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Quinta-feira, 2/7/2015
Blog de ANDRÉ LUIZ ALVEZ
ANDRÉ LUIZ ALVEZ
 
O incréu

O assunto é espinhoso. Estava vendo futebol com amigos e reclamei quando um jogador comemorou a feitura de um gol com os dedos erguidos para o céu. Aproveitei e reclamei do excesso de religiosidade, dos aproveitadores que usam recursos da fé em benefício próprio e de grupos que se formam aos montes em torno da religião, inclusive os perigosos políticos. Bastou para que um amigo me acusasse: "Você é um incréu". Na hora nada respondi, mas depois fiquei conversando com a manga da minha camisa, perguntando se sou mesmo um descrente. Não posso negar o incomodo que a acusação me causa, é espinho que me arranha a alma. Não condeno quem segue uma religião, sei dos bons propósitos da maioria, o que me incomoda é a histeria coletiva que assusta e forma o corporativismo: "só é bom e decente aquele que comunga da minha fé", resultando num perigoso preconceito contra outras religiões e os sem religião, como é o meu caso. "Quem não tem tempo para Deus, vive perdendo tempo" eles afirmam. Mas será que não basta uma simples oração antes de dormir? Torno a pisar no campo de espinhos. Fui batizado numa igreja católica, com nome espírita, que minha família tinha disso, um pouco de cá, outro tanto de lá e até hoje permanece assim, sem definição. Na juventude, fui solipsista, hoje me considero deísta e uma das certezas que tenho é que colhemos aquilo que plantamos. Só sei que nada sei, e do pouco que consigo pensar, luto para que o niilismo seja esmagado. É estupidez imaginar o nada, que tudo foi criado pelo acaso. Certa vez, estive no interior do Ceará, em Jericoacoara. Lá, à noite, o céu se transforma num imenso lume de estrelas, que se aproxima, mostrando nossa total insignificância. Aquele lugar é uma das provas daquilo que Shakespeare escreveu: "mais mistérios entre o céu e a terra do que possa duvidar nossa vã filosofia". Enquanto Kant afirma que a existência de Deus só pode ser provada a partir das exigências morais da razão prática e não da razão teórica, Nietzsche decretava: "Deus está morto". Se vivesse nos dias atuais, o filósofo alemão se convenceria facilmente que, na mente dos homens, Deus prossegue cada vez mais vivo. Resta a razão prática que Kant evocou. Na prática, sinto Deus quando ando de bicicleta e o vento sopra meu rosto, pressinto que está no Rinoceronte, que era o rascunho do cavalo e Ele teve piedade de apagar, está na graciosidade da girafa, que não possui voz e se comunica pelo pescoço e naquele inseto que consegue mudar de cor para fugir do predador. Nos momentos de lirismo, assopra confidências na cabeça dos poetas, como fez com Leandro Gomes de Barros "Fui temperar o choro e acabei salgando o pranto". Deus está no focinho suado do meu cachorro que agora fareja o assoalho, está nas coisas que não sabemos, como as vinte e sete dimensões que um amigo afirma existir e nas coisas que vemos; a teia da aranha, a seda feita por um bicho, a lagarta que entra num casulo e de lá sai voando em asas coloridas de borboleta. Se pudesse voltar àquele bar, responderia ao meu amigo: não, eu não sou incréu, acredito em Deus, mas duvido muito dos homens.

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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
2/7/2015 às 09h45

 
A barba grisalha

Nesses dias de frio, por descuido, preguiça e diversão, deixei a barba crescer. Daí veio o espanto, dias depois, ao me dar de frente do espelho com os fios quase totalmente grisalhos escorrendo no meu rosto. - A vida é como o dia, quando se vê já é à tardinha e não fizemos nem a metade do que pretendíamos ao acordar. — Sei que Quintana escreveu algo parecido, mas é tão verdadeiro que a frase saiu agora dos meus dedos de forma irresistível — Antes que o reflexo embace no espelho, encaro os fios brancos da barba grisalha e fico sobressaltado com uma bolsa inchada abaixo dos olhos. Era de manhã e eu mal havia acordado claro que meus olhos ainda estavam inchados — pensei -, mas a barba branca não tinha desculpas, era a conta do tempo, que passou ligeiro e eu não vi. Lembrei da conversa do amigo Pedro, que de repente, do nada, passou a ter dificuldade para entender o que as outras pessoas falavam. Desconfiado, procurou ajuda médica e o diagnóstico o surpreendeu: "você não tem nada, apenas está ficando velho". E ele nunca mais se incomodou de pedir ao interlocutor que repetisse a pergunta, prossegue com o rosto virado para o lado, a mão em concha em torno da orelha, tentando escutar o que seu ouvido se recusa compreender. Pedro é mais velho do que eu, mas mantém um indisfarçável sorriso de menino no rosto completamente liso, sem nenhuma farpa branca a denunciar o avanço do tempo. Coço novamente a barba grisalha e me convenço que ela é um certificado que estou envelhecendo e o menino de antes ficou apenas na lembrança. Por um momento penso que estou melhor assim, mais maduro e sereno, muito diferente do que fui antes. Não gosto quando rebusco o passado e encontro aquele rapaz magro do cabelo cachopa e a mente vazia, que varava as noites bebendo com os amigos, deixando para depois o que da fato mais importava. Certa vez, pediram a Nelson Rodrigues um conselho para os mais jovens e a resposta veio certeira: "envelheçam". Quando jovens, pensamos que podemos mudar o futuro para melhor, armado por desatinos e manobras infelizes, mas agora, coçando os pelos grisalhos abaixo do queixo, se pudesse, voltaria ao passado e faria quase tudo diferente; erraria menos, acreditaria menos, não desistiria facilmente de alguns abandonos, buscaria mais, pegaria outra estrada diferente daquela que antes julguei mais atraente. Sei que se acontecesse, algum amigo de então reclamaria do meu jeito senhorio e me compararia com algum velhote prepotente da barba branca e tolos conselhos. Até hoje me comove quando encontro com um antigo amigo como aconteceu recentemente. A primeira confusão foi que já não sabíamos o nome um do outro, que logo desfizemos na franqueza natural de homens maduros. Impressionante os castigos do tempo. Ele era um prezado amigo, por um bom tempo convivemos diariamente em total harmonia, um admirando o outro de tal forma que o apresentei aos Beatles e ele me emprestou um livro inesquecível: "O amor nos tempos do cólera", do Gabo. Enquanto ele perguntava de outro amigo sumido, lembrei de um personagem tolo que se matou porque não queria envelhecer. Mantive os olhos abertos, mas o pensamento noutro lugar, ao mesmo tempo em que ele prosseguia divagando, eu ia pisando de leve naquela nuvem fina do passado, de modo que cheguei a ouvir na mente uma canção dos tempos que éramos jovens, na qual o Renato Russo dizia "ainda é cedo" e estalei os dedos ao perceber que só agora fui entender o que o poeta cantor queria dizer. O antigo amigo se afasta prometendo voltar, mas eu sei que provavelmente aquela foi a última vez que nos falamos: a amizade é uma avenida de duas mãos, uma que vem e a outra que vai, tão embaçada que a companhia ao lado se esvai e nem percebemos. Desligo o pensamento, pego o aparelho de barbear e encaro a barba grisalha refletida no espelho, mas recuo, conformado: nem se eu tivesse o sorriso de menino do amigo Pedro, não conseguiria disfarçar o mais nítido retrato de homem maduro no qual me transformei. Resta aguardar que os anos caminhem por um longo tempo, até que eu sinta o sopro do vento tocando meu corpo magro, enlevado pelo frio impenetrável que move lentamente a barba completamente branca. É o vento, a roda que gira, o tempo que passa.

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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
18/6/2015 às 10h02

 
Há murmúrios dolentes de segredos

Quarta-feira, sete da manhã, cruzamento da Avenida Salgado Filho com a Rua Brilhante, semáforo fechado. O tempo para e me perco em pensamentos. Dos poetas que gosto cultivo frases, que entram na minha mente me fazendo viajar em pensamentos: "há murmúrios dolentes de segredos". Florbela Espanca morreu de solidão e desencanto pelo amor ao irmão que morreu num desastre, dor imensa que a consumiu aos poucos e nem mesmo a ternura e o desejo da felicidade contida em seus versos conseguiram evitar o final trágico. Imagino a cena derradeira, o último trago, morte de amor, epílogo de um livro triste. Florbela confessou que sentia o corpo congelar antes de escrever; assim, sem cuidados, escapa da mente desavisada o que cada estrofe de seus versos quer contar; é preciso desnudar a realidade a passos lentos, ser alma, esquecer a carne, somente assim para sorver os poemas regados de pedidos clementes de vida, rogo de amparo que não encontrou. Tarefa árdua tentar decifrar os poetas, tudo o que deles sabemos é aquela confissão do Chico Buarque: são cegos que podem ver na escuridão. E ai de nós outros que mesmo diante da luz quase sempre nada enxergamos. Já notaram que muitas vezes não percebemos coisas simples do cotidiano? Naquele dia estava atento e vi pela janela do carro algo inusitado: Uma senhora, setenta anos ou mais, sentada numa pedra na esquina do cruzamento movimentado, largada da vida, fumando um cachimbo, caída num sossego que logo a transformei em minha mente numa pintura de Vermeer. Passei bem perto, notei os detalhes. O cheiro da fumaça atingiu minhas narinas, respirei fundo e senti uma espécie de enlevo, eu que luto pra largar o vício do cigarro, permiti sem muralhas que aquele resto de fumaça enchesse meus pulmões, nada fiz pra impedir, apenas deixei que meu rosto se abrisse num sorriso de supremo prazer. Não fosse a pressa, teria estacionado o carro e aproveitado melhor o momento, mas apenas reduzi a velocidade e fechei levemente os olhos sem me importar com o motorista que vinha atrás e sua buzina insana, cega, que não percebeu que naquele instante a fumaça do cachimbo me levou diante de Florbela Espanca. Vi claramente a poetisa portuguesa, os cabelos em desalinho, ligeiramente grisalhos e com algumas mechas caídas despretensiosamente na testa. Eu a via e num silêncio solene contemplava cada suspiro, enquanto ela, caprichosamente, não me enxergava, porém sentiu minha presença. Ouvi seus lábios murmurarem "Ainda não posso lhe dizer o verso que não fiz". Permaneci calado em minha viagem astral, observei da pena leve escorrer a tinta de palavras mágicas, enquanto a última cinza do charuto caía no chão, espalhada ao vento, fumo leve que foge entre seus dedos. Depois me senti mais pesado e voltei à realidade de olhos vazios, opacos, a vida de buzinas, de gente que passa sem perceber o quanto sonhei momentos antes. Nos outros dias não reencontrei a velha senhora e concordei comigo mesmo que tudo não passou de ilusão. Ou então ela não quer mais saber do sol, vagueia dentro de casa, murmura orações, fala sozinha, procura sem encontrar o cachimbo perdido. Há murmúrios dolentes de segredos.

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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
15/6/2015 às 15h46

 
Pequeno ensaio sobre o medo

Ontem acordei assustado. O vento soprava forte lá fora, parecia o uivo de um lobo. Talvez seja isso que fez o sonho, que antes era bom, se transformar em pesadelo. Quando eu era pequeno, tinha medo de lobisomem. É que naqueles tempos as noites de lua cheia eram mais claras e os cachorros uivavam de madrugada como se fossem lobos. Para piorar a situação, revolvi ficar acordado até de madrugada de uma sexta-feira só pra ver na TV um filme de terror. E lá estava ele, o lobisomem. O interessante foi que não tive medo do bicho propriamente, mas de eu mesmo me transformar num lobisomem. Sempre fui criativo para imaginar pesadelos, e sentia a dor da transformação, via o meu rosto esticando, dando lugar a uma fera insana, as garras escapando da boca, o uivo alucinante. São imagens que me acompanharam por um bom tempo, mas que partiram numa nuvem de poeira depois que cresci e aprendi a controlar os meus medos. É que quando somos jovens, nos transformamos no herói de nós mesmos. E herói não pode ter medo, embora perceba que hoje as noites são mais escuras e nas ruas os cães se recolhem para fugir de perigos insondáveis escondidos nas esquinas. Tenho a nítida impressão que hoje a maldade aumentou, mas não demonstro meus receios, os deixo guardado num canto escuro da memória, restando apenas o medo de ter medo. Quando ameaçam ressurgir, adormeço a ideia com um pensamento bom e vou enganando todo tipo de sentimento ruim. Mas o medo de ter medo permanece como aquela criança que brinca de esconde-esconde, a gente sabe onde está escondida, mas finge que não vê. Guardo ocultos vários medos: morrer, adoecer, sofrer. Que aquele ditador da Coréia do Norte, ou algum outro lunático, aperte um botão e faça o mundo explodir em mil megatons, ou que o fanatismo religioso aumente aqui no Brasil na mesma proporção daquela que vemos em outros países. Tenho medo de viajar de avião, que eu não perceba o aumento da pressão arterial e que o Botafogo caia para a segunda divisão. Não quero ter sede, fome ou depressão, quero sim, poder comer as comidas que adoro, mas que, por questões de saúde, tento evitar. Então luto contra meus olhares sinuosos na direção de lanchonetes, padarias e churrascarias. Certos atos humanos me incomodam também na forma de medo: preconceitos de todos os tipos, homofobia, racismo entre outros. Diante do assombro que me causam, calidamente pergunto: desde quando o diferente passou a ser sinônimo de perigo? E tenho medo do dentista, de motocicleta e de alguns políticos. Mas antes que o leitor pense que sou um medroso enrustido, digo que não tenho medo da velhice, nem sinto culpa se meu rosto aos poucos vai murchando, não temo enfrentar as durezas da vida, embora me importe muito mais com a vida dos meus filhos do que com a minha. Enfim, meus medos são tantos, que confesso candidamente: sinto saudades dos tempos que o único medo que eu tinha era virar lobisomem.

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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
15/6/2015 às 09h42

 
O telefonema

Final de sexta-feira, Avenida Fernando Correia da Costa, engarrafamento nas três pista. Um pequeno fio de suor escapa pela minha testa, apesar do ar condicionado ligado. A fila se movimenta no exato instante que o celular toca. Resolvo atender, pode ser um assunto importante: - Alô? - Ooooiiiii tio, tudo bem com o senhor? - Oi, quem? - O seu sobrinho querido, tio. - Meu sobrinho? - É tio. Quem é o seu sobrinho que mudou de cidade? O transito atravanca novamente, resolvo prosseguir com a prosa. - Rapaz, sinceramente, a sua voz não está ajudando e não me recordo de você. - Ô tio, fala um nome ai, o senhor vai acabar acertando. - Tá, mas dê outras pistas. - Não, não. Já disse bastante, eu mudei de cidade. Agora diz o meu nome. Coço o ouvido, penso desligar o celular, mas o trânsito está parado e aquela conversa ao menos estava servindo para me distrair. - Ah, não vai me dizer que você é o Geraldo? - Isso tio, eu mesmo, o Geraldo! - Poxa Gegê, você tem a cara de pau de me ligar! - Oi? - Porra, cara, o seu pai, meu irmão, morreu de desgosto. - Morreu... - Claro que sim. Você sabe o tanto que ele era machista. Quando soube que você gostava de homens, o coitado se entregou à bebida e acabou se enforcando. Cena triste, seu pai lá, com a língua de fora, nossa mãe chorando. Você destruiu nossa família. - Não, mas... - Eu bem que avisei o meu irmão. Desde pequeno que você levava jeito de mulherzinha. Não gostava de jogar bola com os outros meninos, preferia brincar de cirandinha com as garotas. Eu avisei: precisamos levar esse menino a um puteiro, assim que ele crescer. - Não tio, eu não sou gay. - Não, você não é gay, você é bicha mesmo. - Olha aqui meu senhor, a parada é outra, eu não sou esse tal de Gilberto. - Geraldo. - Isso, esse Geraldo ai... - Gegê para os íntimos. - Esse merda ai mesmo, eu sou muito macho, está entendendo, muito macho! O sinal abre e os carros se movimentam. Preciso desligar o celular. Mas ainda encontro tempo para as últimas palavras. - Escute aqui, malandro de merda! Avise para os seus chefes na cadeia que ninguém aqui fora é otário pra cair nessa peça de vocês. - É isso mermo, nóis é do Comando. - Eu sei, palhaço. No ano passado seqüestraram de mentirinha minha filha e minha mãe. O sujeito desliga o telefone e estaciono no acostamento. Ligo para o meu sobrinho: - Alô, Gegê! - Oi tio. Tudo bem com o senhor? - Tudo legal. - E o papai? Faz dias que ele não me liga. - Anda muito ocupado. - Eu vou ai pra festa de virada do ano. - Legal. Mas eu só liguei pra saber se está tudo bem contigo. É que um bandido ligou se fazendo passar por você. - Ah, tio, esse truque deles é antigo. - Eu sei. Mas mesmo assim dá um tremor nas pernas. - É só não dar papo. - Ah, eu conversei um bocado de tempo com ele. Falei que você era gay e ele... - Tio, eu sou gay. - Eu sei. Mas o sujeito não sabe e ficou enfezado. - Tio, você não existe. - Se ligar uma mulher bandida, eu vou contar que a sua irmã é sapatão. - Mas a Rose não é gay. - Eu sei, mas os bandidos não sabem e eu quero me divertir. - Dá um beijo no pai, tio. - Dou sim, assim que ele resolver sair da zona que se meteu. - Beijo - Outro.

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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
15/6/2015 às 09h39

 
A última flor do Lácio

Talyssa estuda engenharia e desde pequena gosta de matemática, mas às vezes se atrapalha com a escrita. Certo dia me disse de supetão: "Tio, o senhor precisa me ensinar português". Tremi na base. O pedido surgiu depois que ela leu uma crônica que escrevi e imaginou que eu fosse uma espécie de catedrático da língua culta. Pobre de mim, que sofro com as regras gramaticais e tento, com meus ouvidos mancos, enxergar alguma coisa no escuro das letras. Sou um contador de histórias que acerta na maioria das vezes ao escrever, por instinto e costume, mas que, inadvertidamente, também apanha da gramática: atrapalho-me com o uso dos porquês, separo o que é junto, junto o que é separado, coloco vírgula depois do sujeito, prejudicando o predicado, o meu verbo nem sempre concorda com o sujeito e custo a entender a diferença entre substantivo simples e composto. Invejo com toda força aquele que domina as regras do português. Da língua que falo nesse meu confesso, que me salve Bilac, que é exatamente por "não conhecê-la por completo que navega a minha adoração". Dias atrás, na rede social, escrevi errado uma palavra e um amigo me corrigiu em letras garrafais. Não fiquei chateado, apenas surpreso. Por paradoxo, eu também costumo corrigir quem fala errado, condeno o uso excessivo de gerúndios e quem usa o vocábulo mim para conjugar verbos. Mim não faz, eu faço, simples assim. A verdade é que a língua portuguesa é mesmo complexa e de difícil compreensão. Não quero com isso incentivar quem escreve errado, apenas relato as minhas limitações de escrita e, sem desejar qualquer comparação ou expor pretensões, no final do degrau da escada que me vejo sentado, afirmo que muitos escritores tropeçavam na gramática e não se incomodavam com isso: Lobato fazia questão de grafar o vocábulo sem acento. Considerava inútil "essa invenção dos gramáticos". José de Alencar, no romance Senhora, imaginou um personagem que criticava os erros de seu romance anterior. Drummond foi atacado por causa do verso "no meio do caminho tinha uma pedra", porque os eruditos não aceitavam a adoção do verbo ter com o sentido de haver, existir. E agora, num repente, recordei que estranhei Guimarães Rosa, no Grande Sertão: Veredas, numa parte da fala de um jagunço: "pão ou pães, é questão de opiniães". Hoje entendo o que o grande Rosa quis dizer: é certo escrever o que se fala, o sertão está em toda parte, inclusive na escrita. E o que dizer de Saramago? Para acompanhar a leitura do Nobel de literatura, é preciso fôlego, vez que seu texto passeia saltando acima de todas as regras sintáticas, sem pontos, sem travessões, em que a vírgula dá o tom da história, que se desenvolve mesmo assim, bela e cativante. Por fim, peço novamente emprestado trechos do poema de Bilac, que eu, atento e desleixado, aliso com carinho a última flor do Lácio, inculta e bela, fascinado pelo aroma que ao todo me toma, ó rude e doloroso idioma.

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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
5/6/2015 às 11h10

 
Certa vez, no natal...

O primeiro Natal que guardo lembrança foi em meados dos anos 1970, no Bairro Guanandi. Morávamos todos na mesma casa de madeira e portão de balaústre, que, vista de longe, lembrava um grande vagão de trem. Era muita gente do rosto parecido, primos entre si, dos quais eu era o mais velho. Não tínhamos hábitos religiosos, lutávamos pela sobrevivência e pouco tempo restava para as coisas divinas. Recordo deste Natal porque ocorreu pela primeira vez na nossa casa, uma celebração natalina. Foi quando alguém teve a ideia de montar uma árvore de Natal. Achei estranho que colocaram algodão no tronco da árvore, mas gostei das bolas coloridas que dependuramos nela. À noite, enquanto as bolas coloridas eram acesas e um brilho intenso percorria nossos olhos, nos demos diante de uma mesa tão farta que o sorriso se abriu no rosto de todos. Nunca fomos de fotografar eventos familiares, por isso posso me enganar, mas tenho comigo que foi um banquete e tanto, com direito a peru e castanhas, coisas difíceis na nossa mesa naqueles tempos. Foi a primeira vez que comi peru assado, e achei tão fantástico que até hoje a carne desse animal me remete imediatamente à noite de Natal. Lembro que um caminhão passou pelas ruas distribuindo brinquedos, não sei se por ordem de algum político ou por generosidade de algum cidadão. Deu-se então uma intensa batalha para conseguir pegar um brinquedo no meio de tantas crianças. Com esforço, consegui um carrinho de plástico sem rodas e senti como se tivesse conquistado um troféu das mãos de um senhor do rosto bondoso, no seu inconfundível roupão vermelho. Meses antes, comecei a juntar umas sobras de dinheiro, que escondi no alto da cumeeira, bem perto das telhas de barro, na intenção de comprar algo que vi numa banca de jornal. Quando chegou a véspera do Natal, faltava um pouco de dinheiro e me desesperei, amuado, num canto do quintal. Minha avó Aurora percebeu e quis saber a razão de tanto desapontamento. Contei-lhe sem muitos rodeios a força que fiz para juntar a quantia que precisava para meu intento; ela então me lançou aquele olhar de ternura infinita e, no instante seguinte, caminhou nos seus passos arrastados até dentro da casa, voltando de lá com a bolsa surrada na qual guardava suas economias, e me deu a quantia que faltava. Naquele mesmo dia, pedi pra minha mãe me levar até o centro da cidade e comprei a revista que tanto queria. Por mais paradoxo que pareça, não investi em nenhuma arte natalina, desprezei os presépios e comprei um gibi do Drácula, ilustrado em cores vivas, o vermelho de sangue em destaque nas presas do vampiro. Devorei a leitura feito um sedento diante de um pote de água no deserto, enquanto, dentro de casa, todos prosseguiam celebrando o Natal que eu ainda contemplo em recordações, no intuito de eternizar aquele momento de carinho familiar que ninguém poderia supor existir naquela casa de madeira e portão de balaústre.

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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
3/6/2015 às 11h36

 
O telefonema

Final de sexta-feira, Avenida Fernando Correia da Costa, engarrafamento nas três pista. Um pequeno fio de suor escapa pela minha testa, apesar do ar condicionado ligado. A fila se movimenta no exato instante que o celular toca. Resolvo atender, pode ser um assunto importante: - Alô? - Ooooiiiii tio, tudo bem com o senhor? - Oi, quem? - O seu sobrinho querido, tio. - Meu sobrinho? - É tio. Quem é o seu sobrinho que mudou de cidade? O transito atravanca novamente, resolvo prosseguir com a prosa. - Rapaz, sinceramente, a sua voz não está ajudando e não me recordo de você. - Ô tio, fala um nome ai, o senhor vai acabar acertando. - Tá, mas dê outras pistas. - Não, não. Já disse bastante, eu mudei de cidade. Agora diz o meu nome. Coço o ouvido, penso desligar o celular, mas o trânsito está parado e aquela conversa ao menos estava servindo para me distrair. - Ah, não vai me dizer que você é o Geraldo? - Isso tio, eu mesmo, o Geraldo! - Poxa Gegê, você tem a cara de pau de me ligar! - Oi? - Porra, cara, o seu pai, meu irmão, morreu de desgosto. - Morreu... - Claro que sim. Você sabe o tanto que ele era machista. Quando soube que você gostava de homens, o coitado se entregou à bebida e acabou se enforcando. Cena triste, seu pai lá, com a língua de fora, nossa mãe chorando. Você destruiu nossa família. - Não, mas... - Eu bem que avisei o meu irmão. Desde pequeno que você levava jeito de mulherzinha. Não gostava de jogar bola com os outros meninos, preferia brincar de cirandinha com as garotas. Eu avisei: precisamos levar esse menino a um puteiro, assim que ele crescer. - Não tio, eu não sou gay. - Não, você não é gay, você é bicha mesmo. - Olha aqui meu senhor, a parada é outra, eu não sou esse tal de Gilberto. - Geraldo. - Isso, esse Geraldo ai... - Gegê para os íntimos. - Esse merda ai mesmo, eu sou muito macho, está entendendo, muito macho! O sinal abre e os carros se movimentam. Preciso desligar o celular. Mas ainda encontro tempo para as últimas palavras. - Escute aqui, malandro de merda! Avise para os seus chefes na cadeia que ninguém aqui fora é otário pra cair nessa peça de vocês. - É isso mermo, nóis é do Comando. - Eu sei, palhaço. No ano passado seqüestraram de mentirinha minha filha e minha mãe. O sujeito desliga o telefone e estaciono no acostamento. Ligo para o meu sobrinho: - Alô, Gegê! - Oi tio. Tudo bem com o senhor? - Tudo legal. - E o papai? Faz dias que ele não me liga. - Anda muito ocupado. - Eu vou ai pra festa de virada do ano. - Legal. Mas eu só liguei pra saber se está tudo bem contigo. É que um bandido ligou se fazendo passar por você. - Ah, tio, esse truque deles é antigo. - Eu sei. Mas mesmo assim dá um tremor nas pernas. - É só não dar papo. - Ah, eu conversei um bocado de tempo com ele. Falei que você era gay e ele... - Tio, eu sou gay. - Eu sei. Mas o sujeito não sabe e ficou enfezado. - Tio, você não existe. - Se ligar uma mulher bandida, eu vou contar que a sua irmã é sapatão. - Mas a Rose não é gay. - Eu sei, mas os bandidos não sabem e eu quero me divertir. - Dá um beijo no pai, tio. - Dou sim, assim que ele resolver sair da zona que se meteu. - Beijo - Outro.

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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
3/6/2015 às 11h36

 
O homem feliz

Existe um jingle bastante criativo que faz a inquietante pergunta: "o que faz você feliz?". Nem é preciso pensar para responder: A família em primeiro lugar, - e aqui já se coloca a sua essência que é o amor -, o sucesso profissional e a saúde. Mas se a pergunta for direcionada para um lugar? Muitos responderão algum país da Europa ou uma ilha paradisíaca, o glutão talvez pense num restaurante, o religioso imagina o céu e alguém irá vislumbrar a sombra de uma árvore. No caso de quem gosta de escrever a resposta é óbvia: uma livraria. Se o escritor for um alfarrabista incorrigível, como é o meu caso, acrescentaria sem pensar uma peculiaridade: o Sebo. Ontem, no centro da cidade, me deparei com uma dessas livrarias especializada em textos antigos. É lá que eu me sinto bem e me perco no mundo da leitura. Eu tento evitar, minha casa já se transformou numa espécie de livraria do século passado. Assim, fingi que não vi a porta aberta, nem o sorriso da atendente - que deu mostras de me conhecer da compra anterior - perdida no meio de uma montanha de livros e que fizeram meus pés pesarem mil toneladas, paralisado pelo encanto do cheiro de livros embolorados que atingiam minhas narinas e me conduziam feito imã em direção à loja. Eu tinha compromisso, tentei recusar a tentação. Quem sabe se eu der apenas uma olhadinha rápida — pensei comigo mesmo — e no mesmo instante uma fumaça fina surgiu diante dos meus olhos incrédulos e aos poucos foi se transformando numa espécie de gancho e quando dei por mim, já estava dentro da loja folheando um livro do Neruda: "vinte poemas de amor e uma canção desesperada" — verdadeira relíquia que enfiei debaixo dos braços, disposto a levá-lo para casa e enfeitar a minha estante. Quem é a pessoa sem coração que se desfaz de um livro como este? Naquele instante eu poderia ir embora, já tinha em mãos a raridade que me ocuparia durante a noite por diversos dias, naqueles momentos em que o mundo se apaga enquanto o sono não vem, absorto numa espécie de bate papo com o poeta chileno. Mas eu queria mais e logo mergulhei numa outra prateleira, envolto pelos livros comidos de traça, perdido em mil anos de contos, romances e poesia. Os minutos se transformaram em horas, que foram passando e eu nem ligando, feliz feito uma criança que ganha um brinquedo. Lembrei de uma frase do poeta Mayakovsky: "Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz". Nunca duvide de um poeta. Olhei para fora, enquadrando meus olhos acima de dois romances do Jorge Amado, ao mesmo tempo em que juntava nas mãos "Jane Eyre", uma raridade da Charlote Brontë, que algum desalmado dele se desfez. E sorri para um velhinho na outra ponta, que parecia inebriado e que dizia, na sua voz rouca, uma frase do Jorge Luis Borges, enquanto tentava ajustar os óculos: "os poetas, como os cegos, podem ver no escuro". E lá fora o mundo corria na ânsia dos infelizes apressados.

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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
28/5/2015 às 10h12

 
O velho do chapéu coco azul

O velho caminha apressado, descendo por uma calçada no Bairro Taveirópolis. É um senhor magrinho da pele bem clara, os olhos pequenos e redondos e a boca sem carne que parece um risco. Usa roupa tão antiga quanto ele, que certamente retirou de um daqueles guarda-roupas de outrora, cujas madeiras apodreceram e aos poucos foram devoradas pelos cupins. Trás a camisa de algodão bem passada, a calça de linho puro perfeitamente alinhada e os sapatos marrons engraxados com esmero. Mas o que realmente chama a atenção é o chapéu coco azul escuro, tornando a sua figura uma espécie de personagem de Pirandello. No outro dia ele aparece novamente, a calça e a camisa são outras, os sapatos e o chapéu azul permanecem os mesmos. Aonde ele vai com tanta pressa? Um dia resolvi estacionar e observá-lo de dentro do carro. Ele para diante de uma velha Kombi que o dono faz de quitanda, apanha pedaços de abacaxi que leva rapidamente à boca e seu rosto se abre num sorriso. Depois retorna pelo mesmo caminho. A cena se repete todos os dias pela manhã. Sofro dos males da curiosidade e a custo controlo a vontade de lhe perguntar o nome e onde comprou aquele magnífico chapéu azul. Eu sou colecionador de chapéus. Compro todos que vejo e não uso nenhum. Então resolvo dar-lhe um nome em meus pensamentos. Como ele deve ter mais de oitenta anos, se fez necessário um nome antigo: Euclides. E um belo dia Euclides não apareceu, no outro também não e eu já imaginei aquele corpo magro, sem o chapéu coco, estirado num caixão. No terceiro dia, satisfeito, percebi que ele descia a Rua na pressa de sempre, as mesmas vestimentas, o chapéu azul escuro em destaque, se dirigindo até a velha Kombi estacionada. E eu já não me lembrava do nome que lhe dei. Detesto quando isso acontece, a resposta está na ponta da língua, mas o cérebro insiste escondê-la. Dou-lhe outro nome: Pacífico, que logo desisto, lembra oceano e aquele senhor merece algo que simbolize com clareza a serenidade dos seus gestos. E fico estalando os dedos na busca de outro nome de velho, que logo surge: Abelardo sorri enquanto come uma banana e eu fico perdido em pensamentos, a imaginar que aquele senhor já foi jovem algum dia, que se perdeu em aventuras inesquecíveis, conheceu os caprichos do destino, o bom sabor de algumas glórias, assim como o gosto amargo da traição. E quando dou por mim, estou me aproximando da Kombi, ansioso ao me perceber ao lado do divino chapéu coco azul. Não falo nada, descasco uma mexerica e fico com os olhos de tocaia enquanto busco na mente uma forma de confrontá-lo. Súbito o vendedor de frutas se aproxima de Abelardo, que enxuga com um lenço a testa encharcada de suor, e dele se despede com um "até mais, Fernando", e eu fico chateado ao ouvir o nome de gente nova. Talvez aquele senhor não fosse tão velho como pensei, e agora já nem sei se o chapéu era realmente azul. Volto para o carro sobraçando dúvidas.

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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
27/5/2015 às 10h19

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