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Terça-feira,
1/5/2018
Blog de ANDRÉ LUIZ ALVEZ
ANDRÉ LUIZ ALVEZ
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Um velho adolescente
Descobri recentemente, mais precisamente no sábado passado, que sou um velho adolescente. Isso porque me peguei grudado a tarde toda num livro da Thalita Rebouças. A visão da escritora me fez voar, imaginar situações, me perder em dilemas, num passeio raso d’água nos olhos, encarar alguns medos eternos, até sentir novamente as transformações. Thalita escreve para mulheres de um modo tão próximo e profundo, que conseguiu, por momentos, me transformar num velho adolescente menina. Foi um despertar, pouco antes, na minha retina cansada, guardava a adolescência como se fosse a estátua de Antínoo, dura, fria, calada, mas eternamente jovem. No livro, logo me identifiquei com a personagem, uma garota sem dotes de beleza, um tanto desleixada, dona dos cabelos ruins e peso acima do ideal. Outras semelhanças apareceram durante a narrativa: a menina ouve música para sentir vontade de chorar. Fiz isso recentemente, sem motivos aparentes, lágrima libertária, não de agonia, envolta numa música antiga e besta, de um cantor que eu desprezava quando adolescente, o Biafra, naquela parte que ele afirma existir um licor a mais no bombom. Homem não chora! Uma ova, chora sim, mesmo na maturidade. Trago ainda guardado alguns costumes de quando adolescente; usar roupa velha e rasgada em casa e desligar o mundo, ler, ouvir música, assistir séries de TV; visitar fotos antigas e me espantar: nossa, quando foi isso? Eu era magro em 87. Creio, com sinceridade, envelheci bem, eu era muito feio na adolescência, e fazia bullying
comigo, me olhava no espelho e dizia, “tu é horrível, desajeitado, seu cabelo ruim lembra nuvens de tempestades”, e depois ria da própria desfaçatez. Hoje me acho bonito, mesmo quase sem cabelos – algo libertador, no meu caso – e com essa barba rala que não tem nada a ver com rebeldia, é coisa de vaidade mesmo. Se existe algo bastante mudado é a minha capacidade atual de me amar, de olhar para o espelho e afirmar: cara, você está lindo! Narciso me incorpora todas as manhãs. Ser adolescente é dolorido para todos, mas, para as meninas, Thalita me ensinou que o baque é maior; a transformação para mulher requer o apego o quanto antes à maturidade; a menstruação é um sinal assustador, noves fora o crescimento dos seios, do quadril, e os olhares ameaçadores que começam a surgir em volta, de repente, sem avisar. Thalita Rebouças é doutora no assunto. Declaro, no entanto, o sofrimento do eu menino daquela época. De repente, espalharam-se em mim as espinhas, a espantosa percepção das curvas do avesso, das medidas, de cada detalhe: a menina franzina e irritante, moradora da vizinhança, de repente se tornou uma encantadora fêmea fatal, me fazendo suspirar profundamente. Será que ela ainda se lembra de mim? Era um tempo de solidão, de descobrir detalhes nunca antes imaginados; a luz da lâmpada atraia os insetos, medrava a escuridão, mas nada afastava alguns pensamentos. Fui salvo pela erudição: muito mais do que banho gelado, a leitura acalmava a febre. Quase adulto, imaginava a maturidade tal e qual a quinta sinfonia de Beethoven, a reta final, da qual queria distância. No entanto, cá estou. Acho que Biafra me fez chorar por causa disso: o licor ainda vivo, perdido em meio ao bombom. Imagino Beethoven, mas escuto Biafra. “O que sai de mim vem do prazer, de querer sentir o que eu não posso ter...”, o que ele quis dizer com isso? As folhas da árvore da minha adolescência ainda tremem, esparramam o orvalho no soprar do vento, pingos daquela mesma chuva que me arrancou o sono, restando em mim o pensamento incerto: será que existe por ai outro adolescente velho, quieto e atento, tal e qual a estátua de Antínoo, ouvindo, entrelaçado por pequenos tremores, a sinfonia de Beethoven? Fechei a última página, já sentindo saudades da menina do livro e à procura do resto de licor perdido dentro do bombom.
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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
1/5/2018 às 12h14
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Um velho adolescente
Descobri recentemente, mais precisamente no sábado passado, que sou um velho adolescente. Isso porque me peguei grudado a tarde toda num livro da Thalita Rebouças. A visão da escritora me fez voar, imaginar situações, me perder em dilemas, num passeio raso d’água nos olhos, encarar alguns medos eternos, até sentir novamente as transformações. Thalita escreve para mulheres de um modo tão próximo e profundo, que conseguiu, por momentos, me transformar num velho adolescente menina. Foi um despertar, pouco antes, na minha retina cansada, guardava a adolescência como se fosse a estátua de Antínoo, dura, fria, calada, mas eternamente jovem. No livro, logo me identifiquei com a personagem, uma garota sem dotes de beleza, um tanto desleixada, dona dos cabelos ruins e peso acima do ideal. Outras semelhanças apareceram durante a narrativa: a menina ouve música para sentir vontade de chorar. Fiz isso recentemente, sem motivos aparentes, lágrima libertária, não de agonia, envolta numa música antiga e besta, de um cantor que eu desprezava quando adolescente, o Biafra, naquela parte que ele afirma existir um licor a mais no bombom. Homem não chora! Uma ova, chora sim, mesmo na maturidade. Trago ainda guardado alguns costumes de quando adolescente; usar roupa velha e rasgada em casa e desligar o mundo, ler, ouvir música, assistir séries de TV; visitar fotos antigas e me espantar: nossa, quando foi isso? Eu era magro em 87. Creio, com sinceridade, envelheci bem, eu era muito feio na adolescência, e fazia bullying
comigo, me olhava no espelho e dizia, “tu é horrível, desajeitado, seu cabelo ruim lembra nuvens de tempestades”, e depois ria da própria desfaçatez. Hoje me acho bonito, mesmo quase sem cabelos – algo libertador, no meu caso – e com essa barba rala que não tem nada a ver com rebeldia, é coisa de vaidade mesmo. Se existe algo bastante mudado é a minha capacidade atual de me amar, de olhar para o espelho e afirmar: cara, você está lindo! Narciso me incorpora todas as manhãs. Ser adolescente é dolorido para todos, mas para as meninas, Thalita me ensinou que o baque é maior; a transformação para mulher requer o apego o quanto antes à maturidade; a menstruação é um sinal assustador, noves fora o crescimento dos seios, do quadril, e os olhares ameaçadores que começam a surgir em volta, de repente, sem avisar. Thalita Rebouças é doutora no assunto. Declaro, no entanto, o sofrimento do eu menino daquela época. De repente, espalharam-se em mim as espinhas, a espantosa percepção das curvas do avesso, das medidas, de cada detalhe: a menina franzina e irritante, moradora da vizinhança, de repente se tornou uma encantadora fêmea fatal, me fazendo suspirar profundamente. Será que ela ainda se lembra de mim? Era um tempo de solidão, de descobrir detalhes nunca antes imaginados; a luz da lâmpada atraia os insetos, medrava a escuridão, mas nada afastava alguns pensamentos. Fui salvo pela erudição, muito mais do que banho gelado, a leitura acalmava a febre. Quase adulto, imaginava a maturidade tal e qual a quinta sinfonia de Beethoven, a reta final, da qual queria distância. No entanto, cá estou. Acho que Biafra me fez chorar por causa disso: o licor ainda vivo, perdido em meio ao bombom. Imagino Beethoven, mas escuto Biafra. “O que sai de mim vem do prazer, de querer sentir o que eu não posso ter...”, o que ele quis dizer com isso? As folhas da árvore da minha adolescência ainda tremem, esparramam o orvalho no soprar do vento, pingos daquela mesma chuva que me arrancou o sono, restando em mim o pensamento incerto: será que existe por ai outro adolescente velho quieto e atento, tal e qual a estátua de Antínoo, ouvindo, entrelaçado por pequenos tremores, a sinfonia de Beethoven? Fechei a última página, já sentindo saudades da menina do livro e à procura do resto de licor perdido dentro do bombom.
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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
1/5/2018 às 12h14
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Cenas do bar - Wilsinho, o feio.
O novo garçom tem a cara do Wilsinho. Eu não sei se feiúra mata, se sim, Wilsinho deve ter morrido faz muito tempo, assim como não terá vida longa esse garçom à minha frente.
- Vai mais um patrão?
- Sem espuma, por favor.
Mulher muito bonita quase sempre é cruel. Maria das Dores, apesar desse nome horripilante, era linda da cabeça aos pés. Vá lá, omitindo a bunda ligeiramente achatada, mas quem era eu para ficar preso a detalhes naquele fim de março de 1984, na quadra de esportes durante o recreio, momento sublime no qual ela dirigiu seus imensos olhos verdes na minha direção.
- Oi, você é o Juvenal?
Tive vontade de responder sobre o erro, meu nome é Vladimir de La Mancha, mas não podia perder a oportunidade. Além dos olhos verdes do tamanho das estrelas, Maria das Dores tinha a voz de veludo. Fiquei Juvenal mesmo.
- Sim, Juvenal, eu sou o Juvenal...
- Então Juvenal, eu queria saber se você topa fazer parte do nosso grupo para o trabalho de desenho geométrico.
Até hoje, passados tantos anos, não consigo compreender porque raios existia desenho geométrico no curso de biologia da Fucmat. Estranhei o convite, eu era pé rapado, esquisito, só me sentia bem perto do Wilsinho, que era mais feio do que eu; e de desenho, até hoje, só sei desenhar o sol e umas nuvens bêbadas. Geometria, para mim, era um palavrão e nada mais.
- Claro que aceito! Respondi após a terceira profunda respirada.
Ela usava uma blusa de riscado, azul e branco, bastante espaçosa. Acho, não posso garantir, rolou uma lágrima quente de contentamento no canto do meu olho. Levada pelo contentamento, Maria das Dores abriu um sorriso de metal, ela usava aparelho nos dentes já naqueles tempos, abriu os braços para cima, deixando aparecer os cabelinhos das axilas, visão ao mesmo tempo divina, inquietante e apavorante. Gritou sem se constranger:
- Olha Deise, o Jacinto aceitou fazer o trabalho com a gente.
Deise era uma menina baixinha, usava sempre vermelho, tinha cachinhos e vivia pregada na Das Dores. Era a cara da Luluzinha, famosa personagem dos gibis daqueles tempos, veio correndo para o nosso lado, mostrando uma cara tão aberta que pude ver pedaços da garganta. Claro que notei a troca do nome, mas pra quem já havia aceitado ser Juvenal, não aborrecia nem um pouco ser o Jacinto. Foi quando o Wilsinho se aproximou, no andar quase dançado, ajeitando os óculos fundo de garrafa e alisando os cabelos com as pontas dos dedos pouco antes encharcados pelo próprio cuspe.
Apertou minha mão olhando para as meninas, mais precisamente para Das Dores.
Preciso aqui abrir um parênteses para explicar melhor o Wilsinho: ele era horrível, tipo do feio cego, não enxergava a própria feiúra, pelo contrário, se achava bonito. Além de pentear os cabelos com cuspe, ficava erguendo a abaixando as grossas sobrancelhas, em movimentos rápidos e irritantes. Das Dores fez cara de nojo, Luluzinha continuou com as vistas pregadas em mim. Achei estranho...
- E ai Vladimir, quais são as novas? Falou o Wilsinho, sem me dar tempo de explicar que naquele instante eu era o Juvenal.
Das dores levou um susto:
- Seu nome é Vladimir? O olhar de desapontamento de uma mulher bonita é um dos mais terríveis venenos da natureza, mata aos poucos, sem encostar. .
Quantas dores pode provocar uma Maria bonita?
- Sim... Respondi meio gaguejante e senti um leve tremor nas pernas. Eu tinha muito disso naquela época, tremia por qualquer coisa e colocava a culpa na virgindade. Sim, eu era virgem em 1984. O desapontamento marcado no rosto da musa dos olhos verdes não conseguiu retirar o olhar de Luluzinha para mim. Me entupi de velho e bom orgulho e resolvi falar:
- Sim, meu nome é Vladimir de La Mancha. Algum problema?
Ela sorriu, um tanto sem jeito.
- É que eu pensei que você fosse o Juvenal...
- Juvenal é do quinto semestre e sabe tudo de desenho geométrico. Revelou Luluzinha, finalmente retirando aqueles olhos pequenos do brilho inquietante sobre mim. A musa dos baitas olhos verdes a apanhou pelos braços, se retirando sem olhar para trás.
- Vamos Deise, a aula já vai começar.
Eu ia perguntar sobre o trabalho, se ainda estava de pé o convite, mas Wilsinho me atropelou:
- Viu o jeito que ela olhava para mim?
- Qual? Brinquei.
- A zoiúda, é claro.
- Wilsinho, caia na real, você é feio pra caralho!
Ele ergueu os óculos e mexeu as sobrancelhas bem perto de mim.
- Cale-se, você é virgem, não entende nada de mulheres, nem percebeu que a baixinha queria o seu colo. A gente podia combinar, eu fico com a gostosona e você com aquele piolho de galinha.
- Wilsinho, creia, ela nunca vai te dar bola!
- Seu rabo! Tá no papo. Eu sou amado, e você, um cão danado.
Ainda guardo na retina o olhar de triunfo do Wilsinho, a dor da saudade atravessada na lembrança de momento, aguda, dolorida pelo amigo que nunca mais reencontrei.
Bebo um último gole, aceno para o garçom, peço mais um chope, ele logo caminha até mim, um jeito de andar quase rebolado, a magreza infindável, o par de sobrancelhas grossas e vivas, atiçando o passado.
- Muito obrigado – eu digo e tomo em três goladas o copo todo. Pago com dinheiro e sorrio para o novo garçom.
- Fique com o troco e leve um abraço ao seu pai.
Ele então me olhou surpreso:
- Você conhece o meu pai?
- O Wilsinho? Sim, desde os tempos que nós dois éramos virgens.
Saí do bar sem esperar respostas, preferindo o gosto da dúvida, no peito ardendo a esperança que o meu antigo amigo ainda esteja vivo, apanhado pelo sopro do vento lá de fora, aos poucos voltando à realidade e permitindo o arroto de chope explodir, engolindo figuras do passado.
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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
21/4/2018 às 11h52
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Cenas do bar - Vladimir, o solteiro.
- Que cara é essa, Vladimir?
- Sua prima me deixou.
- Sério? Juro que pensei que vocês estavam bem.
- Pois é, eu também.
- Você andou aprontando?
- É...fico meio besta na hora do sexo.
- Ah, por favor, não venha me falar disso, eu tenho consideração pela Ana, minha prima, quase irmã.
- Não quer mesmo saber?
- Bom...Menos os detalhes mais picantes.
- Então, eu sou um cretino. Na hora h, falei o nome da Jussara.
- Puta que pariu, Vladimir!
- Cara, ela ficou muito puta.
- Com razão, né? Porra, Vladimir!
- Eu acho que...
- Ah, vai me dizer novamente que não consegue esquecer a Jussara.
- É...Tá difícil.
- Cara, pobrezinha da Ana, vou ligar pra ela mais tarde.
- Peça desculpas por mim.
- Nem pensar.
- Tá bom, tá bom, deixa pra lá.
- Mas e as outras? Não entendo como não deu certo com a Patrícia.
- Tinha bafo.
- Oi?
- É...acordava azeda, dava bom dia e o mundo apodrecia.
- Mas todo mundo acorda de bafo.
- Sim, mas não com a Eliza Samúdio escapando pela língua...
- Tá, tá. Mas e a Sandra?
- Masoquista.
- Como é?
- Na hora h ela falava: me bate.
- E você batia?
- Não, claro que não, você sabe, um de la Mancha jamais bate em uma mulher.
- E o que você fez?
- Larguei ué. Uma pena, estava quase gostando dela.
- Cara, talvez ela queria só uns tapinhas na bunda.
- Não mesmo. Ela me olhava com ódio....
- Tá, mas e a Jurema?
- Colocava o cotovelo na mesa.
- Só isso?
- E palitava os dentes.
- Só?
- Prendia os palitos nos dentes, ficava igual um vampiro, parecia o Temer, compreende?
- Ok, entendi. E aquela morena, a Sueli?
- Ah, nem me fale daquela guria.
- Porquê?
- Aquela desgraçada nunca esqueceu o ex-marido.
- Uai, mas você também não esquece da Jussara...
- Tá, tá, mas eu sou eu. E ela queria me transformar nele. Vivia falando "o Valter é isso, o Valter é aquilo, o pinto do Valter não entorta..."
- Tá bom, chega, já entendi.
- Cara, solidão é foda...Não conhece mais alguém pra me apresentar?
- Ah, me erra. Sinceramente, acho que você devia falar com a Jurema, confessar o erro, pedir desculpas, tentar uma volta.
- Não vai dar, ela está praticamente casada com o Arlindo.
- Aquele baixinho que trabalhava com ela na repartição?
- Ele mesmo. Estão juntos desde logo que nos separamos.
- Cara, mas aquele bicho deve ter bafo.
- Com certeza, deve acordar com gosto de merda na boca.
- Já viu ele jogando truco? Grita feito um porco. Imagina o escândalo que deve fazer na hora do sexo?
- Pois é, e limpa os dentes com fio dental, fica passando aquela porra de um lado pro outro, uma imundície.
- Porra, Jussara é corajosa.
- É sim...Mas acho que ela fala meu nome na hora H.
- Será?
- Tenho quase certeza.
- E o Arlindo deixa?
- Mete porrada nela, mas parece que ela gosta, vai entender.
- Situação difícil a sua, Vladimir.
- Pois é, Jussara sempre compreendeu o mundo melhor que eu.
- Saideira?
- Pede chope, o meu sem espuma.
- Agora me lembrei de uma amiga de infância, a Lúcia está solteira...
- Manda o zape, tô topando qualquer coisa.
- Com essa tem tudo pra dar certo.
- Porquê?
- Ela é surda...
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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
12/4/2018 às 10h19
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A inexatidão de certas coisas exatas
Desconheço o nome do poeta que discorreu sobre a inexatidão das coisas da vida. Sei, entretanto, ser arte de latino. Somente um poeta latino é capaz de exaltar a inexatidão de certas coisas exatas. Mas afinal, por qual motivo estou divagando sobre isso, aqui sentado na mesa de um bar, esperando a espuma do chope baixar? Tenho o costume de falar comigo mesmo, geralmente coisas sem sentido, inexatas; sempre na primeira pessoa, algo assim: “está vendo só, coisa mais estranha aquela planta tímida que só o vento fecunda...” Um rapaz do braço preto e outro branco passa perto de mim. Reparo melhor, o braço preto na verdade é tatuagem. Por longo tempo me questionei: como pode alguém tatuar um braço inteiro? Morreriam todos os piratas diante daquilo. Mas aconteceu da minha filha tatuar quase o braço inteiro. E olhando de perto, o resultado é até bonito, calando o meu assombro de antes. Enfim o chope acaba. Preciso caminhar, juntar ideias. Inexato coração, inexata ideias. A moça do piercing no nariz, passeando à minha frente, me chama mais a atenção do que o manequim semidesnudo, vestindo bermuda azul, sem camisa e de boné dourado. Ela olha para mim, depois para o manequim. Inexata comparação. Não gosto de piercing no nariz, mas aceito, sem muito reclamar, aquele da bolinha brilhosa no canto dos olhos. Devo mesmo estar ficando velho, admirar piercing, definitivamente não é coisa da minha turma dos cinqüenta anos. O silêncio me abraça novamente e tento esmagá-lo ao caminhar. Às vezes o silêncio grita: inexato silêncio. Tento calar os meus passos e fico um bom tempo contemplando as vitrines de uma loja de turismo. Um quadro exposto na parede, nada mais que um risco de terra, rodeado por um mar profundamente azul, empresta aos meus olhos a luz suficiente para me desarmar de vez. Contemplo, emudeço sonho. A atendente percebe meu deslumbre e sai até a calçada, armada de um catálogo e trazendo aberto um riso de dentes segurados por arames. Outra coisa para estranhar um homem de cinqüenta: como será que o namorado consegue beijá-la? Ou a namorada, enfim... Ela sorri um riso metálico e puxa conversa; “ilha de Capri” diz, apontando para o quadro e a imagem reflete no aparelho em sua boca. Ela completa: “O pacote está baratinho.” Devolvo o sorriso, tento explicar que conheço desde muito tempo a Ilha de Capri, o Mar Tirreno e as diversas ilhas ao redor, mas reluto revelar a verdade inexata dos lugares que habitam a minha mente, porque diversas vezes transformo a vida real em sonhos (sou quase sonhos por completo), só para poder visitar lugares, mantidas as vistas embriagadas pelas belezas do planeta que aprendi nos livros. No final da conversa, ela se convence que sou um eterno viajante, sem desconfiar a verdade concreta, tão exata: nunca coloquei meus pés em outro país. Volto a caminhar, mas o silêncio está distante, golpeado pelo som gostoso dos anos oitenta escapando de uma das lojas, me fazendo revirar a cabeça numa dança de olhos fechados. Fico confuso, nunca soube distinguir Kim Carnes de Bonnie Tayler. Faço confusão também entre Carly Simon e Carole King. De repente, a música some por instantes; do outro lado da calçada, uma moça dos cabelos alourados sorri em minha direção e logo depois faz um aceno de miss. Fico sem jeito, será que foi para mim? Ah, seu eu fosse aquele jovem cabeludo olhando para o celular; colocaria no canto da boca um piercing, preencheria meu braço de tatuagens e devolveria sem medo o aceno. Bette Davis Yes! É a voz da Kim Carnes, concluo e armo no rosto um sorriso. Sinto uma vontade irresistível de tomar outro chope, sentimento tão exato quanto as asas da minha emoção, essa palavra linda a rimar com coração latino; pulsando no ritmo do vento, uma brisa gostosa, outra caneca de chope e a certeza a escapar da luz opaca dos meus olhos; o sorriso não era para mim: gente jovem quase nunca sorri para os mais velhos...
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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
2/4/2018 às 12h21
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De repente, o celular tocou
- Alô?
- Alô, é o senhor André?
- Não, não, aqui é Vladimir de La Mancha.
- Ah...O senhor conhece o André?
- Claro que sim, sou o heterônimo dele.
- Bom, senhor, a preferência sexual de vocês não vem ao caso.
- Oi?
- Então, senhor. preciso que dê um recado para o André.
- Sim, fique tranquila, pode falar, sou o Alter ego dele.
- Pois então, senhor Valter, a Claro está com um excelente plano para internet e celular...
- Ih, acho que ele não vai querer. Já tem tudo isso.
- Mas senhor Valter, pense bem, o novo plano é imperdível.
- Olha, só porque você tem essa voz bonita e estou aqui imaginando que o resto também é muito belo, vou passar para ele o seu pedido.
- Ah, que bom! E o senhor, também não gostaria de fazer um plano?
- Eu?
- Sim, claro.
- Ah, eu sou apenas um pseudônimo.
- Mas os preços desse plano, qualquer dônimo pode pagar...
- Tem certeza?
- Claro, hoje mesmo já fechei o de um porteiro, um pedreiro e até um anônimo.
- Não seria um autônomo?
- Bom, essa coisa de tamanho e altura não dá pra saber pelo telefone, né?
- Moça, vamos fazer o seguinte, vou passar todas as informações para o André. Se ele fizer, é a mesma coisa de eu fazer.
(quase dez minutos depois, ela acabou de falar sobre o plano. Não prestei atenção nem na metade.Mas, de fato, ela tem a voz bonita.)
- Ok, então. Promete passar para ele?
- Prometo. Ele sempre me escuta.
- Ah, então tá. A Claro agradece a sua gentileza.
- Tá bom. Beijos.
- Senhor, não posso dar beijos aqui.
- Boa noite, então.
- Bom dia.
- Já é dia?
- Sim
- Vixe, então tenho que correr, o André já vai acordar...
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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
13/3/2018 às 12h51
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Cenas do supermercado
Olha, eu nunca soube ao certo se o nome da mãe do Gilberto é Doracy ou Norma.
Sei, não tem nada a ver um nome com o outro, mas a confusão existe e não consigo eliminá-la.
O pai, desse eu tenho certeza, se chama Getúlio e foi padre até os vinte e cinco anos.
Formam um casal daqueles clássicos, conservadores, rezam ao acordar, na hora do almoço, nos fins de tarde, antes de dormir.
Rezam, rezam e rezam.
Dos cinco filhos, só me dava bem com o Gilberto, uma criatura extremamente amorosa, dedicada ao trabalho e aos amigos.
Gilberto é gay e para escapar da certeira reação dos pais, foi se meter nos fundos do Canadá e por lá escancarou a porta do armário.
Faz tempos que não nos falamos, mas ainda guardo o livro do Neruda que ele me deu.
Dona Doracy (ou seria Norma?) tinha o costume de fazer arroz carreteiro sempre que eu ia visitá-los.
No começo achei bom; com um ovo frito por cima, sempre caiu bem.
Mas lá pela quinta vez, comecei a achar estranho.
Seu Getúlio comia até quase se enfartar.
Disfarçava o arroto fingindo bocejos.
E dessas coisas da vida, nossos caminhos se entortaram e nunca mais nos encontramos, até o sábado último, no corredor de um supermercado.
Os reconheci de imediato, seu Getúlio no mesmo estilo de general, a esposa colada em suas mãos, o olhar um tanto perdido.
Tipo de encontro indesejado, não tinha nada para falar com eles.
Tentei escapar grudando as mãos na primeira prateleira que me surgiu, a cara enfiada entre latas de leite ninho.
Não teve jeito, dona Norma (ou seria Doracy?) cutucou minhas costas com a ponta da unha.
- Oi, você não é aquele amigo do Gilberto?
- Gilberto...?(fechei os olhos quase por inteiro, a testa em risco, extremamente franzida, como quem tenta se lembrar de algo).
- Meu filho Gilberto, vocês trabalharam juntos no jornal.
- O seu nome não é André? - perguntou coronel Getúlio na voz grave de sempre.
- Sim, sim...Mas claro, vocês são os pais do Gilberto.
- Isso mesmo, eu sou a...(ela ia desvendar a tortuosa dúvida, mas o Marechal se intrometeu e não deixou).
- Há quanto tempo, meu rapaz!
E deu-me um abraço de urso.
- Faz tempo, né? E o Gilberto? Não tive mais notícias dele.
- Está bem, mora no Canadá, está casado e tem dois filhos.
- Sei (adoção, com certeza, pensei)...
- Ele vem nos visitar sempre no fim do ano.
- Ah, que legal. Peça para ele me adicionar no whats ou no Face. Sinto saudades dele.
Dona Norma sorriu, se fazendo menininha.
- Ele não tem nada nas redes sociais.
- Não?
- A mulher dele é muito ciumenta... Sabe como é...
- Sim, sei...
De repente, uma estranha luz escapou dos olhos do Sargento:
- Ele manda cartas para nós.
Arregalei os olhos, surpreso:
- Cartas?
- Sim, cartas! Sempre teve ótima letra. Manda junto algumas fotos, dele, da família, precisa ver como a caçula se parece com a (Ia desvendar o tortuoso segredo, mas Norma/Doracy não deixou, se intrometendo, com a voz fina e uma chuva de perdigotos).
- Não, não se parece comigo, parece com ele, com o Gilberto.
- Ah, nossa, como eu gostaria de ver. (sempre tenho esses momentos de bobeira, falo sem pensar e depois arregalo os olhos, arrependido).
- Pois apareça lá em casa um dia desses? - Disse o Capitão, num sorriso de dentes amarelos. A esposa completou numa nova enxurrada de perdigotos:
- E leve sua esposa e o filho. - dei uma piscadela cúmplice e completou - Notei que estava comprando leite ninho.
- Tá bom, vamos sim, qualquer dia desses.
- Ora, deixe disso, vá amanhã! Ordenou o Tenente Coronel - moramos no mesmo endereço de sempre.
- Claro, claro, irei sim, pode contar.
Ela então postou o rosto perto de mim, fez as mãos em segredo e sussurrou:
- Vou fazer aquele arroz carreteiro que você adora...
- Ah, sim, adoro mesmo, vou sim...
O General deu-se por satisfeito, apanhou a mulher por uma das mãos, enquanto com a outra esmagava meus dedos num cumprimento final.
- Vamos Jandira, precisamos comprar a carne seca para o carreteiro. Até amanhã, meu bom rapaz.
E lá se foram, sem olhar para trás.
Para me garantir, levei duas latas de leite ninho, com medo que me vissem no caixa e duvidassem de mim, a cara meio azeda, um tanto marrom, na garganta seca a pergunta em riscos de fogo: o que afinal tem a ver Jandira com Doracy...ou Norma?
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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
13/3/2018 às 12h02
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Dezesseis de fevereiro
Escrevo essa crônica no dia do meu aniversário...
E lá se foram alguns anos desde a manhã chuvosa na qual os meus olhos se abriram pela primeira vez.
Minha mãe conta sobre o desespero: ela era uma moça pequena, magrinha, bastante frágil aos dezessete anos; quase morreu durante o parto; eu era uma criança enorme.
Não existe um dia sem rezar antes de dormir e agradecer a Deus pela força dada à minha mãe naquele momento tão difícil.
Beijos minha mãe; vida, Vidalvina, amor eterno.
Gosto da data, embora ela me faça enxergar a rapidez do trem da vida.
O banho quente pela manhã descortina antigos dezesseis de fevereiro.
Os jatos de água passeiam na minha cabeça, o chuveiro parece falar, como se fosse aquele amigo antigo, da memória tão boa, na qual passeiam as façanhas de antes: “Lembra daquele seu aniversário de vinte anos?”
Sim, claro, as imagens estão vivas, ainda ouço os gritos dos amigos.
Sinto falta de todos eles.
Naquela época alguns medos desapareceram, medos bobos, de fantasmas principalmente; para escapar desse tormento, passei a acreditar que eles não existiam e a fórmula funcionou.
Continuo não acreditando em fantasmas, mas hoje sei: eles existem.
Devo confessar um pavor remanescente; medo de palhaços, um indominável sentimento estranho.
Culpa de Stephen King.
Aos vinte anos só imaginamos coisas boas, um mar de luz se abrirá e restará o conforto e a paz.
Jovem é ingênuo, sequer percebe o fecho das montanhas tentando apagar o horizonte.
A impaciência é companheira da juventude.
Hoje percebo claramente o quanto a vida demorava a passar na faixa dos vinte anos, ao contrário da rapidez espantosa de agora.
Ontem tinha vinte, amanhã já é sessenta.
Aos vinte, festas, cervejas e noites mal dormidas; agora um filminho na TV já pede ao sono levar o dia embora.
No presente uso óculos para ler, aos vinte quase não lia, porque sempre tinha algo diferente a fazer.
Antes, ovos fritos com bacon, hoje pouco sal, café sem açúcar e remédio para dor no estômago.
Se no passado as manhãs eram de ressacas, hoje apenas o cuidado com o remédio para pressão.
O sonho de morar num sítio quando velho troquei pelo conforto e segurança de um condomínio.
Se contasse isso ao jovem que fui, restariam sorrisos incrédulos.
Guardo alguns costumes de antes, moderados, quase insignificantes; cerveja de vez em quando e três ou quatro cigarros no cair da noite.
Cigarro é um vício estúpido.
Devia ter vinte e três quando entrei nessa brincadeira sem graça.
Sequer desconfiei do arrependimento ao completar cinqüenta e três anos.
Se pudesse voltar no tempo, me trancaria em casa no exato dia quando apanhei da mão de um amigo o cigarro aceso e dei a primeira tragada.
Amanhã não faço mais – pensei - e prossegui me enganando até hoje, crente que largaria o vício quando bem entendesse, mas logo o cigarro se tornou água no deserto.
Na companhia de um cigarro, conheci Gabriel Garcia Marquez e Manuel Bandeira, e então passei a enxergar o mundo de outra forma.
Num repente, abandonei a ideia de ir morar noutra cidade: São Paulo, talvez, quem sabe num outro país, Londres, Nova York, pensamento abortado ao constatar as dificuldades de outra língua e o clima de uma pátria diferente assomavam os meus medos.
Preferi fincar os pés no chão da minha terra e apenas sonhar com Macondo e Pasárgada.
Formei família perto dos trinta anos.
Tive a certeza da direção a tomar no exato instante que conheci a minha mulher. São dela os passos da frente nessa estrada.
Restam as lembranças, a imagem embaçada dos amigos de antes, os momentos vividos, só os bons, os ruins a tudo esqueci, um punhado de lembranças trazidas pela água morna do chuveiro, essas coisas boas que nem a rapidez do tempo consegue apagar.
Feliz aniversário para mim.
Que venham muitos outros dezesseis de fevereiro.
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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
27/2/2018 às 11h47
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Nas horas que me pego pensando...
Sou do tipo que passa um bom tempo do dia pensando o passado. São imagens gastas, já em preto e branco. O ruim disso tudo é quando quero lembrar algum nome e a memória falha. Ainda há pouco, uma reportagem na TV chamou a minha atenção: falava sobre tartarugas. Bastou para despencar na minha cabeça a lembrança de quando peguei uma tartaruga para criar. Era um bicho estranho, não queria nadar, desprezava a alface, gostava mesmo dos besouros. De repente, outra reportagem, agora sobre chuvas, enchentes e buracos. Por detrás do repórter, surgem alguns edifícios me arrancando suspiros: O mercado municipal, para mim, tem a mesma beleza misteriosa da torre Eiffel. Como era mesmo o nome da tartaruga? Sinto tristeza todas as vezes que me deparo com os restos do Colégio Osvaldo Cruz; o velho prédio agoniza silencioso, levando, nos seus tijolos carcomidos, minha infância e juventude. Desligo a TV, mas a tartaruga permanece rondando meus pensamentos, misturada com o rosto de um sujeito estranho - um homem esquálido e taciturno - que me cumprimentou num cruzar de caminhos e dele não me recordo o nome, muito embora a certeza que o conheço, porque se esqueço nomes, sou bom de lembrar fisionomias. O problema nem é tanto o nome, mas o lugar: onde foi que conheci aquele sujeito? “Estou pensando nos que possuem a paz de não pensar, na tranqüilidade dos que esqueceram a memória”, essa frase da Adalgisa Neri, tão forte e definitiva, serve de breve alento, entretanto, não espanta do meu pensamento o rosto do homem taciturno, muito menos a imagem da tartaruga. De perto não sou normal, muitas vezes falo coisa sem coisa, nada coisa, coisa nenhuma, porque quando estou navegando em pensamentos, tudo o que quero é o silêncio das paredes do meu quarto. Eu canto enquanto penso, assovio enquanto escrevo. Canto agora uma música entrelaçada de assovios, e nada consegue afugentar as dúvidas caminhando em meus pensamentos. Num repente, imaginei ter descoberto o nome do sujeito do olhar taciturno, mas logo recuo, ele não é o Antenor, sei disso por conta do riso na cara, sempre estampada na figura do Antenor, antigo conhecido dos tempos de aprendiz de joalheiro. Por onde andará o Antenor? Pronto, mais uma coisa para pensar... Uma palavra me salta da boca: sinantia, cuja sonoridade me faz visualizar mentalmente os misteriosos encantos das flores. Ao pensar nas flores, descubro que o nome da tartaruga era Rosa! Não é normal uma criança criar tartarugas, mas não sou normal desde criança. Rosa tinha um caminhar diferente e no casco umas pintinhas amarelas lembrando o sol. Eu tentei ser pintor, mas o único desenho que consigo fazer é o sol. Sou um pintor frustrado, mas nem quero pensar sobre isso. Fiz de uma velha vasilha cheia d’água a residência oficial de Rosa, mas ela não queria nadar. Entendo perfeitamente um bicho não comer verduras, mas uma tartaruga não gostar de nadar? Aquele bicho não era normal. Num estalo, lembrei do sujeito Taciturno; não o nome, nem o local, mas a função: é um poeta, dos bons e eu o invejo: não sei escrever poesia, até tentei, lá pelo meio da juventude, mas falei tanto sobre flores e passarinhos, nuns rabiscos ingênuos e descuidados, nem percebi o passarinho morrendo, espetado pelos espinhos das flores. Ah, poesia, tortuoso caminho pelo qual tremem as minhas mãos. E a tartaruga? A passos de cágado descobri afinal a causa de todo o mal que sofri: Rosa não era tartaruga, era jabuti. Termino nessa rima torta, tão igual aos passos daquele bicho estranho; calmo e vagaroso, como devem ser todos os pensamentos...
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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
24/12/2017 às 15h41
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A máquina de escrever.
Não são normais os impulsos que me arrastam até bem perto de coisas antigas.
Se pudesse, moraria num antiquário, faria de velhos livros travesseiro, ouviria discos de vinil e manteria o olhar sereno, a voz calada, até ganhar a confiança da máquina de escrever jogada no canto fundo da loja, quase sem cor, num modo de mágoa, como se me cobrasse os tantos anos sem uma única visita.
Se houvesse gravado o instante do primeiro som das teclas invadindo meus ouvidos, ele não seria tão real como agora, quando aliso a máquina de escrever e apago o resto do mundo.
É aquele momento que o tempo – esse velho canalha e banguela – me arrasta até o ano de 1982.
Eu era um tímido rapaz do corpo esticado e dos cabelos ruins, repleto de ideais nunca concretizados.
A lida como aprendiz de ourives já havia me mostrado que eu não tinha habilidade suficiente para vencer naquela profissão.
Meu mestre, Gilberto Billerbeck, me falava, armado no seu assustador jeito sincero, quase todos os dias: “seu destino não é o metal, é o papel”.
Ele sabia o que falava: o alicate e as demais ferramentas judiavam das minhas mãos finas.
Eu precisava aprender a datilografar.
Ainda lembro com perfeição o lamber de dedos contando o dinheiro da matrícula, guardado na paciência de um monge, e a euforia assim que pude me sentar diante daquela que considerei a mais perfeita invenção de todos os tempos: a máquina de escrever.
O sistema quwrty logo dominei, em pouco tempo conseguia datilografar mais de quinhentos toques por minuto.
Aprendi ligeiro todos os movimentos, os dedos afundando as teclas, as mãos ágeis, quase um tapa, movimentando a alavanca, passando o carro para a linha de baixo, formando outro barulho inesquecível, como se fosse o eterno bater d'asas de um belíssimo pássaro. Tlec, tlec, tletlec, rec, rec, vupt!...
Era um tempo de medos, incertezas e tenebrosos segredos, daquelas coisas que só se confessa ao vento, mas naquele momento, o papel branco bem à frente dos olhos, pedia registros.
Escrevi desabafos no ritmo do barulho da máquina de escrever e depois joguei tudo no lixo.
Ah, que saudosismo bobo é esse provocando um fio fino de lágrima, quente e salgada, a riscar os meus olhos?
Ainda bem que não tem ninguém por perto
– eu choro, mas tenho vergonha – e lembro, naqueles tempos, os comandos usavam fardas.
Às favas com o seu autoritarismo!
Escrevi certa vez, marcando com tinta vermelha o papel virgem e branco, e depois completei, quase uma facada certeira na opressão, “se oprime o meu livre pensar e minha maneira de me expressar, és então meu inimigo!” frase forte que logo depois apaguei, com medo de perder várias coisas, principalmente me impedissem de escrever.
Anos depois, tornei a datilografar, na mesma letra vermelha e papel branco: Vencemos!”
Será?
. E foi na máquina de escrever o meu primeiro verso, torto, sem sentido, desprovido de sutilezas e ele também apaguei para nunca mais me aventurar em poesias, assim como elimineis com várias batidas na tecla X as sensações inconfessáveis que moça dos cabelos caracolados e boca carnuda, moradora da casa na esquina, me provocava.
Nem lembro mais o nome dela...
E agora, nesse canto úmido da loja de antiguidades, aliso com a ponta dos dedos o teclado da máquina de escrever e uma montanha de pensamentos me invade; quem sabe no futuro eu perca o resto de medo e escreva nela sobre tudo o que vivi - o corpo lasso, mas a mente sadia - somente para ouvir de novo aqueles barulhos confidentes de outrora e alimentar meu coração saudoso, sedento da vida, do ancião que desmorona e ainda guarda lembranças, doces, amargas, repletas de espantos, coisas que desde muito moço carrego e hoje já não me avassala.
Tlec, tlec, tletlec, rec, rec, vupt!...
Saí da loja de antiguidades levando nos braços a velha máquina de escrever, ansioso como um menino pobre que ganha um brinquedo.
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Postado por ANDRÉ LUIZ ALVEZ
21/10/2017 às 14h32
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Julio Daio Borges
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