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Quinta-feira, 28/1/2016
Blog de Sonia Regina Rocha Rodrigues
Sonia Regina Rocha Rodrigues
 
É suave a noite

este texto dá nome ao livro de contos da autora

_Nut, a deusa da noite, estende seu manto negro para proteger o sono dos homens.
_Nut?
_Nut, a deusa da noite, cobre seus filhos com esse magnífico manto estrelado.
E enquanto minha tia falava, as últimas luzes do dia sumiram por trás da serra e escureceu. Era uma noite sem lua. Eu podia ouvir os vagalhões do mar e o farfalhar dos coqueiros soava mais alto. Milhares de sons apareciam com as trevas – sapos, corujas, mariposas em vôo. O mundo trocava as cores por sons. E a orquestração era magnífica.
Pude sentir os cheiros, que, à noite, ficam mais intensos. Lírios, camélias, damas da noite...e eu quase podia provar o mar no sabor salgado da brisa.
Ah! Como eu me sentia segura nos braços amorosos de Nut, que, nas minhas recordações, confunde-se com minha tia.
Por isso eu andava confiantemente pela casa às escuras, se acordasse com sede durante a madrugada. Por isso também era eu que, quando faltava energia, subia as escadas sozinho e ia à despensa buscar velas e fósforos.
_Tia, essa deusa Nut é de que país?
_Egito, meu amor.
_Aquele país das pirâmidos e dos desertos?
_E dos faraós.
_Da Esfinge.
_Das tempestades de areia.
_Dos oásis.
_Dos camelos.
E assim os temores que eu nem chegava a sentir transformavam-se em exóticas maravilhas.
Aprendi a amar a noite, e decifrar em seus cheiros e sons tão bem quanto nas cores e formas do dia.
É por isso que durante as horas mais negras, eu prossigo como quem atravessa uma tempestade de areia no deserto, na certeza de que as tempestades passam, e há sempre um oásis um pouco mais adiante.



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Postado por Sonia Regina Rocha Rodrigues
28/1/2016 à 01h10

 
Pausa para sentar

Já me aconteceu de ver um banco que "fala", como o daquele famoso quadro de Van Gogh.
Ou um banco requintado, como os da praia de Deep Cove.



Bancos com estátuas.



Um banco com uma incrível paisagem atrás, vêm aquela contade de tirar uma foto ali, ou simplesmente ficar algum tempo apreciando a paisagem, e aí acontece a catástrofe! Vem alguém e chega na frente. Adeus, banco!
A saída possível é disfarçar e ficar á toa conversando, dando umas olhadinhas de esquelha, mexendo na máquina fotográfica, esperando que o intruso levante-se e ceda-me a vez.
O outro, para minha grande frustração, abre um livro, põe-se a folhear um jornal ou inicia um diálogo interminável com em acompanhante. Isso quando não tira da mochila um lanchinho, o que simboliza que não pretendo voltar tão rápido quanto eu gostaria para o lugar de onde veio.
Certa feita, minha investida ao banco foi cruzada por uma senhora idosa, eu fiz minha cara profissional de paisagem e aguardei. Quem sabe ela aguardasse o ônibus, havia um ponto em frente. Nada disso. ela chamou-me! Ouvi, surpresa, insólitos e singulares casos. Ela sorria, encantada por ter encontrado uma ouvinte atenta; como aprendi com meus mestres de psiquiatra, por via das dúvidas retribuí sua atenção com gentileza.Embarquei em um mundo paralelo, no qual Isabel Allende e Clarice Lispector enlouqueceriam de prazer, de onde Kafka teria retirado inspiração para mais um título instigante: "O banco".
Eu, no entanto, queria apenas a foto.
Os minutos se passavam, a senhorinha lançava-me olhares cada vez mais perigosamente íntimos e finalmente confessou que ali vinha todas as tardes, no mesmo horário, há anos, ouvir as confidências agoniadas da estátua (ela dizia desta mocinha) que procurava, procurava, sem nunca encontrar... sabe o quê?
- Nem ela, coitada! Já se esqueceu!
Um tremor percorreu-me o corpo. Perdi o resto de humor e a paciência. Desisti e despedi-me, de forma um tanto abrupta, receio.
Na tarde seguinte voltei mais cedo, acompanhada, tirei várias fotos e parti.



Alguns bancos deste mundo, estou convencida, deveriam estar protegidos por lei.
"Uso por tempo limitado".
"Fotografe com moderação"
"Proibido ler"
A cobrança por parquímetro poderia ser uma das opções.
Bancos charmosos deveriam ter a seu lado os cartões da loja, ou do artista, para que turistas ricos pudessem encomendar um semelhante para uso pessoal.
O de Van Gogh, que tenho reproduzido em um livro de arte em minha estante, visito de tempos em tempos para filosofar na fragilidade da alma humana.



Banco é objeto que extrapola o significado léxico. Útil para tanta coisa...inclusive para sentar.
Em minha opinião, porém, o melhor banco é a pedra onde me sento, ao final da tarde, no topo da montanha, após horas de caminhada pela mato, para admirar, sentindo os cheiros da terra, ao som dos passarinhos, o espetáculo inimitável e renovado do pôr do sol.



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Postado por Sonia Regina Rocha Rodrigues
8/1/2016 às 16h45

 
Um psiquiatra me disse...

Quero terminar o ano contando algo inspirador, que encha e esperança e beleza os momentos escuros e desalentadores da existênca.
Lembro de uma história terapêutica, repleta de magia, que contou-nos um professor:

"Era um vez...
um gnomo, pequeno, desengonçado, disforme, feioso, que caminhava uma tarde pela floresta, aos prantos, soluçando tão desesperadamente que chamou a atenção de uma fada:

- Por que choras, gnomo?
- Então não ves como eu sou horrendo? Ouça os pássaros e seus chilreios maviosos. Veja as borboletas dançando a alegrar a paisagem com suas cores. As elegantes joaninhas. Os esquilinhos tão engrançados. Os coelhinhos fofos...
- E tudo isso não te deixa feliz?
O gnomo chorou ainda mais alto:
- Estou rodeado de beleza e sou medonho! Como o mundo pode ser tão injusto?
A fada riu e apontou:
- Olha para trás, gnomo! Teu caminho está atapetado de flores. Tu tens um poder mágico. Cada lágrima tua regou um botão, que floresceu glorioso.

O feio gnomo olhou para trás e conferiu. A trilha de seus passos estava ladeada de rosas, jasmins, margaridas...

- Pouco importa a tua aparência, gnominho bobo. As tuas ações é que importam. E tem mais...
- O que mais? - já meio consolado, o gnomo ia secando os olhos.
A fada continuou:

- Se tuas lágrimas têm esse poder, já imaginaste o poder de teus sorrisos?

Quando o gnomo sorriu, a floresta encheu-se de luz."



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Postado por Sonia Regina Rocha Rodrigues
31/12/2015 às 18h48

 
Crônica de Natal



A casa estava cheia de segredos porque havia uma criança a encantar.
A avó encarregou - se da parte mais difícil : os passarinhos de espuma e plumas.
Rita e Mariana, que já sabiam usar a máquina de costura, confeccionaram 24 bonecas com retalhos coloridos.
E Carmem, que por ser menor nem por isso era a menos habilidosa das tias, trabalhou com cartolina, tintas e papel laminado, povoando as gavetas da cômoda com todo tipo de anjos.
O grande pinheiro foi levado para a sala enquanto a pequenina dormia e enfeitado com o trabalho de semanas. E, para finalizar, as luzes piscantes e cantantes.
Depois chamaram a pequena para a sala, onde ela entrou a correr e paralisou - se de surpresa. Com que emoção ela exclamou :
- Anjinhos ! Bonecas ! Passarinhos !
Então a mãe acendeu as luzes natalinas e aquela sacizinha fez uma coisa totalmente inesperada : sentou - se no chão a olhar, a olhar, a olhar que era um nunca mais acabar ... e suspirou.
Suspirou tão docemente ... suspirou tão de mansinho...
Foi o presente mais precioso que a família poderia ganhar !

Leia outros textos da autora.

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Postado por Sonia Regina Rocha Rodrigues
16/12/2015 às 21h00

 
Pânico de aeroporto


Entendo, sim, ah, como entendo!
Você passou pela pior experiência de sua vida e está traumatizado; teve um colapso nervoso, quase perdeu o avião, passou meses à base de tranquilizante e o psiquiatra desistiu de tentar tratar você.
Você agora quer cancelar as férias, desistir da viagem planejada pela família, seus filhos o odeiam e a mulher quer o divórcio, A situação pede medidas desesperadas, eu sei. E creio ter a solução.
Nem sempre uma pessoa tem tempo de familiarizar-se com a situação problema em terreno amigável, experimentar o enfrentamento na infância, em grupo, em seu próprio país.
Eu, como você, vivi minha primeira experiência de horror na maturidade, na frente de filhos na pior idade, sentindo a pressão interna de ser o modelo, de dar exemplo, corresponder à imagem de pai herói, essas imposições mentais que nós, simples mortais orgulhosos, sofremos antes de conhecer o tamanho do monstro.
Em Guarulhos o estresse de aeroporto foi administrável. Aquela multidão apressada e indiferente comunicava-se em português. as placas e painéis idem, o cuidado maior era escapar de bandidos que roubam as meias sem tirar os sapatos do assaltado, sei que você me entende. Vai-se ao banheiro com um olho nas crianças e outro nas malas. Em minha primeira viagem, as danadinhas não tinham quatro rodas, como as de hoje. As malditas escorregam das escadas rolantes, tombam, rolam, entravam nas portas dos elevadores e pesam toneladas, balançando perigosamente na pilha arrumada no carrinho de bagagens, carrinho que insiste em desviar para um dos lados.
Meu batismo de fogo foi Toronto, onde eu fiz conexão e precisei fazer o translado das malas. Entendo porque muitos pagam cinco vezes mais caros por menos tempo de passeio. Sofre-se menos acompanhado.
Confiante em meu francês, logo descobri que do fora de Quebec quem se exprime em francês são somente as placas. Já no primeiro minuto senti-me perdido. Compreendi que teria de me bandear com crianças e malas para outro aeroporto, um doméstico. Ante o meu ar desesperado, um funcionário solícito chamou por outro, que "falava a minha língua": espanhol! Chamei de volta o canadense, Escrevi bilhetes, que não tem sotaque...
Enveredei por corredores sinuosos, desci, subi, enganei-me, refiz o percurso suando, embarquei em um pau-de-arara versão aeroporto, um ônibus que transporta gente em pé e de alguma forma as malas e as crianças têm de ser contidas - como? Em meio a olhares furiosos e críticos, atravessamos um viaduto e fomos finalmente despejados em um terminal do doméstico, infelizmente o terminal errado...
Claro, o número do vôo está impresso na passagem, só que o painel luminoso parecia não ter sido avisado. Infeliz, permaneci estático observando as conexões que se sucediam brilhando e piscando, insistindo em ignorar a cidade de Vancouver.Quando finalmente o portão de embarque resolveu aparecer no painel, precisei localizar o danadinho fisicamente. Havia um mapa imenso em uma das paredes, para facilitar a vida dos perdidos no labirinto. Bela tentativa, no meu caso, inútil. Meu cérebro disléxico interpreta mapas às invertidas. Disléxicos travam sob tensão.
Os elevadores, por alguma sinistra intervenção, escondiam-se de mim. O jeito era uitlizar rampas e exercitar os braços ladeira abaixo ou acima. A essa altura eu agradecia ao universo porque letras e números são iguais em português e em inglês, mas tive pouco tempo para alegrar-me por não estar no Japão ou na Arábia. O primeiro corredor desembocava em um segundo, e este em um terceiro, mais longo e deserto. Quando pensei ter chegado ao destino final, encontrava-me diante do blacão de entrega de malas. Depois de breve descando, a brincadeira de "descubra seu portão"recomeçou, sem as malas, felizmente.
Indicaram-se a direçao B4, embora no painel eu lesse C7...eu em francês, o outro em inglês, desconversamos em um mapa, rascunhado com um "x" que deduzir marcar o local de nosso embarque.
Não era no B nem no C e quando descobri isso eu já emagreceram alguns quilos, perdera a cor e a voz. Um anjo jogou em meu caminho outro brasileiro tão perdido quanto eu, mas com a vantagem de falar inglês.
Um guarda impaciente, aos gritos de "go! go!" apontou um túnel adiante. Corremos loucamente, o rapaz, eu e as crianças. (como era bom estar sem as malas!). Desembocamos em uma espécie de praça, onde uma senhora suspirou, aliviada ao nos ver, em português:
- Gente! Graças a Deus! Estou aqui já tanto tempo!
Nisto aproximou-se uma perua, vazia, a buscar pelos retardatários: nós. Ventie minutos depois parou e deu instruções ao rapaz que nos guiou até o embarque. Ouvimos no trajeto a úlitma chamada, como compreendi pela agitação do rapaz.
Fui o último a entrar, sem direito a banheiro, lanches, compras, nada.
As crianças me olhavam caladas, em um misto de decepção e piedade pelo pai desalojado do pódio. Consolaram-,me com beijos molhados e acariciavam meu rosto com mãozinhas trêmulas, a repetir como um mantra "está tudo bem".
A vida ;e impiedosa. A proxima viagem, onde eu ingenuamente pensara embarcar, para Paris, como um "connaîsseur", me surpreendeu com novas torturas: check-in eletrônico, drop-off de calçada, GPS, aplicativo para acompanhar informações de voo pelo celular.
O pobre viajante agora precisa ler uma lista telefônica de instruções antes de descobrir em dez segundos que com ele a tecnologia empaca e o direciona ao blacão, onde um profissional educado não coloca em palavras o eloquente olhar: "por que cargas d'água esse sujeito não fez tudo online?"
Segui pela vida, sofrendo entre senhas e terminais, simplesmente porque minha paixão por viagens é maior, miuto maior que meu pânico de aeroporto até que...

- A mãe (de 87 anos) vai junto com você, levando duas malas de 32 quilos, mas não se preocupe que eu já pedi cadeira para ela.
- Mãe? Cadeira?
- Claro, irmão, caderia de rodas, para idosos, depois do balcão de embarque.Até lá você leva.

Chorei noite seguidas. Às escondidas. No escurinho do quarto. Meus pesadelos recorrentes versavam sobre a impossibilidade de atravessar os longos corredores de aeroportos com mãe, cadeira de rodas, malas. Como eu iria dar conta? Dessa vez emagreci antes do vôo.
A confusão começou já em Guarulhos, em reforma, sem sinalização, e o taxista folgado que desconhecia o caminho:
- O senhor desce lá e pergunta, faz o favor, que eu não posso deixar o táxi.
Lá fui eu, atravessei o estacionamento, cruzei duas pistas congestinonadas e falei ao atendente do balcão de informações:

- Minha mãe tem 87 anos, está lá no estacionamento, fiz o pedido de uma cadeira de rodas para p Delta Airlines, como faço para ...
O risonho rapaz nem me deixou terminar a frase. Chanmou alguém da Delta pelo telefone:
- Uma passageira de 87 anos está no estacionamento, tem como ri lá buscar? É uma situação especial.

Menos de cinco minutos depois um funcionário ligeiro e atencioso foi buscar mamãe, chamou outro colega eficiente para ajudar no transporte das malas. Segui atrás deles, em passo acelerado, maravilhado em ver como os elevadores apareciam magicamente quando precisávamos deles, passamos à frente na fila do despacho das malas e na de embarque. O rapaz só nos deixou à porta mesmo do avião.
Na descida, a comissária de bordo me avisou que nem levantasse. Após todos descerem á que a cadeira apareceria à porta da aeronave. Novamente fomos conduzidos diretamente à esteira, onde o funcionário pegou as malas e as acomodou na carrinho, passamos à frente no setor de imigraçao e, do lado de fora, fomos transportados por um carrinho elétrico por rampas seniosas e intermináveis até a saída.
Assim descobri: acompanhar idoso é tudo de bom!
Esqueça as dificuldades todas - rampas, painéis, elevadores, portões. Conheça finalmente a alegria de voar. Se você não tem o seu próprio idoso, procure-me, que eu alugo mamãe.
Isso mesmo. Eu alugo a mamãe.
Antes de me censurar, saiba que a idéia partiu dela. Mamãe adora viajar, é saudável, culta, bem-humorada. Ela se compromete a levar apenas bagagem de mão e despachar duas malas de 32 quilos para você. Faça as contas e confira. Pagar a passagem de mamãe sai mais barato que pagar excesso de bagagem.
Mamãe só pede que você pague a passagem dela com três dias de intervalo para os passeiios, nso quais, se você quiser, ela o convida para partilhar meais entradas e acesso preferencial para acompanhantes de idosos.
Mamãe paga pelas próprias refeições, passeios e diárias de hotéis.
Faça como eu, que já comuniquei a meus médicos que a partir de agora dispenso terapias, florais e ansioliticos ineficazes.
Mamãe é melhor que Prozac.

Leia mais sobre as viagens da autora

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Postado por Sonia Regina Rocha Rodrigues
30/11/2015 às 15h21

 
Esta estranha fronteira entre homens desiguais.

Moro em Santos, cidade portuária do Brasil.
Da porta da casa para dentro é tudo limpo, organizado e farto. Na soleira da porta, espreita a sujeira. Mendigos esfarrapados espremem-se nos espaços entre os portões a gemer variações da ladainha bem conhecida "umesmolinhaporamordedeus".
O lixo precisa ser entregue diretamente nas mãos do lixeiro quando o caminhão dobra a esquina, senão eles fuçam tudo e esparramam os restos de comida pelas calçadas.
Roupas e outros objetos usados eu ofereço a eles antes de levar ao brechó da igreja, exceto pelo sapato branco que a vizinha, sem o menor traço de vergonha, arrancou das mãos do pedinte:
- Fico com este, é meu número e a marca é boa.
O sorriso divertido no rosto do mendigo confirmou minha desconfiança: esmolar é mais rentável que salário mínimo e pensão de aposentado. Desconfiança que virou certeza quando minha prima atacou o mais idoso entre eles:
- Ora, se não é o Argemiro, meu vizinho, dono de dois bangalôs, um onde ele mora, outro que ele aluga...
- Leve a mal, não, é que nas ruas ganho mais e não pago impostos.

Nunca dou dinheiro, que irá direto pro dono do bar ou pro bolso do traficante.

Nunca dou nada a quem carrega crianças, a gente nunca sabe se foram raptadas, ou se são gerenciadasdas como fonte de renda.
Comida, vi muita vez jogada fora, como o bife quentinho que dona Maria estava fritando e voou longe com um indignado 'quero é cachaça'.
Onde moro, a rua é um vidão - todas essas cestas básicas distribuídas pelos religiosos, e o café com pão da madrugada oferecido por voluntários esvaziam as filas de candidatos a emprego.
Miséria mesmo, vi em outras paragens, nas rugas secas de olhos sertanejos, nos olhos tristes de refugiados tendo em mãos os passaportes em ordem e nos bolsos, moeda alguma.
Miséria de comover, a do jovem ruivo mal cheiroso, abraçado a um cão perebento, num pranto tão dolorido que até desconfio que ele chorava por si mesmo e não pelo companheirinho.
Pelo que sei, muitos desses jovens são doentes, como o estudante de engenharia...
Essa história é interessante. Eu estava trabalhando quando chegou, trazido pela ambulância, um rapaz que supusemos ser negro. ele foi levado para o banho e voltou brando e loiro. Foi quando minha colega reconheceu o vizinho que, enlouquecido pela dor da perda de ambos os pais, deu para beber e perdeu-se no mundo. A família ignorava o paradeiro dele até aquele dia, quando ela pode informar e salvá-lo do abandono.
Alguns capricham no método de esmolar, mesmo porque, para alguns, a rua é o espaço temporário onde garimpam oportunidades artísticas, Piaffs à espera da revelação. Já ouvi violinestas dignos de uma sinfônica e um criativo sujeito que construiu um órgão com garrafas de água e toca lindas peças clássicas. Nas ruas também há cultura.
A vaca foi o mais criativo recurso em que (quase) tropecei. Foi em um vilarejo da Provença, eu apreciava o passeio pelas sinuosas ruelas amuralhadas, e pulei de susto ao ver a vaca.
Amarela, com seu badalinho encantador, a balançar a cabeça, mugindo indolentemente. Logo percebi a corda presa ao pulso do mendigo ao lado, e neca de cheiro de estábulo. Uma falsa vaca, boneco bem feito, em tamanho natural, que o homem exibia sabe-se lá por que misteriosas razões... digno de um Victor Hugo, o meu mendigo da vaca!



O campeão do bizarro, no entanto, foi o swagman de Sydney. A Austrália festejava seu dia com fogos noturnos na famosa ponte. Milhares de pessoas passeavam pelas baías, e, por pouco, passaria ao largo do corpo abraçado à ' Matilde', tão feio, tão sujo, tão fétido, tão decaído que nem cachorro possuía, mas chamaram-me a atenção, em sua mão,o saltitante, nervoso movimento de...um rato.
A multidão me carregou, eu duvidara do que vira, mas a careta de nojo de minha filha confirmou, era mesmo um preto e peludo habitante de esgotos, e não um simpático camundongozinho de laboratório.



Aquela noite, houve um lindo foguetório, risos de gente alegre espalhados, e um desassossego em minha mente.
Voltei pelo mesmo trajeto, na esperança de esclarecer o engano. Que nada! No vão fatídico, como a escarnecer de minha sensibilidade, o rapaz parece ter escolhido de propósito o momento em que me aproximei para erguer a mão, inclinar o rosto para frente e estalar uma beijoca na boca do rato.

São fatos como esse que me convencem de que, também nas sociedades, existem universos paralelos.

Notas:
swagman = andarilho, na gíria australiana
Matilde = mochila usada pelos andarilhos, na gíria australiana

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Postado por Sonia Regina Rocha Rodrigues
23/11/2015 às 13h18

 
Política - da filosofia à neurociência.

"A finalidade da vida política é o melhor dos fins, fazer com que os cidadãos sejam bons e capazes de nobres ações"
Quem afirmou isso? Aristóteles, em Ética a Nicômano
Há fatos curiosos sobre filósofos, estes seres ingênuos e bons, que aparecem de tempos em tempos sobre a Terra.
Confúcio ameaçava ser uma boa influência para o principado de Lu, e o vizinho teve uma brilhante idéia: enviou 80 mulheres jovens de presente ao governante, que passou a dar a elas mais atençao que ao sábio (e que ao governo). Assim, a equanimidade e a justiça passaram a segundo plano...e confúcio, desgostoso, foi passear com seus discípulos procurando em vão quem o escutasse.
Platão enfiou na cabeça a idéia de doutrinar o tirano de Siracusa e convencê-lo a implantar sua sonhada "República". Resultado: acabou preso, e não fosse a intervenção de amigos atenienses que pagaram por seu resgate, dificilmente escaparia de ser assassinado.
Eu tive um ingênuo professor de ética que enveredou pela política e sonhou passar de vereador a prefeito. O bom homem tinha escrúpulos de votar em si mesmo e propos a outro colega vereador, também candidato, que votassem um no outro. O leitor já adivinhou? No resultado - confiável, porque naquelas jurássicas eras a gente escrevia na cédula de papel - o coitado não teve nenhum voto. Zero.
E a família dele? - perguntarão. Sei que ele se divorciou.
Colegas meus, honestos e corajosos, recebiam telefonemas anônimos na calada da noite: "Melhor retirar sua candidatura. Seu filho/sobrinho/neto estudaem tal escola e mora em tal lugar. Entendeu?". Todos entenderam.
Quem conhece informática sabe como é fácil manipular um programa de contagem. Basta inserir uma linha de comando: quando o inimigo X atingir 49% do total, toda contagem subsequente será lida como Y. Não tendo o comprovante em papel, quem vai refutar a tramóia?
Kant afirma que todo homem tem o mesmo propósito na vida: ser feliz. O que ele não esclarece é porque alguns acreditam que para serem felizes devem destruir a felicidade dos outros. Vem em nosso socorro a neurociência: falta ao cérebro desses desgraçados os neurônios espelhos, aquelas preciosas celulazinhas cinzentas responsáveis pelo amor, simpatia e compaixão. Cada uma dessas emoções tem circuitos cerebrais ligeiramente diferentes.
Então, perguntará o leitor, as pessoas que não seguem a regra de ouro, que não têm os tais neurônios espelhos, não são normais? Não! O que elas são? Psicopatas.
Não se assuste o leitor. É fato sabido por todo psiquiatra que a maioria dessa gente não mata, não estupra e não rouba; no máximo inferniza a vida dos colegas do escritório.
A maldade verdadeira se revela em menos de 1% da população. Falo dos loucos por poder, os que não se deterão diante de nada. Menos de 1% de gente gananciosa e sem escrúpulo levaram nosso planetinha azul à beira do colapso. Nós, os normais, somos 99%.
Vamos agir?



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Postado por Sonia Regina Rocha Rodrigues
21/11/2015 às 21h02

 
A história da migração de um povo em poesia



Tenho em mãos o livro Encontro com poemas nipo-brasileiros. Selecionei alguns poemas que traçam com delicadeza esta transição difícil das ilhas distantes para este inferno tropical. Sensibiliza-me a delicadeza com que aludem a temas delicados. O livro apresenta uma breve história dos rumos das formas artísticas japonesas em solo brasileiro. Os primeiros imigrantes aqui chegaram em 1908.

Haicai - esta forma poética expressa aspectos da natureza e sempre inclui um kigo (uma palavra tema que geralmente é uma flor, ou bicho, ou fenômeno climático) Ao vir ao Brasil o imigrante Nenpuku Sato recebeu de seu mestre uma missão a cumprir:

Cultive a terra e construa um país de haicais. - Kyoshi Takahama
(Hatta utte haikaikoku o hiraku beshi)

Nenpuku compôs seus haiku observando a natureza tropical. Um exemplo:

O brilho
das flores de café
ao nascer da lua.



Cumpriu bem sua missão, pois o Brasil é o país em que mais haicaístas existem, fora do Japão, e onde pessoas de todas as etnias se encantam com os grêmios de haicai, ao contrário do que acontece em outros países cujos povos são menos inclusivos que o nosso.

Tanka - modalidade poética com mais de 1300 anos de história, consistindo de 31 sílabas encadeadas, transmitindo sentimentos pessoais. As pessoas que se reunem para manter essa tradição são verdadeiras chamas guardiãs da cultura ancestral.

Senryû - é um poema satírico que surgiu em meados da Era Edo (século XVII) e utiliza a linguagem moderna para se referir a fatos cotidianos.

Muitos dos poemas, escritos em japonês, perdem a métrica na tradução; no entanto os sentimentos de toda uma comunidade é o aspecto importante desta leitura, e permanece fresco e intato. A literatura japonesa morrerá com seus autores, dos quais restam ainda alguns centenários, porém a nova geração juntamente com os brasileira admiradores dessas formas poéticas levarão adiante essas tradição, agora não mais japonesa, mas aclimatada.

Vamos aos textos garimpados no livro:

Haicais

Rio Ribeira _
canção de colheitas de chá
às suas margens.
Kazue Koyama



Ao som do poema
de Gonçalves Dias
canta o sabiá.
Reiko Akisue



Sabiás gorjeiam_
sensação de aconchego
no país hospitaleiro.
Saoko Kosai



Retornar ao Japão _
no vasto campo seco
sonhos enterrados.
Kazuma Tomishige



No Ano Novo,
telefonema ao Japão.
Felicitações!
Mitsue Ino



Dia do imigrante_
Amor à terra natal
e louvor a este país.
Haruno Nishida



Tanka

Atravessando a rua
com a nora de olhos azuis,
mãos que me tocam
transmitem calor.
Reiko Abe



Passei a gostar mais de futebol do que do
sumô, e assim
fui me integrando no meio dos brasileiros.
Asahiko Fujita



Senryû

Envelheceram os imigrantes
que ainda cantam a terra natal.
Kobayashi Yoshiko



Não se mostra às crianças
a tristeza de fazer das tripas coração.
Suga Tokuji



Ser feliz é decisão de cada um.
A felicidade florescerá onde cultivarmos.
Kazuko Hirokawa



Em 1987 foi fundado em São Paulo o Grêmio Haicai Ipê , sob a liderança de Hidekazu Masuda, carinhosamente chamado Mestre Goga. Em 1996, um catálogo intitulado Natureza - berço do haicai , contendo 1400 kigos brasileiros foi publicado em comemoração ao Centenário da Amizade Brasil-Japão.
Como tantas outras boas contribuições que os japoneses nos trouxeram, sua poesia enriquece nossa visão do mundo. Harmonizemo-nos, pois, com a natureza e com todos os outros povos, nossos irmãos.

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Postado por Sonia Regina Rocha Rodrigues
18/11/2015 às 15h38

 
As duas facetas da eternidade



A mulher mais velha do mundo completou 117 anos. Ela mora em um asilo e precisa de ajuda para levar o alimento à boca e, mesmo assim, afirma que a vida é muito curta, segundo informa o jornal. Fico desconfortável com a notícia e descubro que não quero viver até depois dos cem anos. Mais quarenta anos de solidão, em um mundo onde estão no comando idiotas e equivocados, e onde os que lutam pela justiça são, com frequencia, silenciados pelo assassinato? Não mesmo!
Sócrates, aos 80 anos, dizia estar feliz por morrer entre amigos, como um homem justo e honrado, e que não via sentido em fugir, para levar uma vida em que não houvesse mérito e honra.
Swift, em seu livro Viagens de Gulliver, descreveu uma terra onde, vez por outra, nascia um imortal. Esse ser infeliz era afastado da sociedade ao envelhecer para viver em cavernas distantes, assolado por doenças degenerativas e dores excruciantes.
Aquiles, aos 18 anos, confrontado com a escolha entre uma morte gloriosa e uma vida covarde nem pestanejou: preferiu viver e morrer como um herói,
Enfim, cada um faz da vida o que melhor lhe apetece. O mesmo não se pode dizer da morte, que muitas vezes acontece entre tubos e fios das UTIs,, esses infernos modernos, dignos da pena de um Dante. Nossos hospitais teriam causado delírios em Swift, que neles colocaria ses sofredores imortais para serem ali torturados.
Para a boa morte não encontro outra definição que a de morrer dormindo. Imagino Maria José Aranha de Resende, abençoada em seu sono, despertando em um jardim cheio de rosas e rodeada por poetas a dar-lhe as boas vindas.
- Estou sonhando, que sonho bom - diria ela.
- Nada, agora é que estás acordada. - diria Vicente de Carvalho - O sonho acabou.
Assim eu vejo a vida: um sonho. No Brasil, muitas vezes, um pesadelo. Não compreenderei jamais o desespero com que se agarram à vida os mais desgraçados e mais desamparados seres desse planeta.
Nos leitos hospitalares contemplei muitos moribundos. Nos olhos do quase morto há ou terror ou alegria. Há os que se agarram à matéria, há os que antecipam a recompensa dos justos, há os que serenamente aguardam que se desvende o mistério, a respeito do qual a neurociência prudentemente hesita em se manifestar.
Tenho de concordar com Alarcón, quando coloca, em seu O amigo da morte, essas palavras na boca da Indesejada: "Se os homens sofrem, não é por mim, é antes pela minha inimiga, a vida, que os transtorna. Eu trago a paz."
Peço a Deus, diariamente, que me contemple com a boa morte. Se um dia meu nome constar do Livro dos Recordes, que não seja por ser a mulher mais velha do planeta, confinada a um asilo, comendo pelas mãos de outro.
Trato de aproveitar sabiamente a vida, ao modo de Salomão, que optou pelo conhecimento. Só lamento não ter sido, como o rei, contemplada com tudo o mais "por acréscimo". Uns milhõeszinhos a mais e um companheiro de jornada tornariam o caminho mais divertido.
Não tenho a ilusão de deixar algo para a posteridade. Ideia de gente vaidosa, já que o destino do sistema solar é ser engolido por um buraco negro.
Uma vida digna coroada por uma morte igualmente digna, esse é o meu desejo. Depois, tudo será uma festa. Ou nada.


Texto classificado em primeiro lugar em Crônica no Concurso Contemporânea de Literatura 2015.

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Postado por Sonia Regina Rocha Rodrigues
14/11/2015 às 18h39

 
Símbolos - terceira parte

Esta é a tradução de uma aula de Lance Eaton, cujo curso de literatura na universidade canadense North Shore Community College está disponível em inglês, pela internet, no youtube.



As pessoas como símbolos

O corpo as vezes é usado como um personagem. Ex: o homem de lata, o espantalho. (O mágico de Oz)
O homem de lata tem seu coração encouraçado, percebe-se sem sentimentos.
O espantalho é frágil, sente-se tolo.

Cicatrizes - impurezas, a personagem foi tocada pelo mal.
tatuagens e machucados - refletem os embates da personagem com o mundo.

Cegueira - falta de visão. (O ensaio sobre a cegueira, de Saramago)
Por outro lado, pode significar apercepção de um rico mundo interior, uma outra forma de enxergar.

Coração doente - (físico ou emocional) o corrompido pela sociedade ou pela emoção.

Varios tipos de sintomas e moléstias podem significar, conforme o contexto:
febre = problemas, emoção em ebulição
peste = algo está errado com o mundo
paralisia - a incapacidade do personagem de agir
tuberculose = o tempo perdido, a vida destruída
malária = o ar não é saudável
doenças venéreas = impureza, temas complexos censurados dos quais não convém falar.

A figura crística

Aquela que ama o mundo apesar de seus aspectos negativos.
Figuras crísticas podem ser reconhecidas por um ou mais desses fatores:
Sofre, pelos outros /
é amável com os marginalizados /
é jovem ou tem cerca de 33 anos /
tem seguidores /
realiza jornadas solitárias /
é sábio e gentil /
ressuscita /
tem poderes miraculosos (em especial se transforma agua em vinho, caminha sobre as aguas ou cura doentes)





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Postado por Sonia Regina Rocha Rodrigues
8/11/2015 às 14h09

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