[...]Lendo Shakespeare, percebo que não gostava de advogados, preferia beber a comer e, sem dúvida, sentia-se atraído pelos dois sexos. Mas não encontro qualquer indicação de que preferisse o protestantismo ou o catolicismo, ou nenhuma das duas religiões, e não sei se acreditava ou não em Deus e na ressurreição. Sua orientação política, tanto quanto a religiosa, escapa-me, mas suponho que fosse prudente demais para se definir. Sensato, temia multidões e levantes, mas temia, igualmente, a autoridade. Aspirava à ascensão social, arrependia-se de ter sido ator e, pelo que consta, preferia O Rapto de Lucrécia a Rei Lear, preferência absolutamente singular (excetuando-se, talvez, Tolstoi).[...]
A química de amor configurada por Shakespeare no tempo em que se viam pelas ruas carruagens e cavalos, e as mensagens eram enviadas por pombos ou sob a confiança de cavaleiros, não difere dessa química que viaja graças à tecnologia, através de mensagens instantâneas. As ruas são ocupadas por automóveis velozes e no céu os pombos têm de dar lugar a helicópteros e aviões. Também as maneiras de expressar o poder têm se atualizado, e o capital comanda a hierarquia social, mais até que o poder político. Mas, no fundo, todas essas maneiras mascaradas de experimentar a existência nada mais são do que alternativas modernas que o indivíduo tem buscado na tentativa de reconfigurar o amor, todavia sem sucesso. Justamente em razão de o amor não ser um desígnio modificável pela intervenção humana, mas fruto da criação divina, capaz de encabular toda forma de poder, e de forma especial a Shakespeare: "Talvez o amor não seja capaz de parar os relógios, mas é capaz de não se deixar reger por eles."