peça escrachada, que não somente faz referências ao Carnaval do Estado e ao espírito festeiro de seu povo, mas também a outros traços de sua cultura como a religião com forte influência africana e manifestações populares e cotidianas, entrevendo características sociais.

No enredo, o Diabo, cansado de ser subserviente a Deus, resolve ampliar seus horizontes e arrebanhar mais seguidores. O local ideal para isto é onde os mortais cometem muitos pecados ou vivem mais proximamente inebriados por ele. Inevitavelmente, este lugar se configura no tradicional Carnaval baiano. Logo, Deus é alertado sobre o plano, mas até mesmo o todo poderoso pode cair nos encantos e feitiços do lugar.

O cenário de Euro Pires e figurino de Miguel Carvalho seguem o estilo barroco colonial e ajudam muito no processo de apresentar a cultura da região. O cenário esquemático é dividido em três para melhor visualização e dinamismo. O inferno é localizado em uma fresta aberta no palco, o céu em um andar acima, enquanto os personagens baianos passeiam pelo palco propriamente dito. Sua trilha sonora derrapa em uma mistura exagerada ao fazer releituras de músicas que marcaram carnavais baianos com ritmos como rock, ópera e até mesmo funk, ao invés de focar somente os ritmos regionais populares, que não provocariam tanto estranhamento e surpresas. Algumas até cabem nesta nova roupagem, mas outras soam distorcidas de sua origem.

O elenco é composto por 16 atores. Frank Menezes encarna bem o escárnio inerente da figura do Diabo e seu humor é irônico na maioria das vezes e, conseqüentemente, mais eficiente, bem ao gosto do autor do conto onde a peça foi baseada. Já Cristiane Mendonça, no papel de Naja, a esposa do Diabo, está impagável. Ela incorpora trejeitos de cobra a cada ação no palco e sua personagem é na medida sensual e interesseira sem nunca perder o traço de comédia em cada fala e expressão. Para completar o rol de protagonistas, Jackyson Costa, ou Deus, encarna um personagem ingênuo com tiradas de humor canastrão e Alan Miranda, um Anjo Gabriel infantil que se revela muito esperto e cômico ao longo da peça. Alguns atores secundários na trama acabam se destacando dos demais como Lázaro Machado no papel de Exu e um dos travestis e José Carlos Júnior, como o Pastor Evangélico.

No final, a peça consegue acumular muitas tiradas espirituosas e para isso se utiliza ao máximo das caricaturas do povo baiano e suas diversas facetas. Apenas encontra problemas quando as atuações ficam aquém da fina linha entre o gargalhar de si e dos outros e de seu personagem. Algumas vezes as alusões a fatos atuais soam forçadas, principalmente nas cenas finais, talvez visando arrancar o máximo de risadas do público e reforçar seu tom popular. Mas elas acabam por esvaziar o espetáculo quando este poderia ser finalizado de modo mais repentino e manter seu ritmo exagerado e frenético, com uma confusão milimetrada que dá charme e traduz fielmente o espírito regional que se propõe representar. Mas não deixa de ser uma boa representação de facetas da cultura baiana e própria para a comemoração original para a qual foi feita.

Marília Almeida
19/6/2006 à 00h34

 

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