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Quinta-feira,
1/10/2015
Blog de Sonia Regina Rocha Rodrigues
Sonia Regina Rocha Rodrigues
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Mês das crianças, hora de ler histórias!
Sou uma leitora apaixonada por contos de fadas. Do tipo que pega emprestado os filhos das amigas para poder ir ao cinema ver os filmes da Pixar (conheço outras mulheres que fizeram o mesmo...)
. Estudei, como pediatra, a boa influência das histórias sobre o psiquismo infantil. Eu estava meio "engessada" no assunto, até o momento que um certo tipo inovador de histórias me surpreendeu, a princípio, confesso, de modo negativo. Minha filha estava rindo muito do ogro que arrotava e se comportava com outros modos muito deselegantes, quando resolvi sentar e assistir ao filme com ela. De repente, eu estava rindo e entendendo as (para mim) novas mensagens!
A partir da análise dos filmes À Procura de Nemo e Shrek I e II: percebi de que forma o mundo mudou; e de que nova maneira as histórias infantis estão a influenciar o psiquismo da futura geração..
A jornada do herói já não é mais, como dizia Campbell, " sempre a mesma estória que se repete" com novas roupagens. Surgiu algo novo, que continua a evoluir na temática dos contos infantis..
Para o psiquiatra Bettelheim, o conto de fadas traz alívio ao sofrimento infantil face a fortes emoções, através de " resgate, escape e consolo". (vide A Psicanálise dos Contos de Fadas). O alívio advinha do evoluir da psique para um estágio mais maduro, porque o conto de fadas elabora de forma simbólica os conflitos entre a criança e o mundo. Tratava-se de absorver os valores sociais para ser feliz, O sucesso de Nemo e Shrek surpreendeu-me, pois eu vinha há um certo tempo observando uma série de crônicas feministas um tanto quanto pertinentes, como a célebre charge em que a princesa beija o sapo e vira...uma sapinha! Ou aquela outra em que Cinderela diz ao príncipe que não quer casar e sim ir fazer faculdade e arrumar um emprego maravilhoso para poder viajar e etc Claro as pessoas continuam interessadas por histórias, mas as mães de hoje preferem um novo tipo de histórias, com uma diferente abordagem da psique e do estar no mundo. As histórias de hoje trazem alívio psicológico sobre um diferente enfoque: aceitar-se e acreditar em si para ser feliz.
Durante séculos o bem estar individual entrou em choque com ao interesse social. O que era bom para a sociedade não era necessariamente bom para o indivíduo. Casamentos arranjados, regras profissionais, tratados comerciais e políticos massacravam até mesmo os reis. Por outro lado, o que era bom para o indivíduo não era necessariamente bom para a sociedade. Liberdade de escolha era um privilégio de poucos e, sem o controle de paternidade, as mulheres não tinham autonomia e necessitavam do arrimo masculino.
Quem ousasse discordar das regras estabelecidas sofria desprezo, humilhações, exílio e até a morte. Na contramão da cultura, pensadores como Nietszche denunciavam o processo de escravizar o espírito humano; e defendiam o direito à liberdade e à felicidade pessoal.
A partir das últimas décadas do século XX, o individual veio ganhando cada vez mais espaço, de uma maneira bem positiva, em detrimento de valores limitantes tradicionais. Claro que alguns exagerdos egoístas vêm a ser a exceção que confirma a regra, pois temos a liberdade de dar-lhes as costas ou combatê-los! Divórcio,homossexualismo, celibato, tolerância religiosa surgem na sociedade atual como formas possíveis de ser, e todos têm acesso a respeito e oportunidades iguais, através de leis trata que garantem os direitos fundamentais de todos.
Tempos mais felizes aguardam as crianças que são criadas com histórias como À Procura de Nemo, Monstros S.A. e Shrek I e II.
Nessas estórias, a tônica é a manifestação do Eu, a aceitação da pessoa em um mundo mutante aberto a infinitas possibilidades.
No conto de fadas tradicional o herói tem uma missão a cumprir e seu mérito é a vitória. O objetivo é pré determinado por outrem e ele não pode falhar! Nas novas histórias o mérito é a persistência. Na aventura de Nemo, o herói inclusive está invertido: não é o filho que parte para salvar o pai, e sim o pai que parte para salvar o filho. Quando este pai pensa que falhou, no entanto, ainda recebe a simpatia do expectador e aparece um novo valor social: a solidariedade, manifesta por seus aliados (os pelicanos, a peixinha esquecida, que por si só é um resgate do papel social do velho e do doente).
O conto de fadas tradicional molda o espírito infantil para o " sacrifício" e a busca de metas orientadas. Seus heróis perdem partes do corpo, renunciam a prazeres, trabalham arduamente, conquistam princesas, animais encantados ou objetos de ouro enclausurados em torres ou palácios, sob a guarda de ferozes dragões, bruxas ou encantamentos. Mundo fascinante, é verdade, mas as novas histórias oferecem opções bem criativas e divertidas, ao valorizar a determinação de atingir sua meta, a coragem de assumir suas peculiaridades e a capacidade de adaptação a um ambiente instável.
A figura do mentor desaparece, e ao invés de santos disfarçados, gênios ou fadas madrinha, o companheiro do herói é um igual, imperfeito. Em Nemo, a peixinha distraída, em Shrek, o asno solitário, em Monstros S.A. criaturas horrendas e ridicularizadas. E como as crianças riem com a inversão da realidade: os montros é que teme as crianças! Os objetos mágicos dão lugar a conselhos práticos: 'continue nadando', 'faça alguma coisa', 'qualquer coisa!', enfim, persista.
Observamos na estória de Nemo uma didátiva genial para o pai superprotetor que é o responsável pelos deslizes do filho, e é ele quem necessita modificar o seu modo medroso de pensar. Analisando com cuidado, quantos casos o leitor conhece de um pai ou mãe desgraçou o destino de um filho? Por frustrar uma vocação, impedir um casamento de amor ou ter um preconceito qualquer? (em meu tempo, por exemplo, era muito comum a filha mulher não poder sair de casa para cursar a faculdade e ter de se contentar com os cursos disponíveis em sua cidade, já os filhos homens, esses podiam estudar o que quisessem e onde quisessem)
Diz a peixinha Dora, em Procurando Nemo : "que coisa estranha para se desejar a um filho, que nada lhe aconteça, pois, se nada lhe acontecer, sua vida será muito sem graça". Pura verdade!
Nemo é uma história para pais superprotetores ante a fragilidade dos filhos; filhos que, intimidados, tendem a ficar cada vez mais frágeis. Este comportamento que limita a liberdade da criança nela gera revolta. Nemo foge para o mar aberto, ação em que segundos antes nem se atreveria a pensar, é capturado e tem início a saga paterna. Ao final da história, o filho é aceito e até estimulado a participar da alegre aventura da vida, com as bênçãos do pai.
É fácil para a criança identificar-se com Nemo; ela é a parte mais fraca da relação pai-filho, com pouco poder de negociação, e desejosa de ser vista como alegre, bonita e meiga, assim como o peixinho.
Já a identificação com Shrek ocorre pelo lado inadequado de ser criança. O ogro desengonçado e feio, socialmente inadequado, sem controle do próprio corpo: como as crinaças pequenas, arrota, imite sons desagradáveis, suja-se todo. Ora, estes desastres a criança conhece bem! Em Shrek, a sujeira não é necessariamente ruim, pode ser divertida, e o ogrozinho se enlameia, transforma a flatulência em bolas de gás, faz caretas etc
Shrek é o herói que não se encaixa nas expectativas e demonstra sua boa índole através de atitudes bem estranhas, como fazer um churrasco de ratos, brincar de empurrar ou presentear a princesa com sapos.
Já o príncipe "certinho" que aparece em um os filmes 3D de Shreck, é visto com ressalvas, por ser vaidoso, tolo e manipulado pela mãe controladora. Além disso, ele chega atrasado à torre!
Nessas novas histórias, a princesa tem a opção de escolher seu destino. Fiona é corajosa, luta karatê, defende seu companheiro e pode decidir-se entre ser princesa ou ogra, assumindo seu lado individual e criativo.
Se no conto tradicional o beijo de amor " quebra o encanto" , no conto moderno o beijo de amor leva ao plano real e reafirma o encanto., pois Fiona permanece ogra. Interessante é é reparar no significado de 'quebrar o encanto', pois a expressão faz pensar em deixar tudo do que jeito que sempre foi, que alguém estipulou ser o certo, sem graça, previsível.
O conto moderno estimula o indivíduo a aceitar-se e a buscar a própria felicidade. Não importa se você é um monstrinho, em algum lugar haverá uma ogrinha a aguardar por você.
No conto moderno os valores pré determinados apresentados são rejeitados e ousa-se buscar a autenticidade. Em um século em que a informação e a tecnologia evoluem na velocidade dos bits, as barreiras geográficas desaparecem e a alma busca expressar-se, esta ousadia é a diferença entre o sucesso e o fracasso.
Resumindo, a mensagem do conto de fadas tradicional é Siga as regras para ser feliz.
O conto infantil de nossos dias aconselha, em um desafio muito simpática: Seja você sem medo de ser feliz.
Leia aqui uma bela história seus filhos:
Hoje é seu dia de sorte!
E um livro com haicais para os maiorzinhos:
Uma casa no interior
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Postado por Sonia Regina Rocha Rodrigues
1/10/2015 às 13h32
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Este doutor tem cada uma...
Eu ia ao médico e atrasei-me procurando os documentos, pois este doutor que apareceu aqui em Taquaral é todo cheio de esquisitices.
Julguem vocês mesmos.
Assim que chegou, o doutor queria por força descobrir o nome das ruas. Em Taquaral, todos sabemos, há apenas duas ruas: a do Cafezal e a outra. Pois o doutor cismou de saber o nome da outra rua, coisa que até mesmo o prefeito já esqueceu, e ele é o homem mais antigo da região.
Desde o primeiro dia o tal doutor arruma confusões. Criou um caso danado porque o Donato e a patroa não se 'alembravam' do nome do neto. O doutor chegou a gritar:
- Como é que fazem para chamar o garoto?
E a velha do Donato explicava com a maior paciência:
- Carece de nome, não. A gente chama assim: 'ó, menino!' e ele vem, ué!
O delegado riu-se muito porque o doutor pensou que o menino houvesse sido raptado. Um menino nascido e criado aqui, à vista de toda gente!
Outra confusão que o doutor arranjou foi com o rapaz da venda, quando a mulher dele apareceu lá no Pronto Socorro com convulsões.
- Como é o nome da moça?
- Sei não.
- Como não sabe? Ela mora com você ou não?
- Mora, sim, senhor. É minha mulher.
- E como você conheceu ela?
- Faz aí coisa de uns quinze dias, num forró lá em Taiaçú. Ela me disse que não tinha casa nem família, eu achei ela ajeitadinha e trouxe ela para morar comigo.
- E nem perguntou o nome dela?
- Pra que?
Era de ver-se os olhos do doutor, quase pularam das órbitas! O homem arroxeou, engasgou, pensei que ele ia cair durinho ali mesmo.
Gente boa, o doutor. Para curas e remédios, ele é tiro e queda. Pena que tenha essas esquisitices, essa estranha mania de se preocupar com nomes.
parte integrante do livro Coisas de médicos, poetas, doidos e afins.
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Postado por Sonia Regina Rocha Rodrigues
17/9/2015 às 22h45
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Os vestígios do dia
Sinopse do livro de Kazuo Ishiguro — The remains of the day
Tema de um
filme igualmente brilhante
, estrelado por Anthony Hopkins e Emma Thopson.
Introspectivo. Denso.
O primeiro capítulo é difícil de ler, há muitos nomes nele,depois a depois a leitura deslancha. O estilo do autor é agradável.
Um mordomo, com seu código de honra, seu senso de lealdade, de dignidade, é algo que só pôde existir na Inglaterra.
Mr. Stevens, filho de mordomo, é obcecado pela questão: o que é ser um grande mordomo? O que é esta grandeza, de que se fala na Inglaterra, até mesmo no nome do país, a 'Grande' Bretanha?
Dedicando a sua vida ao cumprimento do dever, Mr. Stevens certamente deixou passar oportunidades de amor, amizade, e mesmo, até, de tomar partido em assuntos morais de grande impacto.
Pode-se perguntar se o personagem carece de inteligência ou é apenas vítima de intensa programação, diria até adestramento, para não ver, não ouvir e não falar. Sua humanidade beira os limites da robótica.
O pano de fundo é a segunda guerra mundial.
O contraponto ao protagonista é a governanta Sally Kenton, emotiva, eficiente e inexplicavelmente, apaixonada por Mr. Stevens.Como este não lhe retribui o afeto, ela deixa o emprego e casa-se com outro homem.
Já velho, o mordomo passa alguns dias passeando pelo país e rememorando os grandes momentos de sua vida: a morte do pai, o convívio com Miss Kenton, que o admira, ainda, e ao encontro da qual está indo nessa viagem; ocasiões em que 'grandes eventos mundiais'foram afetados pelas pessoas que se reuniram em Darlington House, a mansão onde trabalha - porém Mr. Stevens permaneceu o perfeito mordomo: surdo, mudo, calado.
Ao fim da viagem, um desconhecido lhe diz, ao por do sol: (e ele, curiosamente, afirma, que, claramente, o sentido da frase é metafórico!):
`The afternoon is the lightineng part of the day'
(a tarde é a parte mais brilhabte do dia)
Bem, Mr. Stevens, o que lhe restou ao fim de seu 'metafórico' dia?
Terá o senhor o mesmo destino inglório, a mesma morte solitária de seu pai?
(curiosamente, ele nem cita a mãe)
Ao lado da ex governanta, em pé na estação de trem, o mordomo parece enfim compreender...deixo ao leitor, como o faz Ishiguro, as conclusões.
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Postado por Sonia Regina Rocha Rodrigues
14/9/2015 às 08h42
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A vida real é mais fascinante que a ficção
Sinopse do livro
A bibliotecária de Asuchwitz
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Antonio G. Iturbe
A vitória é dos que persistem na boa luta.
Há muitos fatos interessantes neste livro, como as pessoas livro — pessoas que memorizavam um livro e todos os dias contavam e recontavam a mesma história, para que o texto não se perdesse. E o recurso ousado utilizado por um alemão para retirar um judeu do campo, levando em sua mochila um uniforme extra e saindo os dois uniformizados, o judeu junto com ele. em seu horário normal de deixar o posto, bem à vista dos sentinelas habituais, que nem deram pelo estratagema.
Por que as histórias de campos de concentração nos fascinam tanto? Eu, pelo menos, fico grudada ao livro e não consigo largar, por piores que sejam as situações ali descritas, torcendo pelos personagens do bem.
E me dou conta de que, para mim, pelo menos para mim, os campos de concentração são uma metáfora de minha realidade, na qual estou presa contra minha escolha. E os nazistas são todas as pessoas más que destroem este planeta que tem tudo para ser um paraíso, os corruptos, os gananciosos, os criminosos, os maus profissionais e políticos corruptos, que se apropriam do uqe deveria ser o bem comum. Se acreditarmos na mídia, parece que os maus-caracteres estão com a bola da vez.
Sim, "este é um mundo horrível", como disse Saramago, e é consolador ler um livro histórico e verificar que a vitória está com os que resistem, com os que conseguem rir apesar de todo absurdo, focar na beleza apesar de toda crueldade, e recusar-se a odiar, pois, como diz um dos personagens do livro, o professor Morgenstern, se nos permitirmos odiar, "eles" terão vencido a guerra, ao nos transformar em um ser moralmente deformado. Manter a sanidade mental e com ela a alegria, em meio ao horror, eis o desafio.
Baseado na vida real de Edita Polachova e seu incrível mentor Fredy Hirsch, que acreditava que alimentar as almas era prioritário, e conseguiu manter o espírito vivo de crianças, jovens e idosos durante anos, em Auschwitz, com o uso de livros vivos (aquelas pessoas de boa memória que decoravam livros), quadros-negros imaginários e uma biblioteca secreta, arriscando a própria vida para organizar uma escola no campo, alimentando a esperança: um dia, quando sairmos daqui, precisamos estar preparados para reconstruir o mundo lá fora.
Atualmente não existe uma guerra tradicional, ela está mascarada: o esmagamento econômico, a hegemonia da mídia, todo um paradigma contra o qual nos defrontamos todos os dias, e que traz, para os mais ecológicos e menos materialistas, a sensação de maldade e sufoco.
Quanta coisa boa acontece e é tão dificilmente alardeada? Quanta tentativa de rebelião ao status quo é cerceada nos bastidores? Os movimentos em prol de justiça e contra corrupção em nosso país são um exemplo recente. (Alguém acredita que não existe censura no Facebook e em outras mídias sociais? Nos e-mails das intranets nas grandes corporações? Manipulação do meio jornalístico?) E um boicote ao trabalho de formiguinha dos milhares de simpatizantes da paz, em grupos de yoga, religiosos, grupos variados de apoio psicológico a todo tipo de problema?
Ao colocar-me no lugar da personagem, percebo que é assim que me sinto: um dia, quando toda essa maluquice que está aí passar, e a vida normal retornar ao planeta — porque esta insanidade destruidora simplesmente terá de parar - precisamos estar preparados para reconstruir a Terra, que o materialismo coloca em risco.
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Postado por Sonia Regina Rocha Rodrigues
8/9/2015 às 08h04
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Um tema, duas penas
Pretendo comentar hoje dois magníficos textos de dois dos maiores nomes da literatura nacional.
De um lado, a flor: a beleza, o singelo, a pureza, o ideal. De outro, a água: sem forma, absorvente, destruidora.
Deste tema rico em interpretações, dois grandes nomes da poesia nacional extraem, do mesmo tema, dois textos aparentemente contraditórios, copiados ao fim do artigo.
Não me deixes, de Gonçalves Dias
A flor e a fonte, de Vicente de Carvalho
A aversão pela água, na poesia de Vicente de Carvalho, bem como seu anseio por ela, na de Gonçalves Dias, lembram-me um casal de namorados, o eterno descompasso em que homens e mulheres repetem século após século seu desencontro fatal, como duas raças alienígenas mutuamente estranhas. Podemos pensar no yin-yang, o feminino e o masculino; quando um quer, o outro não quer.
À primeira vista, contudo, já é evidente o caráter narcisista destes dois poemas, na imagem do espelho das águas. É o ser humano a mirar-se na realidade e a vislumbrar, de um lado, em Gonçalves Dias, um ideal, e em Vicente de Carvalho, a morte que o amedronta.
Frágil ser humano, tão belo, tão efêmero, tão à mercê da vida sob a qual sente-se com tão pouco controle, enfrentando a indiferença ou a oposição feroz.
De forma que estes dois poemas, que a princípio parecem opostos nos remetem à inexorabilidade do destino. A água é o inconsciente humano, a força desconhecida que controla nossa vida, e também, pela ausência de forma, a imagem do Deus devorador ou receptivo, que nos recolherá em seu seio após a morte inevitável.
Com que sensibilidade, com que agudeza trabalham estes dois mestres e quanta filosofia se esconde atrás de uma situação aparentemente banal: a flor... a fonte...
Deixemos agora de lado estes frios argumentos e deleitemo-nos com estas belas imagens. Afinal, quando escreveram estes versos, estou quase certa de que nossos poetas não pensaram em nada disso. Poetas não usam o raciocínio, usam a imaginação. A pensar, preferem sonhar.
Sonhemos, pois...
"Não Me Deixes!"
Gonçalves Dias
Debruçadas nas águas dum regato
A flor dizia em vão
À corrente, onde bela se mirava ...
"Ai, não me deixes, não!"
"Comigo fica ou leva-me contigo
Dos mares à amplidão;
Límpido ou turvo, te amarei constante;
Mas não me deixes, não!"
E a corrente passava; novas águas
Após as outras vão;
E a flor sempre a dizer curva na fonte:
"Ai, não me deixes, não!"
E das águas que fogem incessantes
À eterna sucessão
Sempre dizia, e sempre embalde:
"Ai, não me deixes, não!"
Por fim desfalecida e a cor murchada,
Quase a lamber o chão,
Buscava ainda a corrente por dizer-lhe
Que não a deixasse, não.
A corrente impiedosa a flor enleia,
Leva-a do seu torrão;
A afundar-se dizia a pobrezinha:
"Não me deixaste, não!"
A Flor e a Fonte
Vicente de Carvalho
"Deixa-me, fonte!" Dizia
A flor, tonta de terror.
E a fonte, sonora e fria,
Cantava, levando a flor.
"Deixa-me, deixa-me, fonte!"
Dizia a flor a chorar:
"Eu fui nascida no monte...
"Não me leves para o mar".
E a fonte, rápida e fria,
Com um sussurro zombador,
Por sobre a areia corria,
Corria levando a flor.
"Ai, balanços do meu galho,
"Balanços do berço meu;
"Ai, claras gotas de orvalho
"Caídas do azul do céu!...
Chorava a flor, e gemia,
Branca, branca de terror,
E a fonte, sonora e fria
Rolava levando a flor.
"Adeus, sombra das ramadas,
"Cantigas do rouxinol;
"Ai, festa das madrugadas,
"Doçuras do pôr do sol;
"Carícia das brisas leves
"Que abrem rasgões de luar...
"Fonte, fonte, não me leves,
"Não me leves para o mar!..."
As correntezas da vida
E os restos do meu amor
Resvalam numa descida
Como a da fonte e da flor...
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Postado por Sonia Regina Rocha Rodrigues
2/9/2015 às 05h58
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Um poeta e três esposas
sinopse do livro Peônia apaixonada, de Lisa See
Baseado em uma ópera, sobre uma história antiga de fantasmas, o livro atualiza a saga de três esposasem um enredo original e romântico, Há uma referência histórica sobre o massacre de Yangzhou, em 1645, o momento de transição entre as dinastias Ming(chines) e Qing (manchú)
Como consequência da mudança de governo, os intelectuais chineses se retiraram do governo e se voltaram ao 'mundo interior', dedicando-se às artes, escrevendo poemas, pintando, patrocinando artistas em suas terras, afastando do governo para não auxiliarem a prosperidade dos invasores. Para a personagem do livro, isso siginificou a presença do pai em sua educação: ele a sentava no colo e lia os clássicos para ela; desta forma, ao contrário da maioria das mulheres, Peônia é instruída, e desenvolve sua inteligência e sensibilidade.
A mãe da jovem, como ela descobrirá mais tarde, no decorrer da história, foi uma das muitas mulheres da elite que, 'na desordem social que se seguiu ao Cataclisma, quando a dinastia Ming caiu e os manchús se apoderaram do poder, aproveitaram o momento para deixar suas casas e viajar pelos rios navegáveis em botes aprazíveis, escrevendo sobre o que viram e publicando suas observações.
Nessa época, muitas mulheres do delta de Yangzi deram uma nova interpretação às Quatro Virtudes. No entanto, ao criar as filha, a mãe de Peônia severamente a alertava para o significado e intenção originais (virtude, compostura, modéstia e trabalho)'
As Quatro Virtudes :
Chin - sabedoria
Yung - coragem
Jen — benevolência
Li - padrão de conduta exemplar
O livro é interessante sobre diversos aspectos: aborda a anorexia nervosa sob o ponto de vista de distúrbio amoroso; mergulha no aposento das mulheres, encara as consequências funestas da guerra, analisa os costumes antigos, apresentando-nos tanto a sabedoria quanto as superstições desse povo antigo; e disseca o relacionamento amoroso, transcendendo o desejo indo ao âmago do sentimento.
Leitura cativante e encantadora.
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Postado por Sonia Regina Rocha Rodrigues
30/8/2015 às 20h32
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Viajando pelas estátuas ao redor do mundo
O mais charmoso cemitério da Europa, um lugar realmente romântico, li no meu guia turístico. Li e reli, surpresa. Afinal, é um cemitério, não? Romântico? Charmoso?
Bem, eu tinha de conferir, e assim, lá fui conhecer o Cemitério Laeken, em
Bruxelas
, onde descobri uma cópia do "Pensador" e fiquei sabendo que Rodin fez vinte cópias da mesma, uma das quais está lá, no Laeken, onde o ponto forte são as estátuas colocadas ao lado dos túmulos ou espalhadas pelos caminhos entre os mesmos. Algumas são realmente tocantes, como as criancinhas pequenas desamparadas, irmãozinhos de mãos dadas, o marido desolado, a moça prostrada sobre o túmulo do amado.
A partir daí passei a prestar mais atenção nas estátuas em minhas andanças pelo mundo
, não nas históricas, convencionais, marcos de descobrimento ou homenagens a pessoas ilustres em poses solenes. Não me refiro a estas. Há outra sorte de estátuas.
As artísticas, em que escultores sensíveis retrataram momentos do cotidiano, o soldado que parte, a família que se despede, o migrante que chega, a ave que voa.
Como o rapaz que parte, retratado pela desolação do casal de amantes no parque Van Dusen, em Vancouver, Canadá, obra do artista George Lundeen.
Karol Badyna é o escultor dessa estátua de Chopin, exposta no Jardim Botânico de Singapura. Tive de brincar com ela!
Johnson Seward nos contempla com duas gostosas brincadeiras em suas criações. Uma está no Queen Elizabeth Park, Vancouver, e já teve uma de suas pessoinhas roubadas por algum maluco, mas felizmente foi encontrada e levada de volta ao grupo. Claro que a gente não resiste a misturar-se em sua "Sessão de foto"
A outra estátua de autoria dele que me divertiu está à entrada do Stanley Park, Vancouver, e se chama "A busca"
Estava eu alugando minha bicicleta quando me deparo com ela e resolvo tirar uma foto a seu lado na volta do passeio. Devolvida a magrela, duas horas depois, corro ao banco e encontro lá, para meu desencanto, uma senhora sentada bem ao lado da estátua. Aproximei-me disposta a esperar que ela se fosse, e fui recepcionada com um sorriso e uma história:
- Coitada! Você sabe, há anos que ela está aí, a procurar, a procurar, e nunca encontra, sabe-se lá o que, não é mesmo? Talvez uma carta? Ou um batom? Eu bem que tenho ajudar, toda vez que venho aqui fico conversando com ela, coitadinha. Tenho pena, ela é tão solitária, e não irá para casa antes de encontrar, sabe-se lá o quê.
Quinze minutos de conversa semelhante e eu desisti. Não tive de coragem de pedir que a senhorinha se levantasse e me permitisse uma foto ao lado da estátua, pois talvez ela nem soubesse que se tratasse de uma estátua! Persisti, voltei no dia seguinte e tirei várias fotos.
Povos que cultuam uma estátua famosa fazem com elas brincadeiras, como é o caso do Manneken Pis, na Bélgica, que volta e meia recebe roupinhas engraçadas para ficar sempre atualizado. Visitei-o na época da Copa do Mundo, 2014. Encontrei espalhadas pela cidade várias réplicas divertidas, Olhem só o que fizeram:
Uma categoria especial de estátuas apreciadas pelos amantes da arte são as que retratam os mortos famosos em seus locais e poses preferidos, como é o caso do Pessoa sentado à mesa no Chiado, em Lisboa, em frente ao bar A brasileira; do nosso Drummond sentado em seu banco em Copacabana. Difícil é a gente entrar na fila e conseguir a tão desejada foto com o ídolo disputado pelas câmaras dos turistas!
Esta estátua em Lisboa lembra a tradição da terra:
Algumas campanhas ficam famosas à base de estátuas coloridas, como as vacas que passearam pelo mundo e enfeitaram por um tempo a Avenida
Paulista, com objetivos controversos, incitando inclusive uma Cow Paródia em resposta á Cow Parade. Cito também os
curiosos rinocerontes que invadiram Sydney
, em uma campanha para defender os animais ameaçados de extinção, promovida pelo Taronga Zoo.
>
Aliás, australianos adoram estátuas estranhas, que me convenceram de que os ingleses imigrantes eram pessoas profundamente criativas. Em Adelaide, encontrei esses porcos revirando o lixo.
Em Melbourne, tropecei neste curioso porta níqueis.
Agora, responda-me o leitor se puder: por que motivo está este garotinho plantando bananeira em uma das ruas mais movimentadas de Sydney?
Há sites com listas das estátuas mais divertidas e curiosas, que o leitor paciente pode garimpar pelo Google.
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Postado por Sonia Regina Rocha Rodrigues
24/8/2015 às 10h13
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O cérebro criativo
sinopse do livro Mentes Inquietas - de Ana Beatriz Barbosa Silva
Em minha opinião, a mais fantástica constatação que a tecnologia do século XX permitiu aos médicos foi a certeza de que os cérebros são diferentes.
O estômago de todos mundo digere, os pulmões respiram, já quantos aos cérebros, cada um faz o que pode.
O cérebro "padrão" seleciona cerca de sete estímulos por vez, entre as centenas de imagens, sons e percepções recebidas, para compor o pensamento.
Esta seleção de sete estímulos torna as pessoas comuns objetivas e previsíveis.
No entanto, dez por cento da população é genéticamente premiada com um cérebro diferente, sem a capacidade de filtrar as informações recebidas. Estas pessoas têm a atenção direcionada a centenas de estímulos simultaneamente; são hiperreativas, impulsivas e distraídas, para começar a conversa. O cérebro DDA - distúrbio da atenção - já recebeu vários rótulos: deficiência cerebral mínima, crise hipercinética, ausência de controle moral e outros.
Quando criança, o indivíduo DDA troca letras, derruba coisas, acha a escola um tédio, é desorganizado e ouve mais "não pode" e críticas do que seus
colegas. Estas pessoas crescem com a sensação de serem indesejadas e incompreendidas.
O cérebro DDA só se concentra quando a atenção é captada, ele necessita de jogos, músicas e elogios em penca. Uma vez captada a atenção surge outra característica notável: o hiperfoco, uma concentração concentrada.
Um notável cérebro DDA, Eisntein, péssimo aluno,focou vinte anos a questão do que acontece com os objetos à velocidade da luz. Outro sonhador, Gran Bell, levou anos para resolver como falar com alguém do outro lado do planeta. E que dizer do maluco que resolveu domesticar a eletricidade, a mortal energia dos raios? Convenhamos, as pessoas sensatas não se ocupam com estas tolices. Sorte da humanidade que haja cérebros DDA, pobres sofredores incompreendidos! Para eles, o mundo comum é tão pobre...
Quando amam, é tudo ou nada. Há um excesso de emoção e a tendência de idealizar o objeto amado. Verdade é que alguns DDA se apaixonam por suas
carreiras ou pela ciência. Artistas são DDA que sublimam a emoção em músicas, romances, poesias...
De Fernando Pessoa, cuja vida e obra encaixam-se no conceito de DDA, deixo a palavra com a psiquiatra Ana Beatriz da Silva, autora do livro Mentes
Inquietas:
Fernando Pessoa sinaliza em sua obra traços de uma mente com funcionamento DDA: inquietação, contradição, desorganização, devaneios, hiperconcentração, criatividade, intolerância ao tédio, dificuldades em seguir regras. Criou vários "eus", os famosos heterônimos, para descrever o mundo sob diversos ângulos.
Os desencontros amorosos estão presentes:
"Cobre-me um frio de janeiro/ no junho do meu carinho."
A baixa auto-estima aparece de maneira clara no poema Tabacaria:
"Não sou nada / Nunca serei nada / Não posso querer ser nada / À parte isso/ Tenho em mim todos os sonhos do mundo."
E, certamente, Fernando Pe ssoa nos fornece a receita do sucesso, nas palavras de Ricardo Reis:
"Para ser grande,sê inteiro/ nada teu exagera ou exclui/ Sê todo em cada coisa/ Põe quanto és no mínimo que fazes/ Assim em cada lago a lua toda
brilha, porque alto vive."
Pois é preciso agir ou o DDA corre o risco de passar pela vida anonimamente a observar estrelas, deixando atrás de si um rastro de roupas esparramadas,
gavetas abertas e corações partidos.
Einstein escreveu sua teoria da relatividade, publicou -a, fez conferências a respeito e tornou-se um criador. É verdade que a maioria dos mortais não entendeu nada, mas, já que o homem falou tanto, acharam melhor retirá-lo da Alemanha e dar-lhe um prêmio Nobel, por via das dúvidas.
Bem, reconhecimento - em vida - é ótimo!
Este é o desafio do cérebro DDA: ultrapassar a fase do sonhador e tomar atitudes práticas; sair do mundo das idéias e lançar fachos de luz sobre os habitantes da caverna.
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Postado por Sonia Regina Rocha Rodrigues
16/8/2015 às 21h18
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Nu shu: consolo para os dias de arroz e sal
Esta é a sinopse do livro Flor de neve e o leque secreto, escrito por Lisa See.
O filme de mesmo nome é também interessante, inclusive por ampliar o assunto e abranger os dias atuais e as mulheres em seu aspecto contemporâneo, em uma história espelhada à principal.
Basicamente a personagem do livro está enredada nos aspectos Obediência cega versus Sinceridade. Esta é a história de todos os que são criados na ideologia do dever acima de tudo. Trava-se a batalha interior entre a verdadeira natureza que clama por expressar-se e a pessoa que supomos que devemos ser, para corresponder ao que a sociedade espera de nós. Os ciclos da vida são inexoráveis, mas não precisam ser impostos, para servir a interesses outros, alguns escusos, outros equivocados.
Existe alternativa, sim, ao papel social imposto, a maneira grega, ateniense, Paideia: descobrir quem somos e desenvolver o melhor de nós. Paideia deriva de paidos
Não pule as notas de agradecimento da autora, pois são quase tão interessantes quanto a história, trata-se da pesquisa que ela desenvolveu pra escrever o livro. Vou resumir aqui.
Na China, as mulheres da provincia de Hunan, sudoeste, desenvolveram uma escrita secreta, que permaneceu oculta por mais de mil anos, através da qual elas escreviam poemas, histórias, cartas, e bordavam mensagens me pequenas peças de roupas que enviavam como presentes. Diz a lenda que a escrita nu shu foi criada por Yuxiu, linda moça letrada, filha do fazendeiro Hu, da aldeia de Jintian. O imperador Song Zhezong, ouvindo falar de sua beleza, levou-a para seu palácio, onde ela foi menosprezada pelas damas da corte e abandonada assim que o imperador cansou-se de sua beleza. Essa foi a maneira encontrada pela moça para manter contato com sua família.
Por razões metafísicas e práticas, grande parte dos escritos em nu shu foram queimados. A partir do século vinte, desaparecendo a necessidade de utilizar esta linguagem, ela ficou praticamente extinta.
Há, atualmente, um museu de nu shu e uma escola de nu shu em Puwei.
O esquema de rimas tradicionais utiliza o ritmo de rimas pentassílabo ou heptassílabo.
Também na China, algumas meninas especiais podiam unir-se em alianças por toda a vida, alianças conhecidas como velhas iguais ou como união laotong. Elas deveriam ter certos traços em comum, por exemplo, nasciam no mesmo dia e ano, e mais outros seis atributos.
Nu shu é a única escrita conhecida que foi utilizada somente por mulheres.
Diferente dos ideogramas tracidionais, utilizava fonemas (mulher é sempre mais esperta, mesmo)
Os pés amarrados eram chamados lírios dourados e dizia-se que eram uma preparação para as dores do parto (???) e comprovavam a capacidade da mulher de ser disciplinada. (E a coitada tinha outra opção?) Supõe-se que uma em cada dez meninas morriam no processo mas ninguém se importava porque meninas eram criaturas sem valor.
Há muitas coisas interessantes no livro, a par da linda história imaginada pela autora.
Por exemplo, a maneira poética de dividir o ciclo da vida das mulheres:
dias de filha
dias de cabelo preso (noivas)
dias de arroz e sal
dias de sentar calmamente
O ideograma chinês para amor materno, tengai, é formado por dois sinais: um siginfica amor e outro, dor.
Muito mais o leitor atento encontrará no livro, que o convidará a refletir sobre a amizade, a lealdade, as difíceis escolhas que a vida impõe nos momentos de crise.
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Postado por Sonia Regina Rocha Rodrigues
8/8/2015 às 08h09
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Porque as mulheres fazem artesanato?
Simone de Beauvoir que me desculpe, eu discordo. Li seu livro aos 17 anos, hoje tenho 60 e falo com conhecimento de causa. Mulheres fazem artesanato porque é divertido, criativo, interessante e cada pequena peça cuidadosamente elaborada expressa vida.
Nos anos setenta, O segundo sexo tinha seu peso. Garotas intelectualizadas (como eu) torciam o nariz para tarefas domésticas e varavam as madrugadas sobre os livros, visando um futuro financeiramente e socialmente/ nte independente.
A verdade? Eu adorava cozinhar e pintar. Também admirava as lindas colchas de crochê feitas por vovó. A pouca habilidade de minhas mãos canhestras foi um fator determinante em minha decisão de debruçar-me sobre os grossos compêndios. Formei-me e por 35 anos empenhei-me em trabalhos enfadonhos sonhando em pilotar o fogão. Minha alegria era estar em casa a cuidar dos filhos. Pude trabalhar meio período por alguns anos a vivia pensando nos momentos passados em casa com a família.
Ao longo da vida, como muitas colegas, em intervalos dos plantões, dedicava-nos a pequenas tarefas manuais, usufruindo uma agradável sensação de relaxamento mesmo que o resultado final estivesse muito aquém dos mimos comprados prontos nas lojas. O resultado objetivo, a princípio um completo desastre, aprimorava-se com o tempo, gerando profunda satisfação. Aquele sapatinho, aquele paninho de prato, aquela touquinha, feitas com as próprias mãos, expressavam amor. Cada pecinha tecia a vida, acalmava a mente, trazia a atenção ao momento presente. Comecei a ver o artesanato como uma forma de meditação ativa, potente e eficiente, como descobre através dos anos.
Quantos depoimentos de mulheres que começavam a bordar do lado de fora da UTI (unidade de terapia intensiva), às portas do centro cirúrgico, nas salas de espera dos terapeutas, enquanto aguardavam notícias dos entes queridos? "Deu-me conforto espiritual". "Salvou-me da depressão". "Diminuiu meu desespero".
Velhice chegando, maridos morrendo, que os egoístas dos homens insistem em morrer antes, pais idosos com doenças degenerativas, o que salva centenas de mulheres da solidão e da tristeza? A arte e o artesanato, seu primo próximo e igualmente gratificante.
Não, Simone de Beauvoir, o artesanato não é necessariamente" a ocupação que mantém as mulheres ociosas em casa, preenchendo o vazio de suas vidas inúteis". Nem acredito que fosse assim para todas as mulheres dos séculos passados.
Ao aposentar-me, fiquei feliz em dedicar meu tempo a sanar a frustração da adolescência: aprendi a tricotar, a costurar e a fazer patchwork. Não o faço por sentir-me inútil. É simplesmente divertido. O patchwork é um quebra-cabeça de adultos. De quebra, relembro geometria, que eu teria aprendido com mais facilidade no ginásio confeccionando roupas do que me debatendo com a questão retórica "pra que diabos serve isso? ". É difícil. Desafiante. Criativo.
Sou, como sempre fui, uma pessoa muito ocupada, com múltiplos interesses. Ainda exerço a profissão, dois dias por semana. Frequento todos os grupos que sempre quis frequentar, onde se discute literatura, poesia, cinema e....artesanato também! Esses caminhos criativos nos conectam com as pessoas, expressam o nosso eu.
Simone, nem toda mulher nasceu para ser intelectual, e eu, que sou intelectual assumidíssima, tenho, sim, meu lado caseiro que me dá muita alegria.
Neste bom século XXI a mulher pode ter o melhor dos dois mundos.
Vamos, então, ser feliz. Simples assim.
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Postado por Sonia Regina Rocha Rodrigues
4/8/2015 às 11h38
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Julio Daio Borges
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