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Segunda-feira,
16/11/2015
Blog de ANDRÉ LUIZ ALVEZ
ANDRÉ LUIZ ALVEZ
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Benzedeiras, Espelhos e Temporais
Minha bisavó se chamava Luciana e era benzedeira. Sua filha mais nova contava que ela a ensinou a enfrentar os temporais, afirmando que o perigo está na luz dos raios, "que já passou", e o trovão era apenas um barulho. Tinha olhos azuis bem claros, que não conheci porque ela morreu pouco depois que nasci e não restou nenhum retrato. Deixou ensinamentos que foram passando de geração, alguns ainda sobrevivem, causando enlevo: Quando caía chuva forte, minha mãe corria por toda casa com pedaços de pano para tapar os espelhos, que afirmava atrair os relâmpagos. "Sua bisavó me ensinou" contava séria, fixando seus olhos grandes nos meus de criança, sem deixar rastros de dúvidas. Talvez por isso, não gosto de espelhos, e só não torcia para a chuva continuar caindo, mantendo os espelhos tapados, porque tinha medo de chuva. Acho que ainda tenho, só não demonstro. Logo que terminava de jogar os lençóis nos espelhos, dona Dalva fechava o guarda roupas, que tinha um espelho na parte de dentro da porta, que ela também cobria com lençol, e retirava de dentro da gaveta alguns chinelos de borracha que nos obrigava usar, porque sabia que tapar os espelhos era um dever de respeito aos costumes, enquanto que os pés nos chão, uma ameaçadora realidade que de fato atraí os relâmpagos. Depois se aquietava, olhando a claridade efêmera que escapava das nuvens e deixando um conselho com o olhar, para que, depois que a tempestade se fosse, não deixássemos os chinelos emborcados Ainda hoje, quando chove, sinto uma estranha vontade de cobrir os espelhos de casa. Resisto porque sei que muitos consideram bobagem, da mesma forma que sei que muitos estranham que não deixo calçados virados, porque minha avó, ao se dar com calçados emborcados, tratava de desvirá-los, senão, alguém haveria de morrer. Lolinha levava aquilo tão a sério, que se culpava porque não percebeu o chinelo da mãe revirado no quintal, poucos dias antes dela morrer. E pra esconder a tristeza, escrevia cartas de letras cursivas, que pareciam dançar suavemente na folha rota de papel, representando a dor da saudade. Ah, quanta falta eu sinto da minha avó, que era a filha mais nova de Luciana e carregava seus ensinamentos de benzedeira, embora não os usasse porque, diante das proezas da mãe, se considerava incapaz. Lembro que minha avó decifrava o cantar das aves. Assim, sabíamos o mau agouro do pio estridente da coruja e a melodia do bem-te-vi, o primeiro anunciava notícias ruins, o outro, a vida através da gravidez. Num tempo que as lamparinas clareavam a sala, Lolinha contava histórias com a voz pausada e terna; contos fantásticos, repletos de magia, embora muitas vezes causasse desconforto, como quando afirmava que o espelho não refletia a nossa imagem, mas a de outra pessoa, que, noves fora a aparência idêntica, era completamente contrária à pessoa real, tanto que vivia presa num mundo paralelo. Lolinha foi de encontro a Luciana no começo de 2004 e, desde então, sinto desconfiança quando as nuvens escurecem o dia. Sinto falta da força misteriosa que a sua presença me causava. Tendo-a ao meu lado eu perdia o medo dos temporais e enfrentava os espelhos. Minha mãe não sabe responder se morreram todas as benzedeiras. Quando pergunto, vejo novamente nos olhos de dona Dalva aquele mesmo espanto dos dias de trovão, como se procurasse algum espelho para tapar, enquanto navega na mente à procura da cura de quebrando nas mãos de uma benzedeira E a pergunta retorna mais forte: Será que morreram todas as benzedeiras? Antigamente elas viviam espalhadas em casas de quintais floridos, e nada cobravam. Tinham noção daquele exercício de divino dom, que de tão raro e bom, não tinha preço. Ventre virado e quebrante eram males que somente as benzedeiras sabiam curar. Certa feita me surgiu uma ferida no braço, "mijada de aranha" — disseram — que nenhum mertiolate, pomada ou algo do gênero foi capaz de curar, mas que sumiu, de um dia para outro, levada pelos murmúrios em forma de oração de uma senhora dos cabelos bem brancos e ligeiramente desgrenhados, que enquanto tentava controlar a tremura, passava no meu braço uma folha de alecrim que exalava um inesquecível cheiro bom. O mundo anda precisando de benzedeiras. Talvez elas ainda existam e estejam por ai, se escondendo da intolerância dos dias de hoje, em cantos de quintais floridos, curando, caladas, as feridas que o homem não consegue lidar, tapando os espelhos em dia de chuva, desvirando os calçados e espalhando pelo ar o doce cheiro de alecrim.
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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
16/11/2015 às 11h32
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O homem que cochila
Na sala de espera da oficina mecânica, me vejo sentado de frente a um casal. A mulher está aflita. É o que dizem os joelhos que tremem e as mãos que a cada minuto passeiam pelo rosto de pele clara. O marido, ao contrário, é daqueles que sabem esperar. Consigo perceber toda a calma do mundo em seu rosto redondo. Depois de me lançar um breve olhar de aceno, ele ajeitou o corpo obeso no sofá e no instante seguinte já estava cochilando. Sou uma pessoa de invejas tolas, de coisas sem muita importância, como essa capacidade que algumas pessoas têm de simplesmente fechar os olhos e cair num sono leve. Sou incapaz disso. Só consigo dormir com o corpo esticado e a cabeça pousada num travesseiro, se tiver outro travesseiro que eu possa colocar em meio às pernas, melhor. Indiferente ao meu pensamento navegante, o homem consegue roncar, para desassossego da mulher, que olha para ele de um jeito sem palavras, acostumada com a cena. Ela balança a cabeça negativamente, como se para aquele mal, não houvesse solução que não fosse se conformar. O cochilo foi breve, de repente ele acordou, olhou para os lados, com olhos murchos dos recém acordados e baixou a cabeça ao perceber que tinha dormido sem sentir e que o sono breve lhe trouxe o conforto do sonho leve, daqueles que desejamos a todo custo dormir novamente e retornar no exato ponto onde parou. O barulho do ronco dá uma esticada no exato instante que a mulher lhe deu um cutucão de desaprovação. Os olhos se abrem lentamente, caindo aos poucos da pestana pesada. Ele novamente não se mostrou nem um pouco incomodado, já ajeitando novamente o corpanzil no sofá. Bocejou, olhou para mim e logo depois desviou o olhar. Retirou do bolso o frasco de um colírio. Não se incomodando com as pessoas à sua volta, muito menos com meu olhar de surpresa, arregalou os olhos vermelhos o quanto pode e neles pingou diversas gotas do colírio. Sem perceber, acabara de executar outra tarefa que sou incapaz de realizar: jamais consegui usar colírio sem o auxílio de outra pessoa, e sempre pisco na hora que a gota está prestes a cair. E desabou para o lado num novo cochilo, dessa vez completamente relaxado, as pernas esticadas, a barriga que tentava escapar entre os botões da camisa. A mulher ficou minutos olhando para ele, sem mexer sequer um músculo do rosto. Quando olhou para mim, fez sinais de desaprovação com a cabeça e se levantou para se servir de café. O sujeito que cochilava percebeu o caminhar da mulher. Era uma espécie de sinal de alerta, assim que ela deu os primeiros passos, ele acordou, dessa vez disposto a abandonar o cochilo. Sorriu para mim, despachado. Era um rosto inchado, repleto de riscos de cansaço. A mulher colocou algumas gotas de adoçante no café que bebeu, em seguida, num gesto automático, encheu outro copo com açúcar e café e trouxe até o marido, que bebeu tudo em poucos segundos. Era a terceira tarefa que o homem que cochilava realizara e que eu não posso fazer, já que açúcar é, para mim, sinônimo de veneno. O atendente chamou meu nome e fui buscar meu carro. Ao sair, voltei meus olhos para a sala de espera, só para constatar, só para ter certeza: com os braços cruzados sobre a barriga, o homem novamente cochilava num descabido impudor.
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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
5/11/2015 às 10h12
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No sinal fechado
No cruzamento da avenida, o enorme painel marcava 35 graus. Dava para ver a bruma de calor que subia entre os vãos do asfalto. De repente o sinal fechou e um motoqueiro parou ao meu lado. Trazia na garupa uma moça magra. Danaram a falar tão alto que dava para ouvir de dentro do carro. Quanto tempo dura um sinal fechado? Firmei o rosto para frente e encarnei Simeão Estilita, aquele santo que viveu meditando, imóvel e calado, no cimo de uma coluna de pedra. Mas meus ouvidos permaneceram atentos. Nunca gostei de ouvir conversas alheias, mas não tive escolhas, era como se o casal estivesse sentado no banco traseiro do meu carro. Discutiam a relação. Sinal fechado lá é lugar de discutir a relação? Tenho a habilidade nata da visão lateral, consigo enxergar as coisas do meu lado como se estivessem de frente. Pude perceber que a moça tinha os olhos amendoados e os cabelos finos, ligeiramente castanhos, que escapavam na testa e desfilavam no sopro do vento. Dele só percebi a gota de suor escorrendo pela testa ampla. A moça reclamava de traição, enquanto ele retrucava, a chamando de ciumenta. Num dado instante, ela ameaçou descer da moto. Conteve-se, ergueu a cintura, ajustou o corpo para trás e mordeu o dedinho róseo; meio brejeira, encabulada. Depois prendeu as pernas perto do escapamento e se segurou no banco da moto. Os braços finos e frágeis, ganharam um estranho vigor. O vento bateu mais forte e ela soprou com raiva a mecha de cabelo do canto da boca. Manteve o corpo ligeiramente jogado para trás, não queria mais abraçar o companheiro. E nada do sinal abrir. Retomaram a discussão no exato instante que uma chuva repentina caiu de fininho, e eu, que nunca rezo, rezei para chuva aumentar, no desejo de mais nada ouvir que não fosse o barulho da chuva. Para meu desalento, era nuvem passageira e logo a discussão retornou. Um malabarista passou perto deles jogando ao ar sete bolas coloridas e tentei prestar atenção apenas no malabarista, mas o motoqueiro estava tão enfezado, que gritou um impropério, fazendo o malabarista perder a concentração. As bolas se esparramaram pelo asfalto. "Ciumenta!" gritou em meio a gestos descompassados. Depois respirou fundo, afrouxou os ombros e num ato repentino, acelerou a moto sem sair do lugar. O semáforo prosseguia fechado. Os olhos crispados da moça ganharam um vermelho de cólera. A luz do sol brilhou, mostrando parte do rosto do rapaz zangado, a barba fina que se deixou mostrar levemente, enquanto mantinha o pé apoiado no asfalto, de novo acelerando sem sair do lugar. Dela só se ouvia murmúrio, salgado feito a lágrima que ela se esforçava reter, perdida na imaginação de atitudes e decisões que não poderia adiar. Então olharam para mim, os dois, ao mesmo tempo. Congelei por instantes. O sinal abriu. Apertei o acelerador permitindo que um som imaginário, bem próximo da quinta sinfonia de Beethoven, me invadisse como se fosse a trilha sonora de um filme de suspense. Sina de escritor: O sinal verde foi a deixa para que na minha cabeça personagens começassem a caminhar: a moça ciumenta, o jovem enfezado que acelera a moto sem sair do lugar, fazendo marcas no asfalto, ligeiramente molhado por águas de uma chuvinha passageira, espalhando no ar luzes coloridas, que formaram um pequeno arco-íris. Virei na outra esquina, o casal seguiu em frente. Restaram as luzes do arco-íris, formando um mosaico de cores, tão fantasticamente belo que nem toda a ira do mundo foi capaz de apagar.
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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
23/10/2015 às 18h26
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Atrás da janela, cantou o passarinho
Quanto mais o tempo passa, mais tenho a certeza que logo me transformarei num velho resmungão. Piu, piu, tirim, tiririm, cantou o passarinho atrás da janela do meu quarto. Era o anuncio da chegada da primavera. A cidade não havia despertado, dava para ouvir o silêncio lá fora, entrecortado pelo canto do passarinho. Abri a janela e dei de frente com ele, na galhada mais alta do pé de limão, um sabiá laranjeira, estufando o peito e cantando sem parar. É assim que os pássaros namoram, me contou mister Google. Piu, piu, tirim, tiririm, o bicho prosseguia piando enquanto eu passava manteiga no pão, a faca que deslizava, leve no início, movimento que fui aumentando conforme a cantoria invadia minha cabeça: piu, piu, tirim, tiririm. Notei que o sabiá desafinou na última nota, o que me fez recordar um amigo que criava passarinhos e tinha um curió que cantava um som mavioso, mas que quando eu prestava mais atenção, parecia sobradar tristes soluços. Curió é triste e encantador ao mesmo tempo. De novo ouço o piu, piu, tirim, tiririm e a irritação toma conta de mim; que diabo de surda é a fêmea deste bicho que não lhe atende o chamado? No outro dia a cena se repete atrás da janela e prossegue toda a manhã, indo até o fecho da tarde, se confundindo com o canto das cigarras, entrando à noitinha e desafiando os gatos vadios. Se ao menos fosse um curió — pensei — enquanto ajeitava o sapato no pé, apagando a vontade de jogá-lo no bicho que não se calava; piu, piu, tirim, tiririm, o dia todo assim. E na mania que não desgrudo de dar nome aos bichos, resolvi chamá-lo de Zezé de Camargo, que é outro cantor que me irrita facilmente. . E não encontrando o silêncio em parte alguma, decidi fazer uns serviços de rua, ir pra bem longe da cantoria. Mas a cidade e seus tormentos não conseguiram tirar da minha cabeça aquele piu, piu, tirim, tiririm. Na ânsia de resolver o problema, pensei comprar uma fêmea sabiá, dá-la de presente ao danado do Zezé e restaurar o silêncio. O Google me salva novamente, ensina que não é assim que as coisas funcionam; o macho tem que atrair a fêmea e a arma que usa é o canto. Num breve momento de sensatez, faço uma autocrítica: que sujeito estressado estou me transformando, enfezado com o som de passarinho! De repente estalo os dedos ao lembrar que no meio das minhas coisas velhas, que guardo até hoje, tem um estilingue. Balanço a cabeça e me nego seguir adiante, perplexo com minha própria crueldade, logo desistindo da ideia, até porque sempre fui ruim de mira e nem quando era garoto conseguia acertar a estilingada; apontava, esticava e atirava, sempre longe do alvo. Hoje pela manhã, mais atento, percebi que não se trata de um único pássaro, são vários. Corro até o Google e descubro que há uma disputa entre eles: aquele que cantar mais alto e forte, ganha o amor da fêmea. Piu, piu, tirim, tiririm, um bando emplumado prossegue assobiando sem parar, logo atrás da janela do meu quarto. "se não pode com ele, junte-se a ele". Assim pensando, coloquei um banco perto da janela e fiquei escutando a cantoria dos bichos. O curió canta melhor que vocês, eu disse, sorrindo para eles. Piu, piu, tirim, tiririm, responderam os sabiás.
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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
8/10/2015 às 09h49
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O que você vai ser quando crescer?
Dias atrás, observando meu filho, senti vontade de lhe fazer uma pergunta ao percebê-lo perdido num jogo de computador, mas que acabei abortando, para não provocar nele a mesma sensação estranha que tive tempos atrás, quando uma pessoa que não recordo o rosto, mas não esqueço da voz, me perguntou de chofre: o quê você vai ser quando crescer? No alto dos meus dez anos de então, respondi sem pestanejar que seria astronauta. O tempo, esse malvado, foi passando e logo descobri que tinha medo de altura, fazendo com que o astronauta morresse numa nave que se perdeu no espaço. A pergunta continuou latejando em minha cabeça. Quando encontrei um pássaro ferido e dele cuidei até que conseguisse novamente voar, imaginei que poderia ser um ótimo veterinário. Mas numa viagem a um sitio, assisti pálido e sem reação, o nascimento de uma novilha. Naquela mesma manhã, o bom veterinário que eu poderia vir a ser, partiu numa estrada de chão, aos poucos se perdendo mata adentro, seguido por diversos pássaros das asas quebradas, feitos bêbados em fim de noite. Pensei então que poderia ser médico, mas assim que me dei de frente com alguém sangrando, descobri que jamais poderia socorrê-lo e fui sepultando o médico, que sumiu sem se despedir, dando lugar ao advogado. Não tardou para que eu me convencesse que não daria certo; não suporto ternos, sapatos apertados e gravatas, além do mais importante: sou daqueles que acredita fácil nas pessoas, seria um advogado anticético, preenchendo o mundo de inocentes, ainda que culpados fossem. Tão logo me apeguei ao raciocínio lógico, fiz com que o advogado viajasse para lugar distante e desconhecido do qual nunca mais retornou. Depois, não sei o que me deu, permiti que um relâmpago insano me levasse a crer que eu poderia ser engenheiro, que, coitado, acabou caindo da ponte que ergueu e era fraca, porque sempre foi ruim de cálculo e nunca mais foi visto, levado pela enxurrada. O tempo prosseguiu com suas pernas largas, enquanto eu continuava sonhando, sem me decidir o que seria ao crescer. Outros destinos escaparam sem que eu me queixasse, por exemplo, nunca quis ser dentista, porque o barulho daquele motor me incomodou bastante na primeira vez que enfrentei uma obturação, mesmo incômodo causado pelo giz deslizando no quadro negro, que apagou a ideia de me transformar num professor. Na ânsia da procura, já desejei ser motorista de caminhão, garçom, cantor de boate. Restou o murmúrio de dúvidas que faço a mim mesmo, nos momentos que me vejo sozinho e revejo o menino acanhado que fui e que não tinha respostas para nada. Sinto alívio ao perceber que sou feito de sonhos, e sonhos não são concretos, possuem asas de delírios, desses que só alguns conseguem enxergar, me trazendo a doce sensação de certeza; até hoje não sei o que vou ser quando crescer.
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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
28/9/2015 às 15h52
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Teorema da calvície
O título dessa crônica tem a ver com a teoria do físico americano Jonh Wheller na qual afirma que os buracos negros não têm cabelo.
E um sopro de vento atinge minha nuca ao começar a digitar este texto. Quando jovem, eu tinha uma cabeleira enorme, tipo cachopa, que cuidava com total carinho.
Num dia de muito calor, à beira de uma piscina, contei os passos, fechei os olhos e pulei. Quando voltei à tona, os amigos riam e eu não sabia o porquê, até que um deles, apontando para a minha cabeça, exclamou: você está ficando careca! Fingi que não liguei, mas logo fui até o banheiro e constatei o estrago. Em contato com a água, a cachopa abriu uma cratera bem ao meio e restou um vão claro que tentei, sem sucesso, ocultar.
Daquele dia em diante, eu já sabia que meus cabelos não resistiriam ao tempo.
Foi uma sentença desesperadora.
Lutei com diversas armas, de bosta de galinha preta a xampu importado, mas tudo que consegui foi aumentar o estrago.
Aos trinta anos já ostentava a falha nos cabelos, o estilo moicano ao inverso, que me acompanha até hoje.
O mais estranho é que meu pai não era careca, nem meus irmãos.
A teoria do castigo às vezes passa pela minha cabeça moicana às avessas; talvez seja algum carma, a paga de algum pecado terrível.
Costumo dizer que não sinto falta, uso daquele estranho dito popular: é dos carecas que elas gostam mais, mas minto, na verdade gostaria, sim, de ter cabelos, só pra poder cortá-los e mudar o visual, me transformar numa espécie de David Bowie pantaneiro, pintar de ruivo, loiro, o escambau, ou apenas para sentir o prazer de entrar numa barbearia e pedir: Jonas corte americano, por favor!
Hoje já assumi a falha, mas não hesito comprar chapéus, tenho vários, que depois não uso, porque incomoda e também porque me sinto ridículo.
Teve um momento que ameacei usar bandana, que estava na moda, Romário e o cara do Guns N´ Roses a estavam usando; comprei uma azul com detalhes dourados, coloquei, olhei no espelho e o sentimento de completa aniquilação tomou conta de mim: nunca me senti tão ordinariamente ridículo.
Certa vez, sofri um grande constrangimento num ônibus, quando passei pela catraca e segui em frente, distraído, ate o cobrador me chamar: "ei careca, você se esqueceu de pegar o troco" e todo mundo olhou para mim, me transformando numa espécie de unicórnio,gnomo, centauro ou algo assim.
Recentemente fiquei sabendo que os japoneses criaram um produto que faz os cabelos renascerem.
Estou no aguardo que logo chegue ao Brasil, mesmo que pulse a dúvida: se depois de tanto tempo irei me acostumar com a cabeleira.
Talvez finalmente eu chegue à conclusão que melhor mesmo é a calvície e de pronto tenha em mãos navalha e tesoura.
Se nem os buracos negros, que são os buracos negros, não os têm, porque eu, um simples humano, haveria de ter cabelos?
Certo está um amigo que sofre do mesmo mal e bate no peito ao afirmar: "se cabelo fosse bom, não nascia no sovaco".
É isso, o resto é teoria
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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
10/9/2015 às 09h27
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Muito antes dos ipês
Do alto da última esquina da vila Planalto, contemplo a cidade. Sinto desejo de escrever um texto que faça o leitor imaginar: esse cara é de Campo Grande. Hoje o ipê é símbolo da cidade, mas nem sempre foi assim. Sou de uma cidade de outrora, aquela que o céu se via cortado nos finais da tarde pelo vôo das andorinhas, era conhecida por cidade morena e que teve início a partir do cruzamento entre dois córregos, o Segredo e o Prosa. Acredito que o mineiro de nome Pereira, se viu dominado pelo desejo de ouvir uma prosa assim que bebeu da água gelada que descia entre os mananciais. Enfeitiçado, resolveu guardar segredo e por aqui ficou para sempre. A cidade pequena foi crescendo, embalada pelos trilhos do trem que não existem mais. O que hoje é asfalto conheci em trilheiros, matas, terra batida e não consigo, nem naquelas mil horas que duram os instantes em que passeiam os pensamentos, encontrar um único ipê. Mas o barro moreno, sempre está por ali. Na entrada do quintal da nossa casa, havia um imenso pé de ariticum, que não resistiu ao balanço de corda que nele amarramos e na queda, quebrei meu pé. Sai gritando rumo à rua da frente, que nem sabia que se chamava Bandeirantes, ainda coberta de poeira e que logo depois, vi aos poucos se desnudar, amassada por patrolas, sendo coberta pelo piche, cujo cheiro, inconfundível, ainda navega nas minhas narinas. Hoje a cidade é um vai e vem enlouquecido de gente, concretos e veículos, mas o aroma de cidade do interior ainda emana por aqui. Sinto esse cheiro quando abro a janela do carro e o ar me invade, degusto o sabor da guavira temperada com mato molhado, de terreno recém carpido, o capim que mostra a raiz na qual me agarrei para sempre. Qualquer um pode morar em Campo Grande, mas somente aqueles que aqui nasceram e os que por ela foram adotados, podem sentir o aroma poderoso que escapa da sua terra vermelha. É um jeito estranho, reconheço, de discernir o concreto de hoje com o que antes era mata e chão. O progresso cobriu a pequena guarida de antes, trouxe o fluxo incessante do trânsito, que corre como uma artéria aberta, determinando o fim da calma onde antes reinava o silêncio e os sons se confundem, ganham vida na forma de malabares com sotaque castelhano, que avançam nos sinais de trânsito e recolhem nos chapeis suados as moedas de sobrevida que o povo oferece, ignorando completamente o cheiro da terra, da minha Campo Grande, sorrindo para mim sem desconfiar que naquele cruzamento existia antes um relógio, que parou em contra-ponto ao tempo, que passou e nem percebemos. E logo surge outro ipê florido num azul desconcertante. Gosto do colorido dos ipês e admito o progresso em forma de concreto. Apenas me rendo às vezes ao irresistível chamado da nostalgia, que navega pelo antes, atravessando num silêncio solene o atropelo das ruas, até rever aquele céu coberto de andorinhas, aquele de antes, de bem antes dos pés de ipês.
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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
27/8/2015 às 09h20
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Putz Grila!
Estava com os pés esticados por sobre uma almofada e a cabeça refestelada num travesseiro quando tive a ideia de escrever essa crônica diferente, com elementos de escrita que não usamos mais, inspirado no diálogo que ouvi na noite anterior, num daqueles restaurantes da feira central. Um casal, que pela aparência julguei que se conheceram nos anos oitenta, tentava escolher o que comer no cardápio. O homem, um grandalhão desajeitado que mal cabia na cadeira, de repente exclamou: "Putz grila, broto!". Não pude evitar a alegria que se formou em meu rosto. Adoro palavras que não usamos mais. Então fui para casa assistir um filme antigo que, de borococho, a história ficou supimpa e me interessei pelo quiprocó que se formou quando um cara cafona, ao lado de uma sirigaita, tomou vários goles no bico da garrafa e ignorando a amiga lambisgóia, lançou olhares prafrentex em direção à loira de farmácia que sequer lhe deu bola. Com a cara cheia de manguaça e chateado pelo fora, pegou no volante do carro chumbrega fazendo ziguezagues até provocar uma trombada. Restou o abacaxi para o sujeito resolver. O dono do outro carro surgiu de repente: "Putz grila, olha o que você fez com a minha caranga!", gritou desesperado, porque gostava mais do carro que da gata que lhe acompanhava e foi juntando com as duas mãos o pescoço do bebum. Logo surgiu uma patota que tentou manter tudo nos trinques. Era um grupo jovem e unido que imediatamente me remeteu à minha antiga curriola. Ah, os amigos de antes, que fim levaram? A turma era batuta, fazíamos o que nos vinha na veneta. Quando as coisas ficavam difíceis, dizíamos: tá russo, na dúvida, o escambau, na raiva, chispa daqui. Senti uma pontada de fossa das antigas, aquela leve dor de cotovelo que logo passava, bastava arrumar outra paquera. Certa vez, a amiga de uma amiga, pediu para ela me dizer que me achava um pão. Fiquei envaidecido. É que ser pão era tudo de bom. Minha tia namorou um sujeito porque, segundo ela, dito cujo era um pão. Podes crer, ela estava gamada. Caramba, gamada! Quem é que fica gamada hoje em dia? O tímido era mocorongo e quando as coisas caminhavam para o brejo, parece que ainda ouço o mais ponderado falar: podes crer, isso vai dar bode. Aquele amigo que dizia que eu era um barato, existe em tons cinzas na minha memória, porque tanto tempo de ausência, fez com que me esquecesse o seu rosto, a voz e tudo o mais. Esqueci até o nome desse amigo, mas me recordo da frase que ele mais gostava: "Chocrível tudo isso, saca cara?" Dizia quando se dava com as mocinhas que passeavam na calçada com medo de ouvir um assovio constrangedor. Quando o filme acabou, restaram saudades e palavras mortas na minha cabeça. Fui à geladeira, peguei um grapete e bebi tentando sossegar a alma que insistia lembrar que eu já fui careta, cafona, bicho grilo. Minha nossa! Será que continuo sendo bicho grilo? Em homenagem às palavras mortas que não voltam mais, deixo nesse epílogo reticências ao invés da frieza de um ponto-final...
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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
13/8/2015 às 10h42
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A carteira do senhor Afonso
Fazia calor naquele fim de dia. Abri um botão da camisa e deixei o vento bater no meu peito enquanto prosseguia caminhando, desviando dos camelôs, admirando as vitrines e tentando adivinhar o nome do carro amarelo que cruzou o sinal vermelho. O sol inclemente fez derramar outra gota de suor do meu rosto cansado. Meus calçados estão surrados de tanto que caminho pela avenida longa que parece não ter fim. De repente, enquanto a rua foi ficando deserta, de longe avistei um objeto meio escondido entre uma pedra e um monte de grama. Era uma carteira. Não pensei duas vezes antes de apanhá-la e estranhei o jeito que olhei em volta, desconfiado, como quem comete pecado. Ao redor não havia viva alma e então resolvi levar comigo a carteira marrom. Cheguei em casa ansioso para ver o mais rápido possível o que nela continha: uma cédula de vinte reais surgiu diante dos meus olhos, solitária e em perfeito estado, como se acabasse de sair de algum caixa eletrônico. Cheirava coisa nova. Logo atrás, apareceu a identidade do dono da carteira perdida: o rosto severo, enfeitado por um par de olhos meio verdes, me fitou curioso, como se perguntando quem era aquele estranho que o encarava: Afonso de tal, sobrenome pomposo que omito nesse texto no receio que ele não goste de crônicas. Afonso nasceu no dia 31 de dezembro de cinqüenta e dois. Deve ser estranho comemorar aniversário no último dia do ano. Abro mais um pouco a carteira e percorro os compartimentos, a curiosidade acelerando. Encontro moedas antigas e vários selos. Um filatelista iria adorar, mas eu nunca gostei muito de selos, preferia colecionar figurinhas, embora aquele selo com o rosto do Elvis Presley, que coloquei na palma das mãos durante vários minutos, deva ser raro e valioso. Logo depois vieram as fotos; uma criança linda dos cachos dourados, um garoto com cara de travesso e outra que mostra uma mulher debruçada numa janela. Foto antiga, em preto e branco, das margens marcadas num dourado opaco. Fiquei hipnotizado. Aquela mulher já deve ter morrido, pensei no mesmo instante que percebi a nostalgia perversa escapando de seus olhos. Tive a nítida sensação que ela sentia saudades de alguém que aguardava calada, com os braços presos no balaustre da janela, prostrada na esperança que aos poucos escorria, como alguém que delira de febre, tomada pela ânsia dos desesperados. Tapei a foto com a mão, tenho o estranho costume de absorver nostalgia. Outra foto, um senhor vestido em andrajos, da barba longa, o rosto que o chapéu quase escondia, trazia um leve sorriso de canto de boca que lembrava o semblante das crianças da foto. Seriam os pais de Afonso? O garoto com ar travesso seria ele quando criança? Por fim, no final da rebuscada, encontrei um cartão de visitas e descobri o endereço para o qual enviei na manhã do dia seguinte a carteira, intacta, com a nota de vinte, os selos, as fotos e todos os seus mistérios.
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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
3/8/2015 às 21h01
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Hão de chorar por ela os cinamomos
No final da tarde, peguei um livro na estante e fiquei um bom tempo com os olhos pregados na estrofe inicial: "hão de chorar por ela os cinamomos". É um trecho de um poema de Alphonsus de Guimaraens, poeta devastado pela morte da noiva, que, amargurado, cantou em versos a tristeza. Não gosto de tristeza, prefiro o sorriso. Ainda há pouco, um tucano solitário rasgou o céu do meu quintal e se meteu entre as nuvens. Bicho solitário é bicho triste. É o mesmo cenário de um ano antes e eu ainda fumava. Lembro da fumaça subindo ao céu, como se pretendesse voar junto com o tucano. Foi um dia triste, eu estava tentando concluir o final de um personagem, iria matá-lo e já sentia saudades. A arte de escrever requer tristeza, todo escritor, quando em processo de criação, é um ser triste e solitário. Afinal, quem haverá de entender o sujeito que se tranca num mundo que caminha unicamente pela sua cabeça e vai criando situações e personagens? E lá estava de novo o tucano rompendo o céu e o dia também é triste, não sei por que, mas é. Tudo parece um estranho ritual, o pássaro solitário, o poema triste, o dia que está frio. Antes que a tristeza me devasse, lembro que sorrir sempre foi do meu feitio. E a imagem do tucano volta à minha mente. Seria o mesmo pássaro do ano passado? Entro em casa e esbarro numa revista que abre na página com a figura da Frida Kahlo, que me encara na sobrancelha severa, o olhar penetrante do rosto sério e contemplativo da mulher que nunca sorriu. Provavelmente uma das pessoas mais tristes que se tem conhecimento: "Bebia para afogar as mágoas, mas as malditas aprenderam a nadar". Tento fugir da cena busco um copo de café, que um dia me disseram que café afugenta a tristeza, mas que, desastrado, derrubei na revista, cobrindo o rosto de Frida que se mostrou ainda mais triste, agora em tons marrons, essa cor sem graça, que representa a tristeza. Os olhos de Frida se apagam de vez.Sempre existiram pessoas assim, naturalmente tristes. Tive um amigo na adolescência que para espantar a tristeza, assoviava. Tudo seria normal se ele não vivesse assoviando. Por causa disso, durante um bom tempo eu sentia tristeza todas as vezes que ouvia vida cigana. É que ele adorava essa música eterna do Geraldo Espíndola. Não sei se esse amigo conseguiu retirar o carvão que plantou no peito e espantou a tristeza. Nem sei afinal porque estou escrevendo sobre a tristeza. Talvez por causa do tucano, ou é obra da foto da Frida Kahlo, pode ser esse vento gelado que não quer ir embora, só sei que não me sai da cabeça a poesia de Alphonsus de Guimaraens, como se de alguma forma pudesse caminhar entre cores roxas e virgens mortas. Limpo com as costas das mãos a foto de Frida e a encaro, assovio vida cigana sem sentir tristeza e deixo escapar um singelo conselho: saiba sorrir o que chorar não soube. E o tucano retorna do horizonte mostrando a plumagem mais brilhante.
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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
16/7/2015 às 10h08
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