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Segunda-feira,
3/8/2015
Blog do Carvalhal
Guilherme Carvalhal
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Irmãos Dardenne e Rosetta
Os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne são uma das duplas mais criativas do cinema atual. Seu cinema intercala uma visão social de classes baixas da Europa junto a narrativas criativas e abordagens interessantes na realidade de seus personagens, inserindo-os em um universo de dilemas pessoais.
O filme mais recente da dupla, Dois Dias,Uma Noite, é um exemplo disso. A narrativa retrata Sandra (representada pela ganhadora do Oscar Marion Cotillard) uma operária de uma fábrica que se recupera de problemas psiquiátricos. Ao convalescer, descobre que seus colegas de trabalho haviam realizado uma votação proposta pela empresa, na qual escolhiam receber uma bonificação da empresa em detrimento de mantê-la empregada.
Como na votação a grande maioria escolheu receber o bônus, Sandra se viu desempregada. Porém, a empresa aceita realizar uma nova votação na próxima segunda, então ela tem o final de semana para convencer seus colegas de trabalho a mudarem de ideia, abdicando do bônus para ela permanecer contratada.
Esse tipo de trama é bastante corriqueiro nos filmes dos irmãos Dardenne. Normalmente são pessoas de classe baixa diante de fortes dilemas, nos quais precisam passar por decisões dolorosas ou conflitos determinantes em suas vidas. Os enredos tendem a levar muitos aspectos políticos, econômicos e sociais, como a atual crise econômica em Dois Dias, Uma Noite.
Analisar um pouco a obra dos dois irmãos ajuda a compreender seu impacto e sua dimensão. Em O Silêncio de Lorna (2008) um dos temas em destaque é a questão da imigração. Lorna é uma imigrante albanesa que se casa com um francês para obter cidadania europeia. Ela faz parte de um esquema mafioso e precisa se livrar de seu marido para vender sua nova nacionalidade a outra pessoa. Porém, seus sentimentos acabam pesando e surge o conflito entre aquilo que se comprometeu a fazer e o que sua consciência diz.
Em O Garoto da Bicicleta o drama ganha cunho mais familiar, ou semelhante ao familiar. Aqui, o personagem principal é Cyril, um garoto abandonado pelo pai em um orfanato que vive em busca de tê-lo novamente. Na sua insistência em aceitar que o pai o rejeita, ele tem sua bicicleta como principal vínculo afetivo.
Em A Criança, filme ganhador da Palma de Ouro de 2005, Bruno e sua noiva Sonia perambulam com seu filho recém-nascido. Sem saber como lidar com a paternidade e também com a pobreza, Bruno acaba tentando vender o próprio filho, atitude rejeitada de imediato pela mãe. O rapaz se envolve com todo tipo de golpe, envolvendo até menores de idade em seus crimes. O título A Criança, que dá a entender referir-se ao filho do casal, na verdade diz respeito a Bruno, que se recusa a uma atitude madura. Como nos outros casos, estão aqui presentes as escolhas pessoais diante de um ambiente adverso e pouco estável.
Rosetta
Sem sombra de dúvidas a maior obra dos Dardenne é Rosetta. Lançado em 1999, esse longa é uma história impactante e uma das maiores realizações na história da sétima arte, sendo premiado com a Palma de Ouro em Cannes.
Rosetta (Émilie Dequenne) é uma jovem de classe baixa. Logo no começo do filme já se pode ter uma noção geral: mesmo com pouca idade ela precisa trabalhar em uma agitação pouco usual para sua faixa etária, principalmente ao se imaginar a Bélgica, país considerado de primeiro mundo. Ela perde seu emprego e juntamente a isso vai abaixo seu mundo.
Aos poucos a realidade dela vai sendo descortinada. Rosetta mora com a mãe alcoólatra em um acampamento de trailers. Essa vive em uma relação de troca de favores com o dono do acampamento, recebendo algumas vantagens a troco do sexo, relação vista com negatividade por Rosetta.
Rosetta é arrimo de sua mãe e trabalha para sustentá-la. Logo de início ela perde seu emprego e se embrenha em uma luta para conseguir um novo. O senso moralista dela é muito forte e o trabalho representa a possibilidade de manter uma vida normal. E é esse senso moralista que acaba entrando em conflito com sua condição financeira.
Ela conhece um rapaz chamado Riquet (Fabrizio Rongione), que trabalha em uma banca vendendo panquecas. Riquet a trata bem e começa a formar um pouco de amizade com a moça. Riquet admite que anda roubando a banca e ela, em um ato inesperado devido ao seu senso de moralidade, denuncia Riquet ao seu patrão e acaba conseguindo seu emprego. O rapaz então começa a persegui-la e ela vai entrando em um estado cada vez mais desesperado (apesar de sutilmente mostrado) que é seguido pelo brilhante final.
Um dos principais pontos artísticos do filme é a câmera focada sempre em Rosetta. Por onde a jovem vai a câmera segue atrás, parando com ela quando se abaixa ou quando faz qualquer movimento. Esse estilo de enquadramento que possibilita aos diretores trabalharem com o que acontece fora de quadro, uma maneira de inserir o espectador com informações além da imagem.
A principal maneira dos diretores trabalharem essa informação é com o barulho da moto de Riquet. Ele começa a persegui-la por vários locais e o barulho da moto indica sua chegada, levando a moça sempre a reagir. Igual ideia acontece quando ele chega na banca de panquecas, onde sua presença é percebida mesmo sem entrar em cena.
O choque de moralidade é outro ponto fundamental no entendimento desse filme. Como já dito, Rosetta tem um forte senso moral, porém trai uma das poucas pessoas que se predispôs a ser próxima dela. Isso a coloca na dubiedade de posições: é a traição da confiança com senso de justiça (o rapaz rouba o patrão, então o justo é que ela o tenha denunciado). Ao mesmo tempo, ela se vale do papel de delatora para conseguir o emprego. Todas essas situações juntas formam um complexo leque de discussões, na qual a presença de Riquet e sua moto funciona como a consciência de Rosetta a aturdi-la.
Rosetta interage com os demais filmes dos dois irmãos através do conflito entre o eu e o mundo exterior. A personagem principal apresenta muitas divergências provocadas pelas suas expectativas, sendo essas o desejo por uma vida estável e rotineira, fundamentada pelo trabalho, e todos os dias ela se depara com o inverso oposto. Ela procura conseguir mudar isso através do trabalho, pedindo emprego, lutando diariamente e até mesmo trai a confiança de Riquet.
Ou seja, Rosetta faz parte de um amplo painel de seres humanos em conflitos diante de condições em desacordo consigo mesmo. Em obras como A Criança e O Garoto da Bicicleta o espectador sempre irá se deparar com tais condições. Rosetta é uma obra singular na história do cinema e dentro desse propósito maior que Jean-Pierre e Luc vem apresentando ao público.
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Postado por Guilherme Carvalhal
3/8/2015 às 03h18
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Robert Randolph And The Family Band
Robert Randolph é um dos maiores guitarristas da atualidade. Além de possuir uma técnica altíssima e de enveredar pelo blues e pelo soul, chama a atenção sua especialização no pedal steel, um instrumento semelhante à guitarra havaiana, tocada com slide. Juntamente à sua Family Band ele possui quatro discos lançados, sendo o mais recente deles Lickety Split, de 2013.
A sonoridade de seu trabalho busca toda a essência da música dos Estados Unidos. Do blues com todo estilo de velha guarda às pegadas mais recentes criadas dentro do funk, suas influências junto à sua técnica e estilo pessoal criam uma sonoridade bastante peculiar.
Em Lickety Split é possível achar um pouco de tudo. Born Again é plenamente soul gospel, com direito a coral. Brand New Wayo (que conta com a participação de Carlos Santana) é funk do melhor estilo, com ritmo dançante. O grupo também regrava Love Rollercoster, do Ohio Players, a mesma regravada pelo Red Hot Chilli Peppers, com um diferencial significativo das outras duas versões que é o pedal steel e seu timbre único. Outra regravação é Good Lovin', do The Rascal, rock de festa dos anos 1960 igualmente incrementada.
O grupo já conta mais de 10 anos de carreira e já subiu aos palcos com nomes como Eric Clapton. A Rolling Stones chegou a eleger Robert Randolph como o 97º melhor guitarrista da história.
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Postado por Guilherme Carvalhal
30/7/2015 às 15h26
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20 anos de Kids
O filme Kids, de Larry Clark, completou 20 anos recentemente e sua influência veio novamente à tona. A ideia de abordar a juventude é algo corriqueiro no cinema, caso de obras como Porky's, American Pie e Clube dos Cafajestes. A diferença em Kids está no nível com que os temas são expostos.
Kids é um filme mediano. Sua importância não é artística, mas representativa. Seu maior defeito é carecer de um roteiro. Não há uma história, somente colagens de cenas ditas cotidianas envolvendo adolescentes e jovens adultos, como violência, brigas, bebidas, drogas, sexo e Aids, guiadas por um eixo narrativa da busca de Telly por diversão. Não há grandes atuações e nem nada que faça dele uma obra artisticamente grandiosa.
O ponto alto de Kids é o retrato feito da geração à qual se refere, com uma crueza que chocou naquela época. A obra se passa em torno de Telly, um adolescente que não pensa em trabalho ou em estudos e que apenas roda pelas ruas. Junto ao seu amigo Casper, ele está atrás de garotas virgens que deseja levar para cama. Enquanto isso, Jennie descobre que é soropositiva, doença que contraiu de Telly, e sai pelas ruas atrás dele querendo evitar que contamine mais moças.
Ao longo disso todo tipo de situação considerada típica para um adolescente acontece. Os rapazes brigam em uma rua, com direito a golpes com skate, Jennie vai parar dentro de uma boate e toma ecstasy, invadem uma loja e roubam e rola uma festa com direito a todo mundo terminar caído pelos cantos. Há alguns momentos emblemáticos, como as garotas e os rapazes discutindo sobre sexo, mostrando as diferentes perspectivas entre os dois gêneros.
Kids causou identificação e susto na época. Existia a exacerbação do assunto Aids e a obra chegou até mesmo a ser apontada como educativa, para os pais entenderem melhor a realidade de seus filhos. Apesar de um certo marketing o considerar como um retrato da juventude da década de 1990, o filme segue o princípio de Pareto, no qual uma parcela de jovens que pode ser considerada "desajustada" acaba definindo todo o restante.
Juventude é o tema principal dos filmes de Larry Clark. Em Ken Park, ocorre a mesma premissa, a de se tentar realizar um retrato juvenil, havendo um roteiro que na verdade é uma colagem de cenas diferentes. Só que em Ken Park, ao invés da rebeldia e da transgressão, são exacerbados os conflitos familiares, a tristeza e o vazio existencial. Em outra obra, Bully - Juventude Violenta, temos um baseado em fatos reais, o assassinato de Bobby Kent, que foi cometido por um grupo de adolescentes, companheiros de escola da vítima. Filme bem fraco, apenas uma história sem nada demais.
Como todo filme sobre juventude, o tempo acaba pondo abaixo muito do choque causado. Se o personagem de James Dean em Juventude Transviada pode ter provocado polêmica e ser considerado socialmente desajustados, em Kids temos o mesmo reverberar que ao longo do tempo perde seu espaço de discussões. Cada geração tem muito mais do que um filme pode mostrar e o polemismo acaba sendo responsável pelas construção de ideia que não necessariamente corresponde à realidade. A juventude daquele tempo já chega aos 40 anos, o mundo não veio abaixo e seus filhos começam a entrar na adolescência, talvez aguardando um filme sobre sua geração que cause algum choque.
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Postado por Guilherme Carvalhal
26/7/2015 às 21h02
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O humor de Monicelli
A ideia de humor inteligente no cinema abre brecha para várias interpretações. Muitas vezes ele é referido para o jeito de Woody Allen, em que suas piadas ocorrem em meio a uma classe média alta intelectualizada. Então rolam piadas como sátira a articulistas de jornais falando sobre nazismo (em Manhatten) ou então a maravilhosa cena do cantor de ópera dentro de um boxe de banheiro em pleno palco (em Para Roma Com Amor). Humor inteligente talvez seja o complexo nível de elaboração de Monty Python, que muitas vezes esbarra em Allen, como na esquete do futebol filosófico, mas sem deixar o pastelão puro e simples de lado.
Um dos maiores entusiastas do cinema inteligente foi o italiano Mario Monicelli. Seu humor é inteligente não por eferências a alta cultura, mas pelas belas sacadas do roteiro, criando alguns dos maiores clássicos desse estilo. Suas obras expressam alto nível de criatividade, sendo muito inovadoras. Duas obras suas merecem destaque, O Incrível Exército de Brancaleone e Quinteto Irreverente.
O Incrível Exército de Brancaleone é uma sátira sobre as histórias de cavaleiros medievais. A história é sobre o cavaleiro Brancaleone da Norcia (interpretado por Vittorio Gassman, um dos maiores atores italianos, célebre pelo filme Nós Que Nos Amávamos Tanto, de Ettore Scola), uma figura valente apesar da estupidez e da capacidade limitada em combate que é procurada por um grupo de pessoas que conseguiu roubar um documento garantindo a posse de um castelo. Juntos eles seguem em viagem para tomar a fortificação e assim Brancaleone se definir enquanto cavaleiro.
Nessa viagem eles se deparam com inúmeras situações típicas da idade média, encontrando motivo para debochar de todas elas. Eles chegam a uma cidade tomada pela peste negra e Brancaleone entende o abandono como medo das pessoas diante da sua presença; salvam uma princesa que ele pretende levar em segurança ao seu reino, sendo traído por ela; culpam o judeu do grupo pela série de desventuras e o batizam à força em um rio; e o desfecho final é igualmente cômico.
Brancaleone é uma obra brilhante em vários aspectos. É um humor bem sacado, baseando-se nas situações que temos como corriqueiros da época dos cavaleiros andantes. A religião, a nobreza, o heroísmo, são todos os valores que Monicelli resolve avacalhar. O filme tem uma continuação, Brancaleone nas Cruzadas, no qual o cavaleiro viaja rumo ao Oriente.
Já em Quinteto Irreverente o escracho é simplesmente total. Não tem roteiro nem nada disso. É simplesmente uma sequência de atos envolvendo cinco personagens com um único objetivo na vida, o de causar o máximo de confusão e rir ao limite.
Essa obra mostra um grupo de amigos que nunca perde a oportunidade de gargalhar diante de cada situação. E mostra episódios que beiram o bizarro, como convencer um viúvo diante do túmulo da esposa de que ela o traía ou então enganar um membro da máfia de que possuía problemas intestinais. As cenas são hilárias e não há nenhum valor moral que seja respeitado. Não há maiores preocupações com sequência, há apenas um humor muito bem elaborado e criativo.
Monicelli é um dos mais influentes cineastas que existiram. Sua longevidade (começou a trabalhar com cinema aos 19 anos e manteve-se produtivo até falecer em 2010 aos 95 anos) fez com que ele participasse de várias etapas do cinema, desde o humor mais ingênuo da década de 1940 até o estilo mais escrachado dos tempos atuais. Sua obra é um dos maiores marcos da história do cinema.
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Postado por Guilherme Carvalhal
23/7/2015 às 20h53
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Gosto de Cereja, de Kiarostami
Uma das obras mais belas e complexas no cinema recente é o filme Gosto de Cereja, do iraniano Abbas Kiarostami. Ganhador da Palma de Ouro de 1997 (dividido com A Enguia, de Shôhei Imamura), esse filme é uma fina análise da condição humana, de seus medos, desejos e fraquezas.
O filme retrata a jornada de Badii, um homem que vai cometer suicídio e roda pelas ruas procurando alguém que o ajude. O impacto começa nas primeiras cenas: percorrendo pelas ruas ele passa por grupos de homens procurando emprego, mas não para com nenhum deles. Ele prefere abordar pessoas que andam solitariamente, uma indicação de intimidade, de como seu ato é algo discreto, até pelo nível de proibição moral envolvida nele.
Badii tem todo um esquema pronto para cometer suicídio. Ele vai ingerir uma série de remédios e depois se deitar em um buraco. O seu cúmplice deve chegar ao local combinado às seis da manhã. Se ele estiver morto, deve enterrá-lo, se estiver vivo, ajudá-lo a sair do buraco. Isso tudo envolve a insegurança dele em cometer suicídio, como se dentro dessa prática tivesse uma esperança em sobreviver.
Em suas andanças ele convida três pessoas diferentes para ajudá-lo, um militar, um religioso e um cientista, cada um de uma etnia diferente. Cada um contribui com sua visão, sendo que os dois primeiros recusam e o terceiro aceita. O primeiro é um jovem soldado, cheio de medos e incertezas, e o segundo pelo aspecto de sua profissão não aceita ajudá-lo. Apenas o terceiro, com uma visão fria de cientista, se compromete em auxiliá-lo.
Todas as abordagens são solitárias. Ele convida a pessoa para entrar em seu carro e os dois vão conversando. A câmera nunca enquadra dois personagens juntos e isso aumenta o envolvimento. Não há de fato uma relação entre as pessoas e a individualidade apenas se exerce através do isolamento.
O filme deixa muitas brechas para o espectador tirar suas próprias conclusões. A insistência dele em possuir alguém com ele é uma delas. Suicídio é um ato isolado, um pedido de socorro quando se chega ao extremo. A insistência do personagem principal em ter um acompanhante indica querer tornar isso menos individual, como se dividisse a experiência com outra pessoa e, de certa maneira, permanecer vivo na sua lembrança. Um contraponto à proposta do filme, que mostra sempre a fragmentação e não a coletividade.
O desejo dele em se matar é posto em cheque várias vezes. Por exemplo, ao ser convidado para comer uma omelete, ele recusa afirmando que isso o faria sentir-se mal. Mas se ele vai cometer suicídio, qual diferença faria? Da mesma forma quando, ao sair de casa, ele volta para apagar as luzes.
A fotografia colabora para todo esse aspecto humano. As imagens são áridas, secas, uma referência ao estado de espírito de Badii, tão sereno e aparentemente decidido quando prestes a morrer. As imagens da pedreira contribuem para essa sensação.
Gosto de Cereja é uma minuciosa análise sobre a condição humana. É um filme reflexivo e cheio de brechas para quem assiste pensar. Definitivamente uma das maiores obras da história do cinema.
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Postado por Guilherme Carvalhal
21/7/2015 às 14h18
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Alfred Schnittke
Ao se pensar em música erudita (ou música clássica ou de câmara; cada denominação costuma ser pior que a outra) normalmente se pensa no começo do século XX para trás. Esse estilo tem seus grandes nomes no passado como Mozart e Wagner, e costuma parar nos modernistas como Schoenberg, Rachmaninoff e Stravinsky. É algo do passado, até porque após o ápice da música popular, que se expandiu e ganhou maior status com a indústria fonográfica, esse estilo acabou se afastando do público. Porém, esse distanciamento não significa seu fim nem uma queda de qualidade. De 1950 em diante surgiram compositores de talento, sendo que um dos principais destaques nessa música contemporânea é Alfred Schnittke.
Alfred Schnittke nasceu em 1934 na cidade de Engels, na União Soviética. Seus primeiros passos na música se deram em Viena, mas sua graduação em música ocorreu em Moscou. Com estudos dos clássicos e influenciado pelos modernistas, como Sostakovich (de quem é considerado sucessor), a música de Schnittke consegue transitar entre o clássico e moderno com originalidade.
Seu estilo de composição foi denominado por ele mesmo como poliestilismo. Essa maneira de composição tem raízes nas questões políticas de seu país. De tradição clássica e flertando com o modernismo europeu, o compositor estava em um país cuja estética predominante era o Realismo Socialista. Então ele precisou criar dentro daquilo que o regime de seu país pregava enquanto cultura, o que o levou a uma formulação completamente inovadora, inserindo elementos muito diversos para se adequar aos ditames. O poliestilismo pode ser enquadrado como um reflexo pós-moderno dentro da música de câmara, mesclando o antigo com o novo, o popular com o erudito.
Ouvir algumas das composições do autor ajuda a compreender esse estilo. Uma delas é Agony (1974), trilha sonora para o filme Agonia Rasputin, de Elem Klimov (autor do genial Vá e Veja, sobre a Segunda Guerra Mundial). Aqui se tem uma valsa clássica, com ares de grandiosidade e perfeitamente encaixada como trilha sonora de uma obra cinematográfica.
Já em uma de suas obras mais aclamadas, o Concerto Grosso nº1 (1977), o que se vê é toda influência dos estilos modernos. Aqui, ele faz uma completa releitura do barroco repleta de contratempos, em uma mistura que se torna bem pouco usual. É o poliestilismo puro, de difícil absorção pelo ouvinte, mas uma audição que se torna muito interessante à medida em que se entende suas propostas.
Concerto grosso é um estilo barroco em que solistas se apresentam hora individualmente, hora intercalados com toda a orquestra. A base dessa composição de Schnittke é essa, porém mergulhada em novas influências. O tempo é intercalado em três movimentos, um rápido, um lento e outro rápido, sendo que na peça de Schnittke o ouvinte de depara com um final estonteante promovido pela alteração no andamento da música.
Uma peça que mostra perfeitamente o poliestilismo é o balé Labyrinths (1971). Nessa obra o autor mostra muitas de suas influências, em uma enorme variedade estilística perfeitamente casada. Essa é uma das suas maiores qualidades, a de beber em muitas influências e produzir de maneira homogênea, não lançando ao ouvinte estilos variados mal encaixados.
Por último, The Fairytales of the Wanderings (1983), mais uma trilha sonora de cinema composta por ele. Essa música é do tipo que dispensa comentários, valendo a pena simplesmente ouvir e sentir.
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Postado por Guilherme Carvalhal
16/7/2015 às 12h33
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Tartufo, O Doente Imaginário e O Burguês Fidalgo
O trio de obras Tartufo, O Doente Imaginário e O Burguês Fidalgo, todas do dramaturgo francês Molière, é uma das mais mordazes sátiras sociais realizadas na história e um exemplo de como através da arte muitas das relações de poder podem ser questionadas e atingidas.
Nessas obras existe uma igual premissa: um homem poderoso, mas ingênuo, que é ludibriado por um espertalhão interesseiro que o convence a conceder a mão da própria filha em casamento. A filha juntamente à esposa são dotadas do bom senso que falta ao pai e tentam se livrar da figura do espertalhão, para no fim das contas a moça poder se casar com o rapaz que ama.
Cada uma das obras atacou uma instituição poderosa. Em Tartufo a religião, em O Doente Imaginário a ciência e em O Burguês Fidalgo a nobreza. Em todas elas a figura dos poderosos é retratada de maneira imbecilizada, uma das principais ferramentas da sátira ao trazer para o plano comum as figuras postas como superiores.
Em Tartufo temos uma casa na qual o sujeito que dá nome à peça se introduz como um santo a elevar espiritualmente o senhor Orgón. Lá inserido, ele goza de todas as regalias, apesar de seu estilo de vida destoar do de alguém tão iluminado: ele come excessivamente e vive de maneira folgada, sonhando com o momento maior, o de se casar com Mariana, filha de Orgón. Ou seja, mesmo se fingindo abnegado, ele pretende a consumação carnal via engodo religioso.
Em O Doente Imaginário, a história se passa na casa de Argan, o hipocondríaco que dá nome à peça. Considerando-se muito doente, Argan sonha em sempre ter os médicos por perto para atendê-lo, apesar de nada realmente mostrar que algo o acometia. Valendo-se da eternidade das enfermidades do hipocondríaco, os médicos conseguem ludibriá-lo e manter-se sempre em sua casa, recebendo todos os favores. A paranoia chega ao ponto do senhor querer forçar sua filha a se casar com um deles para assim ter sempre um médico próximo.
O Burguês Fidalgo mostra a ascensão meio patética do senhor Jordain, que cresce financeiramente e quer a todo custo tornar-se um nobre. Para isso, ele acaba atraindo Dorante, uma espécie de professor de boas maneiras. O nível de constrangimento da senhora Jordain diante da ignorância do marido durante as aulas e do menosprezo de Dorante por ele é um dos pontos de maior graça da história.
Nessas três peças Molière disparou contra todas as classes dominantes e elevou a comédia satírica a grandes níveis. Ele colocou os representantes das grandes instituições como criaturas vis e passíveis de toda forma de falha humana. Seus textos são grandes clássicos da literatura mundial e ele foi um mestre na arte de mostrar como o humor pode ser uma grande ferramenta política.
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Postado por Guilherme Carvalhal
15/7/2015 às 14h44
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Um romance de contrastes
Os contrastes de período histórico e entre os personagens é a principal dinâmica do livro Na praia, de Ian McEwan. O livro em si é uma sucessão constante de pontos de vista diferentes tendo como fio condutor da narrativa um casal passando a lua-de-mel em um hotel no litoral.
Edward e Florence são virgens e estão nos seus primeiros momentos após o casamento tentando consumá-lo. Nesse momento iniciam as divergências entre os dois, tendo por base a dificuldade do sexo, que se agrava pela frigidez de Florence. As expectativas de ambos aos poucos vai abaixo imediatamente após concretizarem o matrimônio.
Durante toda a história (que é bem curta) fica a dificuldade em compreender o porquê dos dois estarem juntos. Ele gosta de rock, ela de música clássica, ela vem de uma família rica e ele de uma mais baixa. Os dois vivem em uma época em que as bases do moralismo começaram a ruir, mas casaram-se virgens. Ela sabe que é frígida e ainda assim leva a relação adiante.
A questão moral é um assunto forte na obra. A trama se passa em uma época em que nomes como Elvis Presley, Beatles e Rolling Stones estouravam e os hábitos mundo afora mudavam. Ainda assim, o casal existe envolto em um forte conservadorismo, exposto nos momentos em que Edward tenta avançar e sua noiva recua. Imaginar essa obra passada em um tempo recente causa estranheza, pois parece situada um século antes. Florence enxerga o sexo como algo desconhecido e inimaginável e essa concepção afeta seu destino.
Existem duas partes do livro que se destacam dentro do fluxo narrativo. A primeira é a ejaculação precoce de Edward tentando perder a virgindade, o que desencadeia todo um turbilhão de problemas que acaba por findar a convivência do casal. A segunda são os segmentos finais, que deixam de lado o clima quase bucólico para mostrar o passar dos anos através da série de decisões que definiram permanentemente o futuro dele.
Na Praia é o típico livro que pode facilmente gerar preconceitos contra ele antes da leitura. Seu estilo se confunde modismos literários, mas na verdade é uma obra profunda e rápida, de real qualidade literária.
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Postado por Guilherme Carvalhal
12/7/2015 às 20h53
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Sobre o fracasso das nações
O noticiário recentemente ferveu diante de uma série de manifestações populares nos países conhecidos como parte do mundo islâmico. Regimes longínquos como o de Kadafi na Líbia e de Mubarak no Egito caíram, além da Síria entrar em um longo processo de guerra civil. Essa situação da geopolítica serve como introdução para os economistas Daron Acemoglu e James Robinson desenvolverem a pergunta que dá nome ao título de seu livro Por Que as nações fracassam, um dos maiores sucessos na área de economia dos últimos anos.
Em suma, a ideia dos pesquisadores é traçar um panorama e chegar a conclusões para entender o fato de que algumas nações obtiveram o fracasso e outras o sucesso, retratando sucesso como bons índices de desenvolvimento humano, alto PIB per capita, baixa inflação, etc. E a resposta a qual chegam está na estrutura interna do seu país, sendo que alguns conseguem desenvolver instituições que promovem o bem-estar de sua sociedade e outros não.
Acemoglu e Robinson consegue colocar abaixo muitas das justificativas costumeiras para o subdesenvolvimento. Questões como a cultura ou o ambiente são deixados de lado, e frisam na nação e sua própria capacidade de gestão e de tomadas de decisões como formadores de desenvolvimento.
A introdução sobre a Primavera Árabe é elucidativa a respeito das ideias dos autores. A maioria dos movimentos teve por pretexto colocar abaixo regimes pouco democráticos que promovem a corrupção e inibem a liberdade individual. Ou seja, o próprio estado impede que a população decida os próprios rumos, seja no âmbito privado ou público.
A premissa dos autores é de cunho neoliberal, ou seja, o livre mercado e a concorrência são requisitos para o desenvolvimento. Porém, o pensamento dos dois autores retrata as particularidades dos países e sempre frisam na criação em instituições inclusivas, o que passa pela premissa do poder público.
Um ponto interessante do livro é a vasta base histórica que os autores utilizam para sustentar seus argumentos. Colonização da América Latina, fim do feudalismo na Europa, fronteira entre Estados Unidos e México, o desenvolvimento da Botswana, tudo isso é detalhadamente explicado e, além do conhecimento das teses econômicas, o leitor também se apropriará de bastante informação sobre a história do mundo.
Por que as nações fracassam é uma das mais importantes obras da atualidade. Sua visão é moderna e bota abaixo muitos paradigmas do cotidiano. Em tempos de turbilhões políticos e econômicos no Brasil, essa é uma obra fundamental para se posicionar melhor diante dos fatos.
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Postado por Guilherme Carvalhal
8/7/2015 às 16h23
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Relembrando Ibsen
O teatro de Ibsen em muitos momentos mostra sua universalidade, principalmente quando problemas apontados por ele voltam à tona. Uma de suas obras mais marcantes, O Inimigo do Povo, sempre pode ser recordada diante dos fatos que presenciamos. Tanto é que é uma de suas peças mais interpretadas.
Uma das principais características de Ibsen foi seu senso crítico bastante apurado, muitas vezes estando bem à frente de seu tempo. Um exemplo é Casa de Bonecas, que discute de maneira bastante apurada a condição feminina.
O enredo de O Inimigo do Povo é a luta de Stockmann, um médico que detecta um problema grave em sua cidade e tenta denunciá-lo. Residente em um balneário turístico, Stockmann é uma figura de alta estima entre as pessoas. Seu irmão, prefeito, está realizando investimentos para ampliar o público turístico da cidade e recebe os aplausos de toda a sociedade.
Os choques começam quando o médico descobre que as águas do balneário estão contaminadas e passa a denunciar esse problema publicamente. Ele rompe com o pensamento corriqueiro e acaba sendo taxado como alguém contrário à cidade, querendo embargar o turismo que sustenta a economia local.
Aos poucos ele vai entrando em atrito com seu irmão, que consegue lançar a opinião pública contra ele, afirmando que suas acusações são falsas. O médico passa a ser atacado por todos os lados e ninguém presta atenção em suas observações, todas elas corretas.
A crítica ao ser humano e à forma como ele gera poder (esse sempre atrelado ao conceito de verdade) se dá de múltiplas formas. Por um lado, podemos ver o médico enquanto uma figura diminuta diante do estado e da sociedade. É o homem fragmentado, impotente diante do restante do mundo. Por outro, pode-se ver a figura do irmão, total dominador da verdade e assim da população, criando o conceito de certo o errado e conseguindo apontar o médico como alguém que planejava prejudicar toda a sociedade.
A própria população revoltada com o médico merece uma análise. A maneira bovina com que se comporta assemelha-se aos grupos populares que apoiaram regimes totalitários, ou então à passividade diante de uma cultura massificada e sem dialética. É essa a massa que oprime quem discorda sem maior senso crítico, remetendo a episódios em que a vontade da maioria se sobrepõe aos direitos da minoria. Ou de forma extremada a alguns casos não tão raros de linchamento.
Ibsen é o tipo de autor que infelizmente não perde a validade. As críticas feitas por ele há mais de um século continuam vivas, apesar de repaginadas. Se naquele tempo sua obra foi abraçado pelos movimentos anarquistas e sindicalistas, sua crítica se torna mais global mediante à falência dos grupos que alimentaram utopias e de uma sociedade mais fluída em suas posições e hierarquia.
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Postado por Guilherme Carvalhal
3/7/2015 às 12h53
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