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Quinta-feira, 20/4/2023
Relivaldo Pinho
Relivaldo Pinho
 
Pelé, eterno e sublime



Meu pai sempre dizia gostar mais de Garrincha do que de Pelé . Acho que ele gostava do tom zombeteiro do jogador, dele parecer gente comum e, mais ainda, acho que, no fundo, ele gostava mesmo era porque o craque, como ele, criava passarinhos.

Se Garrincha para ele sempre foi algo muito próximo, para mim Pelé encarnava em tudo a ideia do mito inalcançável.

Todos nós brasileiros, de certo modo, assim crescemos ouvindo sobre o mito, o rei.

Em casa, como em milhões de outros lugares, alguns sempre realizavam essa comparação entre o Mané e Pelé.

Em geral, em defesa do ídolo do Botafogo , gritava-se, como uma torcida, sobre a copa de 1962, vencida pelo anjo de pernas tortas.

Mas, ao lembrar de 1970, quase todos se curvavam ao passe mediúnico para Carlos Alberto, ou à cabeçada que, como um passarinho que bate asas, Pelé desferiu contra a Itália.

Quando crescemos, pós geração de 70, a TV nos fez o favor de trazer as imagens dos gols, dos dribles, do sublime do rei.



Não havia como passar incólume àquilo. Se Garrincha, para muitos injustiçado, permaneceria, merecidamente, no imaginário romântico do futebol, Pelé parecia-nos sempre presente, trazido, também merecidamente, pela imagem.

Pode parecer frustrante que nossa geração apenas pôde vê-lo atuar dessa forma, e não nos esqueçamos que os mais velhos sempre se vangloriaram de ter visto o camisa 10 em sua época, no seu auge.

Mas não sei quantas vezes vi e comentei com amigos o lance, visto em tape (assim se chamavam imagens do passado), o drible que Pelé esculpiu sobre o goleiro uruguaio Mazurkiewicz.



É o famoso lance do drible da vaca sem Pelé tocar na bola. Mas, ao ser chutada, a bola não entra. Teria algo insondável atuado ali? Uma força desconhecida e não percebida, ou um sopro inefável?

Certa vez comecei um debate com meu amigo, o jornalista Marcelo Vieira, sobre um gol que Neymar havia feito pelo Barcelona, em 2015, sobre o Villareal .

No lance, Neymar recebe uma bola cruzada com força, imediatamente dá um lençol de costas no marcador e, sem deixar a bola cair, fulmina o gol.

O que estava em jogo na conversa não era, evidentemente, se os lances eram iguais, mas o processo (palavra feia para falar de futebol).

Conversávamos como, em ambos os lances, o movimento pôde ser realizado como em um momento quântico da física ou da ficção nos quais tempos se fundem, olhando-se um futuro enquanto ele acontece.

Essa previsibilidade imprevisível está realizada principalmente no lance de 70. Exatamente porque Pelé foi o símbolo da desordem no universo retangular dos gramados, da fantasia incrédula dos olhares, da majestade do sublime sobre o óbvio.

Parece saudosismo. E é. A fantasia é um tipo de sensação que se sobrepõe sempre a um presente, a um momento que não se assemelha ao anterior, quase sempre, sublime.

Li em algum lugar que parece quase impossível, por meios científicos conhecidos, explicar com total exatidão como um pássaro retorna para os mesmos lugares durante as migrações. Diz-se ser algo magnético, quântico.

Talvez também por isso os pássaros estavam perto de Mané Garrincha. Ambos, traçavam caminhos insondáveis.


A Seleção Brasileira antes do jogo contra o Peru. Em pé, da esquerda para a direita: Carlos Alberto, Brito, Piazza, Félix, Clodoaldo e Marco Antônio; agachados: Jairzinho, Gérson, Tostão, Pelé e Rivellino. Fonte: https://pt.wikipedia.org/


Pelé, também. Havia um "inexplicável" avançar que o guiava, como uma bússola, em campo. O que para os "russos" eram incontroláveis movimentos, para ele, era o magnetismo de sua natureza.

Mas o rei, ao contrário de Garrincha, pôde atravessar a glória e mantê-la em vida, no ar, por mais tempo. E, depois, pairar sobre ela com a recompensa daqueles que cumpriram suas jornadas.

No panteão do futebol, em sua última sublime jornada, sua majestade, em um impossível salto, deve estar passando ao lado do Mané que, ao virar para um lado, vai para o outro, enganando o tempo e o espaço, dando, em um passe para o rei, as asas da eternidade.

Pelé eterno e sublime.


Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia”, ed. ufpa.

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Postado por Relivaldo Pinho
20/4/2023 às 18h48

 
A baleia, entre o fim e a redenção





Por abordar, ao mesmo tempo com sutiliza e crueza, a temática da obesidade, “A baleia” ("The Whale"), filme do final de 2022, de Darren Aronofsky, estrelado por Brendan Fraser, merece ser visto.

Charlie (Fraser) é um professor que ministra aulas online para jovens postulantes a escritores. Ele se tornou um homem obeso e recluso depois da perda de seu companheiro que tirou a própria vida.

Antes de mergulhar em sua melancolia pela perda do amor, Charlie abandonou sua mulher e a filha pequena. É a filha, uma adolescente, traumatizada pelo abandono do pai, que serve como ponte para sua busca para a redenção.

Como se pode ver, não é apenas a temática da obesidade que está em jogo no longa. Estão também a paixão, a perda do indivíduo amado e a desestruturação familiar.


Uma das artes do filme. Fonte: https://media.fstatic.com


Principalmente está nele algo que me interessa filosoficamente, a ideia, enfocada no filme, de que existem indivíduos que não querem salvar a si mesmos, mas buscam um tipo de salvação no que ainda podem fazer por outros.

Não é nem apenas a ideia de um mergulho sem volta, nem a ideia de que esse mergulho será menos doloroso se dele resultar algo bom.

Está entre essas duas coisas, e essa é uma das forças do filme, tratar dessas temáticas no limiar entre a dor, a aceitação de si, a compaixão para com o outro e o mergulho para o fim.

A representação desses temas em “A baleia” está quase sempre, apesar de um efeito estético pouco original no fim do filme, em uma fina linha d'água, equilibrando-se. Linha que facilmente no cinema, como Hollywood Hollywood já demonstrou, pode cair no estereótipo e na pieguice.

Sim, é um tema difícil que o espaço aqui não permite aprofundamento. Mas parte desse motivo temático está representado nas figuras dos personagens que tentam “salvar” o protagonista.


Charlie, sua filha e amiga. Fonte: https://www.diariocinema.com.br/


Como o garoto de outra cidade, que fugiu da casa dos pais e que vai na porta de Charlie oferecer uma salvação religiosa, e que o descrente professor repele.

Ou sua amiga, uma enfermeira que está sempre ao seu lado e tenta ajudá-lo. Ele aceita os curativos momentâneos, mas se nega a procurar estancar a dor no peito que o impele a essa pulsão de vida e morte.

Charlie a toda hora não só rechaça a ideia de salvação pela religião e pela medicina, como mergulha “propositalmente” em sua autopunição através da compulsão alimentar.

Dor sentida por fora, pelo corpo que sofre, e que, na verdade, vem, pela perda, de dentro.

A salvação daquele homem, que não consegue andar sem um andador, é fazer a filha caminhar por águas menos turvas que a sua.


Charlie e a filha. Fonte: https://www.lascimmiapensa.com/


Ele deixa uma herança em dinheiro para ela, mas, para ele, tão importante quanto isso, é reconhecer que ela, através de ações valorosas e de seu talento para escrever, possa caminhar com as próprias pernas.

Sim, é um tema difícil, mas, como nos demonstra o filme, tão difícil quanto caminhar é permanecer em pé abdicando de si mesmo e, apesar disso, vislumbrar (para si e em alguém) uma fina linha d'água de esperança, ou uma linha escrita como redenção.


Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia”, ed. ufpa.

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Postado por Relivaldo Pinho
17/3/2023 às 13h02

 
A relação entre Barbie e Stanley Kubrick



Não, não é um texto sobre fofoca, mas poderia ser. Não sei se já viram o teaser do filme "Barbie", , a ser lançado em 2023. No anúncio, a boneca mais famosa do mundo faz uma paródia/pastiche do clássico "2001 - uma odisseia no espaço" (1968), do diretor norte-americano Stanley Kubrick.

As reações foram as mais diversas e revelam muito do espírito cultural contemporâneo.

Sites e comentadores disseram ser "épico", "fantástico", "genial", outros viram "homenagem", "referência", "imitação".

Mas não paremos por aí. Alguns foram além do vídeo e comentaram que acharam o filme de Kubrick chato e, para não dizer que se está sem embasamento, incluíram "Cidadão Kane" (1941), um filme de um tal de Orson Wells, na mesma categoria.

A boneca gigante, agora humana na figura de Margot Robbie , que surge no filme é a síntese daquilo que as culturas pop e pós-moderna, fazem de "melhor".


Fonte: reprodução


É claro que pode parecer apenas uma brincadeira com um clássico, mas, não nos enganemos, há uma estratégia nesse procedimento.

Não sejamos "apocalípticos", nem "integrados". A cultura contemporânea tem como uma das características esse reaproveitamento de suas próprias fontes, imagens, conteúdos.

Já escrevi sobre isso anteriormente ("Lady Gaga, uma aula do pastiche") e esse fenômeno se repete aqui.

Esse reaproveitamento se dá como citação de conteúdos presentes (essa é a palavra) em nosso imaginário, atualizando-os, citando-os, necessariamente, presentificando-os (aí está a justificativa daquela palavra).


Fonte reprodução


Esses procedimentos são inerentes a essa cultura, cada vez mais imagética, cada vez mais diante de nossos olhos e cada vez mais, estruturalmente (palavra demasiadamente clássica), fugaz.

Parte dessa fugacidade tende a criar uma percepção do mundo atual que se vê sempre em busca de um obsoletismo da imagem e, ao mesmo tempo, que busca, no palácio das memórias da literatura, da televisão e do cinema do Século 20 algo em que, quando necessário, se agarrar.

É uma nostalgia às avessas. Ao mesmo tempo que rememora um passado exemplar (um clássico) faz dele uma montagem reconhecível, como troça e como promoção. Não o renega, pelo contrário, se abraça a ele, como Andy Warhol "abraça" Marilyn.

Daí compreendermos (e, sejamos sinceros, bote compreensão nisso) que Kubrick e Wells, para essa nova forma de percepção e consumo, pareçam chatos. E entendermos que as cores de "Barbie", que vão cintilar, explodir a tela ano que vem, pareçam tão esperadas.

O próprio twitter oficial que representa Kubrick, compreendendo o processo produtivo atual, afirmou, na frase clássica, "dizem que a imitação é a forma mais sincera de homenagem. Até a Barbie é fã do Kubrick".

Não façamos, sobre o teaser, uma grita de puristas (apocalípticos), não adiantará; nem brademos a sua genialidade (integrados), será inútil.

Os dois polos, na definição de Dwight Macdonald , da inventividade do highbrow (alta cultura) e da diluição do lowbrow (cultura de massa) já, há muito, se encontram, se entrecruzam, se relacionam.

A relação entre Barbie e Kubrick também pode ser compreendida através de uma expressão atual, "shippar", até bem pouco tempo uma moda (nada mais fugaz) nas redes sociais.

A expressão derivaria da palavra "relationship" (relacionamento) que era utilizada por fazedores de "fan fiction", narrativas ficcionais feitas por fãs que fantasiavam e desejavam nessas histórias relacionamentos, muitas vezes improváveis, entre personagens, por exemplo, do cinema, já conhecidos.



A expressão "shippar" é o anseio ou a criação de uniões, prováveis ou não, e pelas quais se torce, se vibra.

O cortejar da boneca (do filme) sobre o diretor (seu cinema), poderia ser pensado desse modo. Ele cria um tipo de relação aparentemente incomum, mas ela é resolvida (dissolvida?) pelas estratégias do mercado atual das imagens.

Não seria à toa que os elogios a essa fusão highbrow / lowbrow são mais efusivos que suas críticas.

Poderia parecer improvável que "2001" se cruzasse com um filme sobre uma boneca. Mas olhemos além dos sintomas e talvez percebamos que isso faz parte de nossa odisseia da ficção contemporânea. É, se quisermos, um epifenômeno de nossa condição.

O monólito insondável do filme de 1968, que surge em vários lugares e que provoca as mais diversas indagações, pode agora ser, sem problema, uma loira totalmente sondável, em traje de praia.


O monólito de 2001. Fonte: reprodução


Pegue uma pipoca, reconheça a referência, sorria ou se enraiveça com ela. Não importa. O teaser anuncia que a boneca e o diretor não são uma "fan fiction". Não há mais pedras no caminho.

Para alguns, Kubrick está se revirando no túmulo; para outros, entre ele e Barbie há uma relação.


Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia”, ed. ufpa.

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Postado por Relivaldo Pinho
30/1/2023 às 23h54

 
Um canhão? Ou é meu coração? Casablanca 80 anos




Poucos filmes ficaram no imaginário do Século 20 como “Casablanca” (1942). Comumente, atribui-se esse feito à história de amor que ele conta, adornada pela famosíssima música “As Time Goes By”. Canção que aqueles que amam o filme, agora, devem estar cantarolando.

É verdade que grande parte do sucesso do filme também está em seu cenário político, a II Guerra Mundial , e, por ser realizado nesse período, aumenta ainda mais o motivo para que a obra de Michael Curtiz (para alguns, um dos mais injustiçados diretores de todos os tempos) permaneça na história.

Sempre teremos “Casablanca”, claro, mas sempre teremos política, paixão e poder. A história e o cinema sempre demonstraram isso.


Frame do Filme



Esses três elementos formam o núcleo do filme que mostra a intriga do amor de Rick ( Humphey Bogart ) e Ilsa ( Ingrid Bergman ), dentro da intriga “menor”, a guerra entre nazistas e aliados, reproduzida em miniatura no clube noturno Rick’s Café.

É no clube do norte-americano Rick que se localizam os eventos principais, porque é lá que estão soldados, mulheres, comerciantes, políticos, todos em busca de seus interesses, e um dos maiores desses interesses é escapar da cidade marroquina.

Escapar não só porque Hitler avançava em muitas frentes, mas, porque, Casablanca, sob o domínio francês até então, após a invasão da França pela Alemanha, a partir de 1940, estaria sob o Governo de Vichy , um governo submetido aos nazistas.

Esse cenário poderia ser, por si só, um conjunto perfeito para um filme de sucesso. Mas, Roger Ebert , um dos maiores críticos de cinema de todos os tempos, vencedor do Pulitzer, dá, em um texto de 1996, como já se disse, uma das chaves para o sucesso dessa obra.

Ebert diz que o que diferencia Casablanca de um dos fundamentos do cinema, a identificação, é que no filme de 1942, os personagens apaixonados de Rick e Ilsa têm tudo para seguir a trajetória do par romântico e do final feliz. Mas essa promessa e sua realização, com a qual nos projetamos e identificamos, não se cumpre, em prol de um valor maior.


Frame do filme


O casal se reencontra no Rick’s Café após um período intenso de amor em Paris e uma separação dolorosa, provocada pelos acontecimentos da Guerra. Mas ela surge com outro homem, Victor Laszlo (Paul Henreid), na verdade, seu marido e um dos líderes da resistência aos alemães e por quem, mesmo antes de Paris, ela devotava admiração.

Rick foi um ex-comerciante de armas para os inimigos dos nazistas e ex-combatente contra os nazis em guerras anteriores. Depois da perda do amor, torna-se, como a sina do amante ferido (ele acredita que Ilsa o abandonou, em uma fuga, na estação de trem em Paris), cinicamente niilista e diz não acreditar mais em política e ser apenas o dono de um clube.

A famosa cena da música que marca o filme, em que Rick se depara, inesperadamente, com Ilsa em seu clube, na qual a câmera, em close, mostra o espanto dele e o rosto, onde lágrimas suavemente surgem resplandecente, dela, une um passado doloroso dentro de um presente, em guerra, que se arruína.

A célebre frase de Ilsa, ainda em Paris, “o mundo todo desmoronando e escolhemos essa hora para nos apaixonar”, talvez, faça ainda mais sentido, naquele momento de reencontro.

A identificação pelo espectador com essa paixão é inevitável. Mas, como afirma Ebert, somente ela não daria, especialmente no final do filme, a noção do valor que a escolha política de Rick, a escolha de deixar Ilsa seguir com Laszlo, dá ao abdicar de sua paixão.

Ao contrário do que possa parecer, a inexistência do final feliz clássico em favor de uma razão maior – sim, Rick diz, no diálogo final, não ser muito bom em ser nobre – potencializa, pelo contexto histórico e político, pelo poder repressor e pela tentativa de um poder de libertação, essa força da identificação e da projeção.

É ele quem, na cena mais explicitamente política, porque simula, entre cânticos, o conflito em curso, autoriza a Marselhesa, o hino francês, a ser tocado contra os brados dos soldados nazistas, em seu clube. Há em Rick uma nobreza, como quase em tudo no filme, dissimulada.


Frame do filme


Lá já está esse processo de identificação (sem falarmos no poder, no charme e no aspecto sarcástico dos protagonistas) que nos faz querermos ser, ao som de “As Time Goes By”, tocada ao piano por Sam ( Dooley Wilson ), Rick e Ilsa.

Mas nos atinge mais ainda porque nessa obra, que ainda permanecerá por muito tempo, como na vida e no cinema, sempre teremos política, paixão e poder.

Essas dimensões estão sintetizadas em três momentos especiais. No final, quando o Capitão Renault (Claude Rains) joga, com desprezo, uma garrafa com a marca Vichy no lixo, simbolizando, talvez dissimuladamente, o início do fim de sua subserviência com aquele poder.

E, em seguida, quando ele, na cena final, caminha amigavelmente com Rick, o que profetiza (lembremos, o filme é de 1942), ironicamente (porque o capitão é, como Vichy, um colaboracionista dos nazis) a libertação da França pelos aliados, em 1944.

Política, paixão e poder. Esses aspectos do humano e do filme, já estão presentes na cena na qual, na iminência da invasão de Paris, Ilsa e Rick vão à janela e ela ouve um estrondo. Então ela pergunta, “Isso foi um canhão? Ou é meu coração batendo?”


Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia”, ed. ufpa.

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Postado por Relivaldo Pinho
30/1/2023 às 19h13

 
Eu já morri, de Edyr Augusto


Fonte: Boitempo editorial

Você lê o livro de contos, “Eu já morri” (2022), de Edyr Augusto, imaginando, eu já disse isso sobre outro livro, que ele está em sua janela olhando o que acontece lá embaixo e, ao mesmo tempo, debruçado sobre os cadernos de jornais de um mundo submerso em violência, sexo, amor, morte e irracionalidade.

De anjos natimortos, rufiões românticos, chacinas, até ameaças terroristas, toda a sorte de violência está exposta nessas linhas. São mundos de fronteiras e zonas. “Quem quer saber? A Zona não é para qualquer um”.

Se os caminhos da Rua Riachuelo e suas imediações são um dos principais trajetos desse livro, eles não são únicos e, até quando Augusto sai da Amazônia, a violência permanece, mesmo em uma cidade do outro lado do mundo, nas mesmas linhas.

Mundos de zonas físicas, (a “Zona da rua Riachuelo”, por exemplo), espaços da cidade e fronteiras do espírito. Mundos unidos entre o desejo e o instinto, entre afetos frágeis e algum devaneio de salvação, entre culturas em conflito e o amor, entre almas arruinadas e a vã busca de uma centelha de redenção.


”Eros e Psique” (17871793), de Antonio Canova. Os caminhos ”desviantes” do amor. Fonte: https://hdelartebach.wordpress.com/2017/02/15/escultura-de-eros-y-psique/

O primeiro conto do livro, “Anjo”, nos dá uma demonstração desse vitral composto em múltiplas vivências. Ele traz a temática da prostituição na “periferia” (Bairro da Matinha, descreve o autor), relacionando-a com o sentimento que muitos adolescentes nutririam por essas mulheres que pareceriam mais livres e imponentes e, por isso mesmo, mais misteriosas e desejadas.

É o sexo e sua descoberta, uma temática que é central dessa literatura, o tema que se mistura a esse incontornável mundo de proibição e desejo, no qual, nessa paisagem de barracos, se erguem verdadeiras barreiras entre excitação e indecisão.

Barreiras em madeira e sentimento, representadas na figura do garoto apaixonado por sua musa decadente e que, nela, se perde. Sentimento condensado na verossimilhança da descrição do ambiente “periférico” e na bela frase do autor, dita pelo menino, “mergulhei naquela mulher Amazônia sem passagem de volta”.

É da mesma cepa, um dos mais bem construídos contos do livro, “Caraxué”. Firmino, um guardador de carro das imediações da Riachuelo, evangélico e casado, se apaixona por uma prostituta, Dodora. O desejo é uma busca e é, também, alguma (in)completude de si.

Mas a busca, nesse mundo, nessa literatura, pode ser apenas um trajeto momentâneo para a queda. Rufião desiludido, apaixonado, em trono, destronado. “Caraxué”.


Bairro do Comércio em Belém, um dos cenários do livro. Foto: Angelo Cavalcante


Alguns elementos recorrentes da literatura de Edyr Augusto retornam nesse livro e, novamente, parece que estamos lendo alguma história que ouvimos de algum familiar, de um amigo, de um motorista de aplicativo que comentam as notícias do dia. Uma história soprada em nossos ouvidos e captada pela literatura.

É o caso do conto “Fale, garoto”. Leo é um ex-bon vivant que luta para não retornar à vida de festas, drogas e mulheres. Leo se debate entre ter uma vida rotineira e o desejo que o empurra para, talvez, o que ele realmente é.

Nesse retorno aos temas, locais e zonas do escritor paraense, é simbólico o conto “Motel Firenze”. Em um motel da cidade, um crime ocorre. Uma família da elite regional tenta encobrir o ocorrido. Um “playboy” está no centro dos fatos. A polícia e os governantes são corruptos e a imprensa escala sua busca diária pelo grotesco.

Em os “Éguas” (1998, em reprodução ao lado), os motéis já entrariam como uma das zonas recorrentes nessa escrita, exatamente por representarem o rompimento de fronteiras, nesse lugar onde as proibições se apagam e não se está mais “em casa”. Desejo e violência têm, aí, na literatura, um lugar para chamar de seu.

É um dos livros mais experimentais de Edyr Augusto e é, também, um dos livros mais presos à realidade mais visível. Realidades em lugares diferentes, com a violência matizada dentro de cada experiência das pessoas e suas cidades. São mundos, zonas, fronteiras.

Esse primeiro experimento, mais ousado esteticamente, está em “O amor entre nós”. Dois belenenses que não se conhecem, uma de descendência judaica e, outro, árabe, viajam para Jerusalém.

Eles se envolvem amorosamente com dois nativos de crenças opostas e, ao mesmo tempo, são engolfados pelo conflito árabe-israelense. A dúvida entre seguir suas crenças, o terrorismo e o amor, é a parte principal desse cenário.

Mas esse cenário, nesse que é o conto mais distante da Amazônia de Augusto, é contextualizado pelo autor com várias referências às crenças que atravessam os personagens e exibem seus pontos de vistas, seus prejulgamentos, suas leis e sua impensável união.

O escritor não nos dá uma análise do conflito, ele nos coloca diante de dilemas culturais, sociais e pessoais. Há história, mas há, fundamentalmente, literatura.

A frase, dita pelos belenenses que não entendem aqueles radicalismos daquelas terras distantes, “em Belém não tem disso, tem? Não. Não tem. Mas aqui...”, é a síntese desse mundo de zona de guerra e de - permitam-me a expressão - fronteira do amor. Em meio ao ódio, à dissimulação e ao caos.

O segundo experimento nesse livro não é tão novo assim. Na verdade, o contista, como se sabe, tem, na aproximação da sua literatura com a realidade amazônica, um dos seus fundamentos.


Livro de contos do autor que tem a Amazônia urbana como tema. Fonte: reprodução

Mas ele fará isso de modo muito mais documental - talvez, como em nenhum momento anterior - em dois contos, “O nosso amor não pode morrer” e o conto que dá título ao livro, “Eu já morri”.

O primeiro, faz alusão à chacina ocorrida no Bairro do Guamá, em Belém do Pará, em 2019, na qual, em um bar, onze pessoas foram mortas. Amplamente coberto pela imprensa, o autor transfigura o fato já no seu título, fazendo uma referência a uma famosa música do cancioneiro paraense (“Ao pôr do sol”), transfiguração que se seguirá nos nomes dos personagens, no enredo e na narração. No pôr do sol de Augusto, “na vizinhança, ninguém viu, ninguém ouviu nada. Era domingo, estavam dormindo. Às duas da tarde? Foi. A sesta”.

No segundo conto, a alusão é a outro famoso caso ocorrido no Estado do Pará, na cidade de Abaetetuba, no qual uma menor foi presa em uma cela com mais de 20 homens. Lá, por 26 dias, ela fora brutalmente violentada. No conto, ela se chama Janalice, mesmo nome da personagem de “Pssica” (2015) que sofre, também, vários tipos de violência.

Edyr Augusto repete, em muitos casos, os personagens em seus livros. Sejam os mesmos personagens, ou que se assemelham. Mas, nesse caso, talvez, ao criar a aproximação entre a menor de Abaetetuba e a Janalice de “Pssica”, ele queira nos dizer, pela semelhança dos acontecimentos, que ambas são parte de um mesmo mundo, de uma mesma decrepitude, de um mesmo roteiro.


Edyr Augusto homenageado na Feira Pan-Amazônica do livro de 2022. Foto: Maíra Belfort


Recentemente, o autor disse que existem antigos personagens que ficam atrás dele, em sua consciência, como fantasmas, a quererem mais um lugar nos seus livros. Eles diriam algo como, “olhe para mim, não esqueça de mim”. Nesse livro, eles voltam.

Mas não estão sozinhos. Vários novos personagens surgem. Com esses recém-chegados, a violência dará as mãos ao sexo; a desilusão se cobrirá de esperança e, resignadamente, cairá. Como no conto, de mesmo título, “Todos têm seu dia”. Eles deverão, no futuro, assombrar o escritor.

Se essas figuras, na realidade e no jornalismo, parecem sempre ser esquecidas, como fantasmas, cabe à literatura trazê-las para novos mundos, novas fronteiras, novas zonas. “Quem quer saber? A Zona não é para qualquer um”.


Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia”, ed. ufpa.

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Postado por Relivaldo Pinho
25/10/2022 às 18h10

 
Baby, a chuva deve cair. Blade Runner, 40 anos



“Baby, the rain must fall” (“Baby, a chuva deve cair”) é o famoso título da crítica de Pauline Kael ao filme “Blade Runner”, de 1982. Kael, uma das maiores críticas de cinema, foi implacável. Para o bem, mas, principalmente, para o mal. Não é juízo de valor, é o papel da crítica. Ok, é juízo de valor.

Mas um juízo que se baseava no que, naquele momento, para a escritora, o filme lhe dava. Ao mesmo tempo, para ela, marcando um lugar na história do cinema, graças ao seu visual, e, pelos seus erros narrativos (estudiosos chamam diegese), não tendo nada a oferecer para o público.

Se Kael pode ter sido, para muitos, injusta em seu julgamento, em um ponto ela acerta em cheio. A principal ideia do filme, pouco explorada para ela, é que os replicantes, os androides que se rebelam, se tornaram mais humanos que os habitantes daquele novo mundo.


Frame do filme


Isso, agora, não parece novidade, e muitos ainda tomam essa opinião como sendo sua e original. Mas sacar isso, naquela época, quando a ficção científica era deslumbrada com o futuro, era muita coisa. Na verdade, ainda é, não sejamos pretenciosos, baby.

A história de um mundo futuro no qual uma empresa produzia seres autômatos para servirem aos seus propósitos e que, ao tomarem consciência e adquirirem sentimentos, se rebelam contra seus criadores, ainda é uma das obras mais comentadas, discutidas, referenciadas não apenas do cinema, mas da cultura.

E, talvez, o seja, justamente por essa indelével relação que mantemos com a máquina. Adoração e medo. São esses os sentimentos que afloram em Deckard (Harrison Ford), o caçador de androides sentimental.


Frame do filme


São esses os sentimentos que nos arrebatam em relação à figura daquilo que nos parecia separado de nós, por que nós, ao contrário da maquinaria, não somos bonecos (é como um dos policiais se refere aos replicantes) de uma linha de montagem.

Mas, é também, justamente esse automatismo um dos fascínios da máquina. Ela nos parece eficiente, precisa, inequivocadamente, responsiva.

Pelo menos assim era, até “Blade runner” colocar de modo arrebatador Roy (Rutger Hauer), o líder replicante, derramando lágrimas enquanto a chuva cai.

Esse antigo confronto, que se tornou o motivo principal da ficção científica, foi potencializado pelo filme de Ridley Scott . Posteriormente, seria diluído em muita produção, com a mesma temática, de péssima qualidade.



Se há um tema de fundo a tirarmos desse filme, e que me parece o seu “teor de verdade”, é esse. Não o sentimentalismo da máquina, mas o confronto de uma humanidade buscada.

Nesse sentido, na mesma linha de Pauline Kael, Francisco Rüdiger, em “Cibercultura e pós-humanismo”, afirma: “a valorização da liberdade de expressão e movimento, a curiosidade corajosa, o conhecimento das paixões, o cultivo dos sentimentos parecem ter se tornado patrimônio característico dos androides, mais humanos que seus criadores, em todos os sentidos”. Alexa deve estar feliz.

Esse antigo embate talvez, cada vez mais, esteja diante de nós. Os replicantes, a figura do autômato, como já escrevi em outro momento (“Nosferatu 100 anos e o infamiliar que em nós habita”), tem, também, esse poder de nos suscitar o estranhamento, justamente por encarnar o desconhecido. Não por acaso, o tememos.


Frame do filme


Mas, se o final do filme, no corte do diretor, essa ideia é um pouco rompida, quando o caçador foge com sua presa, na primeira versão, o final, odiado pela maioria dos cinéfilos (sic), uma imposição dos produtores, faz com que eles apareçam sobrevoando uma paisagem árcade, como um casal feliz.

Por ironia, hoje, esses finais parecem estar lado a lado em nosso mundo contemporâneo. Insípido e vivaz. “Se você gostou deixe um like”, se não, ignore.

De certo modo, estamos, ainda, naquela cidade que não para de chover e na qual tudo parece, ao mesmo tempo, reluzente e frio, decadente e futurístico, maquinalmente humano.

Você pode gostar ou não. Ok, é juízo de valor, então, baby, a chuva deve cair.

Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia”, ed. ufpa.

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Postado por Relivaldo Pinho
25/9/2022 às 18h22

 
The Boys: entre o kitsch, a violência e o sexo


Foto: reprodução

Cabeças explodindo, sexo compulsivo, corporações corruptas, heróis psicopatas, mocinhos indecisos. Tudo isso esfregado na cara do espectador, sem nenhuma condescendência. “The Boys”, a série da Amazon Prime, quer exatamente isso; chocar pela imagem, conquistar pelo grotesco, persuadir pela subversão.

Não que isso já não tenha sido feito no cinema, quadrinhos ou, até mesmo, em séries. Mas, nesse caso, a junção de imagens gratuitamente violentas e perversão (no sentido psicanalítico) é vista através daqueles que deveriam nos salvar.



Talvez, por isso, a série tenha ganhado tanta repercussão. Inverter o sentido do herói, explicitar o sexo pervertidamente, exibir a manipulação das pessoas, são parte dessa narrativa na qual semideuses e mortais compartilham do mesmo mundo midiaticamente degenerado.

Isso é uma parte. Provavelmente, nada disso teria provocado tantos efeitos se esses efeitos não estivessem de acordo com uma estética que, de certo modo, os fundamenta; uma dose cavalar de kitsch , pastiche e imagens que bastam por si mesmas.

O kitsch ( Umberto Eco ) é feito para dar ao espectador um sentimento já pronto, comestível, rapidamente consumível. As sequências e cenas de extrema violência são o principal, mas não o único, exemplo dessa estética na série.

Não por acaso, esses momentos surgem de modo inesperado, “surpreendendo” o espectador que vibra (pelo menos, creio, que é o que acontece com a maioria) com lutas com superpoderes, tripas para fora, cabeças pelos ares, corpos despedaçados.



É a expectativa da audiência sendo recompensada. Aqui, nenhuma centelha de violência deve, repito, deve, ser explicada por uma moral maior, por uma lição edificante, por um sentido enobrecedor como fundamentos principais a serem absorvidos. Splash! Mais uma cabeça se foi.

Nesse caso, nem mesmo a possível confusão com o “midcult”, um estilo que tenta imitar estilos anteriores com alguma grandeza, existe. É verdade que existe a imitação de heróis e temas anteriores, o que pode parecer uma paródia quando os ironiza, como Capitão Pátria /Superman , Soldier Boy /Capitão América , etc.

Mas, o sentido maior, é se aproveitar desses conteúdos anteriores que são reconhecíveis, para fazer uma imitação que, aparentemente, inverte os sentidos dos filmes de heróis, seus comportamentos, moral e objetivos.

Mas essa intenção quase desaparece por completo quando predominam a ideia das corporações malvadas, as imagens impactantes, o terror confeccionado, o sexo como choque e piada.



Sim, como choque e piada. Em “The Boys” o sexo, a perversão, nada tem a ver com uma crítica satírica profunda à condição humana (ou super-humana (sic)). Nada tem a ver com o sexo, tão decisivo, por exemplo, no cinema de Buñuel .

Em Buñuel, (ver por exemplo, “A bela da tarde” e “O discreto charme da burguesia”), o sexo é tomado dentro de uma concepção fortemente questionadora, psicanalítica e surrealista.



Na série, a perversão é exibida pela perversão. Imagem pela imagem. Expectativa e compensação. Exibição pela exibição. Não é à toa que ela se dá, principalmente, entre os super-humanos. Talvez porque, os “super”, como são chamados, corrompidos pelo poder, descem do seu olimpo, tornando-se, em seus “defeitos”, humanos.

E, no mesmo sentido, os humanos, querendo “ascender”, aspirem os poderes dos “super”, como uma obrigação de combater os maus heróis, mas também (vejam a alegria do frágil Hughie ao ter um super poder) como êxtase e compensação de si mesmos.

Você deve estar se questionando: mas a série não se propõe a fazer uma discussão profunda sobre esses temas, é entretenimento!

Exatamente. Daí ela poder ser considerada uma das manifestações da nossa contemporaneidade. A imagem, em si, domina a sensação. Ela não precisa estar ligada a uma justificativa ou a um propósito crítico.

Por isso o sexo é surreal, mas um “surrealismo sem inconsciente” (Fredric Jameson ). As imagens sobrepostas, descontextualizadas e as colagens da arte surrealista tinham um propósito; tornar menos familiar nossa compreensão das coisas.



Em “The Boys” a familiaridade exagerada das imagens não se propõe a isso. Não precisa. É o sentimento mastigável, a violência exacerbada e o sexo como choque programado que dão, aos Boys, o sentido. Sentido?



Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia”, ed. ufpa.

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26/7/2022 às 17h02

 
Você está em um loop e não pode escapar


Fonte: filmestipo.com



No cinema, um mago viaja por multiversos incontáveis. No streaming, filmes e séries voltam no tempo para reviver um tempo anterior. Na realidade (realidade?), a história parece se repetir continuamente. Como não podemos abrir um portal e atravessar o tempo, de repente, você se pergunta: é um déjà vu , ou isso está acontecendo?

Esse sentimento pode parecer uma sensação isolada, mas não é. Vejo depoimentos, imagens, pessoas, que realmente vislumbram um certo tempo, não muito distante, imaginam e sonham que, de algum modo, “as coisas poderiam voltar ao que era antes”.

É mais complexo que “O feitiço do tempo”, filme de 1993, no qual o personagem acorda sempre no mesmo dia. Talvez nossa condição contemporânea, especialmente dos últimos anos, nos empurre para uma nova sensação, um desejo, de retorno e repetição.


Filme “Feitiço do tempo”. Fonte: https://media.fstatic.com/


É uma especulação. As percepções e suas tentativas de explicação, surgem quando especulamos. Mas, busquemos um fundamento mais, digamos, concreto. O mito do eterno retorno, tão conhecido e interpretado nos mais variados campos, pode servir como esse fundamento.

Não caberia aqui, evidentemente, abordar as várias interpretações que esse mito teve, desde a filosofia de Nietzsche à psicanálise freudiana. Fiquemos com a interpretação da mitologia de Mircea Eliade , presentes, nos livros “O mito do eterno retorno” e “Mito e realidade”.



Mais especificamente, tomemos a sua interpretação do ato de regeneração do tempo das origens. As sociedades arcaicas, diz Eliade, necessitam regenerar-se periodicamente. Os rituais de regeneração sempre se ligam a um ato, momento, exemplar, arquetípico e, em geral, cosmogônico, como o surgimento do mundo.

A vida do homem arcaico está ligada às categorias essenciais, mitos primordiais, atos arquetípicos e não a eventos. (Deixa eu logo fazer essa observação, antes que eu seja apedrejado por uma antropologia: hoje, uma certa interpretação antropológica chama sociedades arcaicas de tradicionais e modernas de complexas; estou usando os termos literais de Eliade).


Fonte: submarino.com.br


Esse homem não carrega o peso do tempo, mesmo nele vivendo, exatamente porque sua concepção temporal se liga à ideia das origens.

Quando, no tempo, a realidade cai em desgraça, quando o homem se afasta de seus modelos, exemplos, anula-se o tempo e, então, para essa concepção arcaica, é possível ir, novamente, em busca das origens, em busca de uma renovação.

Isso se revela em mudanças cíclicas, como as fases lunares, ou em eventos mais cataclísmicos, como o apocalipse, nos quais a realidade se degenera em “pecado” para, em seguida, se regenerar.

A ideia do tempo da modernidade, um tempo linear irreversível, de rememorar os mais variados atos históricos que devem ser guardados, registrados, está distante da concepção de tempo cíclico atemporal das sociedades arcaicas.

Mas, então, o que explicaria essa sensação de eterno retorno contemporânea, presente na realidade e na ficção?

Estaríamos voltando à ideia de um necessário retorno às origens? Estaríamos buscando substituir um tempo decaído por um tempo exemplar, menos caótico, menos catastrófico, mais estável e compreensível?

Não tenho respostas definitivas, mas impressões. Em primeiro lugar, como sabemos e o próprio Mircea Eliade deixa claro, o mito não finda com a sociedade moderna, mas ele se modifica.

Os exemplos são vários, desde os rituais que atravessam a vida, os mitos da literatura, dos quadrinhos, do cinema e tantos outros. A questão é que, na vida moderna, diferentemente da ficção, o mito tende a operar dentro do tempo irreversível, que não pode anular os momentos “profanos” que se afastam dos modelos.


”A persistência da memória”, 1931. Salvador Dalí. Fonte: https://pt.wikipedia.org/


O que significa, por exemplo, que dentro desse tempo, os momentos de guerras, catástrofes, pandemias, permanecem dentro do tempo da modernidade. Pode-se argumentar que aprendemos com eles, ou que eles são inevitáveis.

Mas, como vimos, para a concepção arcaica, a noção do tempo não se mede dessa forma, daí por exemplo, podermos afirmar que para essa ideia do homem arcaico o tempo é sempre presente. E, quando esse presente se apresenta distante dos seus modelos originários míticos de origem, pode-se recorrer aos mais variados rituais para refundá-lo, trazer um novo tempo.

Não exatamente o mesmo tempo anterior, mas o voltar a origem, ao modelo, ao arquétipo, de certo modo, regenera o tempo, dando-lhe outra configuração. O estimado leitor já entendeu que, na nossa sociedade moderna, somos incapazes de realizar tal feito, justamente porque nosso tempo parte do princípio de linearidade, da ideia de continuidade. A palavra é progresso.

Se somos fundados na ideia de linearidade e progressão do tempo e, com isso, da história, carregamos o peso dos fatos ocorridos e não podemos anulá-los.

Daí, por exemplo, a ideia de subversão da dor, do sofrimento, passar pela concepção de mudança, subversão, revolução. Mas, mesmo essa ideia, é atravessada dentro de um tempo que evolui, que não volta a um tempo de origem, de arquétipo.


”Contos do loop”, série de streaming


O homem moderno talvez sinta isso como impossibilidade, o que, ao mesmo tempo, pode explicar seu sentimento de um desejo de retorno.

Olhamos para trás e desejamos que determinado tempo voltasse, olhamos para dois anos atrás e queríamos que os anos que se seguiram não tivessem acontecido. Exatamente porque o que se seguiu foi preenchido por desprazer, queda, catástrofe.

Nossa ideia moderna de progresso no tempo nos obriga a caminhar para frente, carregando nas costas, memória, o fardo da história.

Talvez a enorme quantidade das produções imagéticas que criam loops temporais, portais interdimensionais, viagens no tempo, do cinema, do streaming, reflita esse desejo, satisfazendo, assim, esteticamente, nossa necessidade de retorno.

Pode ser sintomático que desejemos, através das imagens espetaculares de outros mundos e realidades proporcionadas pela técnica contemporânea, vivenciar outras realidades, um desejo de retorno e, contraditoriamente, isso nos coloque em uma simulada tentativa de desafiar o tempo. Nosso eterno retorno é outro.

O homem arcaico, com sua concepção religiosa e mágica – e, ironicamente, exatamente por isso é chamado de arcaico – realizava tal façanha dentro do seu próprio tempo.



Como não podemos realizar tal feito, um mago, no cinema, realiza um ritual e abre um portal de onde várias réplicas de pessoas e mundos surgem e, então, escapamos, imageticamente, de nosso tempo. De repente, você se pergunta: é um déjà vu, ou isso está acontecendo? Loop!


Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia, ed. ufpa ”

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Esse texto foi publicado no Diário online e em relivaldopinho.wordpress.com.



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21/6/2022 às 19h39

 
Jazz: 10 músicas para começar


Sinatra observando a maestria de Ella Fitgerald, em 1967. Fonte: https://francisalbertsinatra.tumblr.com/



Algumas pessoas gostam de listas. Eu não gosto. Mas, como acredito que a contradição faz parte do humano, resolvi fazer uma. É de jazz. É em homenagem ao Dia internacional do jazz, celebrado na data de 30 de abril. Você não precisa gostar do estilo para ouvir. Afaste logo essa ideia boba de que jazz é só coisa de gente cult e inteligente. Pense na famosa frase de Louis Armstrong, “se você precisa perguntar o que é jazz, então nunca saberá”.

Como toda lista é falha, acertar não importa. Sim, é uma lista pequena e não faz jus ao gênero. Maior, ficaria inviável para o espaço. É para se ouvir em uma tarde de um sábado qualquer, como este.

A ideia é que, depois desta lista, você possa se aprofundar mais e perceba a potencialidade do estilo musical mais, ...eu queria achar outra palavra..., profícuo da cultura industrial.

Para a escolha destas músicas, além do meu gosto pessoal, há um critério; tentar abarcar uma certa variedade dentro do gênero musical. Uma variedade vocal e instrumental.

“Summertime” (George Gershwin, DuBose Heyward, 1935). Retirada da ópera “Porgy and Bess”, essa canção é tomada como um dos temas mais singelos e belos para um standard (um clássico) do jazz.



Vale a pena ler a história da ópera da qual a música faz parte. Aqui, vamos unir um dueto do panteão jazzístico, Ella Fitzgerald e Louis Armstrong, interpretando-a no álbum “Porgy and Bess”, de 1957.

É a hora de você, neste sábado, acomodar-se no sofá e sentir o vigor da letra, das vozes e do trompete nessa música e nessa inigualável interpretação.

A introdução do trompete de Armstrong e a entrada de Ella vão ecoar na sua cabeça por um bom tempo. Uma dica de um fã: há uma interpretação solo de Ella em vídeo, feita em 1968, em Berlim. Veja como cantar pode (ainda pode?) ser outra coisa.

“Giant steps” (John Coltrane, 1960). Certamente, quando se começa a escutar essa música, o sofá já não é mais seu lugar. A ideia é essa, a tonalidade do Bebop (um ritmo mais cadenciado e perceptivelmente arranjado, do qual o grande Charlie Parker foi o maior símbolo), aqui, foi explodida, literalmente.

O antropólogo Massimo Canevacci certa vez escreveu que Adorno (o filósofo) não gostaria de Coltrane, exatamente daquilo que faz desse álbum a sua grande marca, uma certa improvisação programada, se assim posso dizer.



É uma erupção de tons e variações, impensáveis para um ouvido acomodado à cadência melódica do Swing (ritmo consagrado pelas big bands) e totalmente distante de um entediante Smooth jazz (puristas do jazz chamam, jocosamente, de música de elevador). Coltrane marcaria seu nome na história, justamente por romper com ela.

“Caravan” ( Duke Ellington, Juan Tizol, Irving Mills, 1936). Talvez a música instrumental mais regravada do Jazz. Ouça a gravação do álbum “Money jungle” (1962), de Ellington, Max Roach e Charles Mingus.

Logo, de cara, você sentirá os dedos de Mingus atacando o contrabaixo, a força da bateria de Roach e as célebres possibilidades do vigor pianístico de Ellington.

Duke, como era chamado pelos amigos, mudaria a história do jazz por lhe conferir uma aura para além da mera fruição gratuita.



“I fall in love too easily” (Jule Styne, Sammy Cahn, 1944). Já prevejo algumas pessoas torcerem o nariz, mas listas são feitas, também, exatamente para isso.

Senhoras e senhores, essa canção de amor, tão pequena e simples em sua letra, serve como uma bela introdução ao estilo Cool jazz (um estilo mais lento que o bebop, que se consagraria com o memorável Miles Davis ) e um bom começo para se ouvir seu mais conhecido intérprete vocal, Chet Baker.

É na sua interpretação (Let's get lost: the best of chet baker sings, 1954) que podemos perceber o cantor, quase, pagando uma penitência pelo amor.



Poderia parecer piegas, porque nos remete, talvez, à experiência de cada um, mas, fantasiamos, e parece que Chet está contando sua história e, então, nos irmanamos com ele em sua interpretação. Too easily, muito facilmente.

“Moanin’” (Bobby Timmons, 1959). A escolha aqui atende a dois propósitos, primeiro, perceber como o jazz evoluiu em ritmos que o enriqueceram, como o Hard bop; depois, atende à história do álbum do qual essa música faz parte, “Art Blakey and the jazz Messenger”, de 1959, o álbum que iria mudar a história da Blue Record, uma das maiores gravadoras de jazz da época.

E, parte dessa história, está ligada a excepcionalidade musical proporcionada por um dos conjuntos de instrumentistas mais fortes do gênero: Art Blakey, Horace Silver, Clifford Brown, Lee Morgan , Freddie Hubbard , Wayne Shorter, Wynton Marsalis e tantos outros célebres.



Pegue qualquer nome daí e você verá um gigante na história do estilo. “Moanin’” é não só uma síntese estilística desse momento, com suas acelerações e pausas perfeitas, permitindo a expansividade de todos os músicos, mas o prenúncio do brilho que muitos desses músicos ainda alcançariam.

“Fly me to the moon” (Bart Howard, 1954). Há coisas das quais não se pode escapar. Freud, em “Além do princípio do prazer”, cita uma frase de Mefistófoles, do “Fausto”: “Pressiona sempre para frente, indomado”.

Sempre que ouço essa música, na interpretação de Sinatra no álbum “It might as well be swing”, de 1964, lembro dessa frase.

Pode parecer contraditório com a interpretação freudiana, mas nem tanto. Talvez seja a ideia de uma sensação de prazer incontida, da qual a letra trata, que leve a isso.

Empurrando o amor, incontrolavelmente, para as estrelas, aquilo que se sabe, finito, por isso intensamente vivido.



Sinatra, em uma apresentação de 1965, disponível em vídeo, parece saber disso e exala uma alegria, diante da plateia e da câmera, indomável.

“Red clay” (Freddie Hubbard, 1970). Escrevi um texto específico sobre essa música, “Red clay 12:12”. Ela pertence ao álbum de mesmo nome e representa um momento em que Hubbard coroa, com brilhantismo, sua relação com a Soul music e com o Jazz fusion.

A melhor versão é ao vivo, contida no álbum. Como exercício comparativo, é interessante perceber como as duas versões mudam bastante, revelando, em uma gravação, como poucas, a carta na manga do jazz; o tocar ao vivo, a diferença entre músicos, o enriquecimento da improvisação.

Hubbard se tornará um dos mais célebres trompetistas por, dentre outras características, sempre desafiar o limite das notas, da frase musical, daquilo que como o barro (clay) pode ganhar outras formas de interpretação.



"My baby just cares for me" (Walter Donaldson, Gus Kahn, 1930). Claro, é a gravação dessa música feita por Nina Simone que interessa. Impressiona bastante como essa canção estará no álbum de estreia da cantora, “Little Girl Blue”, de 1959.

Mas, mais impressionante ainda, é perceber como aquela pianista, que ainda sonhava com a música erudita, vai nos proporcionar não só uma inigualável diferenciação e pujança vocal, como um talento incomum com o teclado.

Certa vez, um amigo músico de jazz, quando escutávamos essa canção interpretada pela musicista, no exato momento que ela executa o solo no piano, interrompeu, exclamando: mas é Bach!



“Take five” (Paul Desmond, 1959). Essa música é tão simbólica, tanto pelo seu ritmo que memorizamos por horas, quanto pelos seus feitos comerciais. Ela pertence ao álbum “Time out”, do Dave Brubeck quartet, de 1959.

O álbum vendeu, naquela época, graças, em grande parte, a essa música, mais de um milhão de cópias, um enorme feito para o jazz e um gigantesco avanço para sua popularização.



É a melodia, agradável, variada e, ao mesmo tempo, aderente, do sax de Paul Desmond e do Piano compassado de Brubeck, que conferem, a essa canção, um lugar fundamental na história do jazz.

“Misty” (Errol Garner, Johnny Burke, 1954). Sarah Vaughan chegou, para mim, depois de Ella Fitzgerald e instilou uma dúvida. Como todo amante do jazz, comecei a comparar as versões das músicas entre as duas.

Ainda hoje, posso jurar em um dia ter gostado mais da versão de “Misty” de uma, do que da outra. Obviamente, no outro dia, penso o contrário.

Essa música presente no “Vaughan – Vaughan And Violins”, de 1958, nos dá uma amostra da potência (aqui, não tem jeito, a palavra é essa mesmo) da voz de Vaughan. Em um vídeo, de 1964, gravado em uma apresentação na Suécia, ela parece estar tímida antes de começar a cantar.



Quando começa, após ouvir aquele grave se espraiando, suave, e em seguida um agudo contrastando-o, e as frases distendidas, você pode pensar, essa versão é melhor.

Aí está. 10 músicas para você sentir um pouco do que o jazz já nos proporcionou e ainda nos proporciona. Sensação é a clave. Lembre-se sempre da frase de Louis Armstrong.


P.S: Ah listas! Alguns podem me acusar de ter esquecido de Billie Holiday. Não esqueci. É que uma de suas maiores interpretações é algo tão denso, que escrevi um texto específico sobre: “Billie Holiday, Strange Fruit e 100 anos do Jazz”.


Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia”, ed.ufpa.

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5/5/2022 à 01h10

 
Nosferatu 100 anos e o infamiliar em nós*




Antes de mais nada, é preciso aceitar a tarefa sisifiana de definir, a grosseiríssimo modo, essa palavra-conceito, infamiliar [“Das Unheimliche”], tida coma uma das mais complexas da literatura freudiana. Freud toma de Schelling uma citação que define o infamiliar como “tudo o que deveria permanecer em segredo, oculto, mas que veio à tona”. Mas, nessa definição, o analista não se limita. Existe, neste texto de Freud, como, de resto, nos demais, uma série de entrecruzamentos conceituais de sua obra. O infamiliar torna-se um conceito novo porque reúne a característica de ser algo que sentimos, ao mesmo tempo, como pertencente a nós (familiar), mas que, por vários fatores, recalcamos, e que, em determinado momento, irrompe, transformando-se em infamiliaridade, em algo angustiante. É um afeto que estava em casa, acomodado, mas, inesperadamente, torna-se, um estranho do mesmo lar.

O exemplo principal de Freud, para exibir sua argumentação sobre esse conceito, é o conto “O Homem da areia” (1815), de E. T. A Hoffmann . No conto, o elemento central, para o teórico, é a figura imaginada de um homem que joga areia nos olhos das crianças e os arranca.

Nessa narrativa, Nathanael, o rapaz que imagina ver o homem da areia, é assombrado por sua imagem que ele, posteriormente, identifica como de um advogado, Coppelius, depois com um vendedor de barômetros chamado Coppola, que venderá a Nathanael um monóculo. Esse monóculo permitirá a Nathanael olhar para a casa em frente, onde está Olímpia, filha de um professor.


Ilustração do próprio Hoffmannn de “ O Homem da areia”


Nathanael se apaixona por ela e, só depois, perceberá que ela era um autômato, o que provoca nele uma crise. Recuperado, ele, então, passeia com a noiva que ele havia abandonado. Nesse momento, em uma torre, de repente, nele irrompe uma sensação de pavor, e ele vê Coppola/Coppelius, enlouquece e se atira.

Freud vai demonstrar como essa narrativa ficcional serve como paradigma para a caracterização do infamiliar. Aspectos como a figura do autômato, do eterno retorno, do complexo de castração são evocados na análise freudiana.

Não cabe aqui fazer uma reconstituição desse difícil trajeto. Mas as conclusões freudianas caminham para a compreensão de que o personagem Nathanael projetaria nas figuras do homem da areia, do advogado e do vendedor, alguns de seus recalques infantis, especialmente em relação ao elemento paterno, daí podermos entender a ideia do duplo (Coppelius/Coppola), do complexo de castração, representado no ato de arrancar os olhos, e do autômato , seres inanimados que ganham “vida”.

As manifestações da psicose de Nathanael, então, não são externas a ele, elas já estavam dispostas em sua infância, em seu lar, mas, se antes, ainda guardavam uma familiaridade, com o advento fantasmático da realidade, elas se transformarão, porque recalcadas, em sua infamiliaridade.

É evidente, repito, que a análise freudiana do “Das Unheimliche”, de modo algum, se resume a esses aspectos. O que quero chamar atenção – e precisei fazer esse resumido périplo para tal – é de como esse elemento infamiliar, partindo da senda de Freud, nos ajuda pensar “Nosferatu” e nossa contemporânea infamiliaridade que, se não morde pescoços, atinge, como o vampiro aterrorizante, decisivamente, nosso Eu.

O primeiro contato de Nosferatu com a esposa de Hutter é através de uma fotografia dela, que seu marido portava quando visitou o Castelo do Conde/vampiro. Ao ver a imagem, o Conde fica fascinado e ele, então, decide comprar a casa que Hutter, um agente imobiliário, foi lhe oferecer, “a bela casa abandonada em frente à sua”, diz Nosferatu ao agente.


Antes do infamilar, o feliz casal Hutter


O vampiro se tornará seu vizinho, como os medos que guardamos próximos a nós, e que, mesmo que não desejemos, vêm à tona. A fotografia de Ellen, a esposa, é a abertura para a chegada do (des)conhecido, aquele que nos habita e que, ao mesmo tempo, estranhamos, o infamiliar.

Não deixa de ser curioso que Kracauer em seu livro, “De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão” (1988), afirma que a crítica à “Nosferatu” à época não deixava de relacioná-lo a E.T.A Hoffmann. Exatamente o autor central a ser tomado como exemplo do infamiliar por Freud.

Kracauer, pela sua leitura política, identifica a imagem do vampiro, predominantemente, como uma figura tirânica, “aparecendo onde mitos e contos de fadas se encontram”. Mas Kracauer não percebeu a dimensão ontológica, metafísica, explorada pela certeira crítica de Jean Domarchi sobre Murnau e seu filme, escrita no Cahiers du cinéma, em 1953.


Livro de Kracauer. “De Caligari a Hitler”.


Em “Presença de F.W Murnau”, Domarchi diz: “é plausível que a técnica de Murnau no cinema corresponda à de Kafka no romance, pois a principal intenção que os conduz é a mesma em ambos os casos; ela diz respeito ao trágico da existência. O mundo, como diz K. Jaspers, é um espelho quebrado, e, neste mundo, a verdade e a paz do coração são inacessíveis. ‘Nosferatu’ já havia antecipado, de um modo ainda mais ‘anedótico’, essa constatação. O verdadeiro tema deste filme não é, como se poderia supor, uma lenda tirada de uma coleção demonológica, mas a “metamorfose” de um universo provincial e burguês dos anos 1830, em um mundo habitado pela morte e pela devastação”.

O que Domarchi está enfatizando é que o cinema de Murnau, possui uma “visão [que] é inexoravelmente pessimista; o mundo aqui é risível e grotesco; o outro, implacável e aterrorizante. Pactuar com ele para escapar das restrições insuportáveis da vida burguesa – cuja mediocridade nenhuma alma generosa e alegre poderia admitir – é brincar de aprendiz de feiticeiro e conter a tempestade”. (Tradução: Miguel Fernandes).

É o que justifica a presença desse outro que pertence ao submundo, mas esse outro é “evocado” pela própria vida mundana. Tem-se a impressão de que, de algum modo, (in)voluntariamente, o casal que vivia feliz, é o anfitrião do terror, de sua própria angústia.

Nosferatu é esse outro, esse duplo da vida que se irrompe dentro dessa familiaridade restrita e insuportável e, por isso, surge, ao mesmo tempo, no interior da cidade, sendo tão distante dela. Infamiliar.

Lembremos que é Hutter quem vai ao encontro do Conde; recordemos que o vampiro, ao chegar à cidade onde se instalará, nada se lhe opõe, ele caminha pelas ruas segurando seu caixão que contem a necessária terra (é o que lhe garante a vida e o poder) de seu lugar de origem e se instala como um habitante qualquer. Nesse lócus, o terror é um estrangeiro que sempre possuiu sua morada.

Não esqueçamos que Ellen, em uma das sequências finais, enquanto o marido dorme, possuída pelo medo/desejo, tenta resistir, compulsivamente, a abrir a janela do quarto para olhar para a casa em frente onde o Conde se instalara, mas não consegue.

Ao abrir a janela, ela consuma a abertura para o outro, para aquele que é seu vizinho, e, também, abre as portas para si, para sua angústia.


Do outro lado da rua, Nosferatu olha pela janela


É impossível desconsiderar, dentre tantas afinidades, a clássica cena final na qual a sombra do vampiro se projeta nas paredes, enquanto ele sobe as escadas, com o pavor sentido pelo Nathanael, de Hoffmann, toda vez que, ao se deitar, o menino ouvia os passos do homem da areia subindo as escadas em direção ao escritório do pai.

Logo na primeira página do conto de Hoffmann, Nathanael, em uma carta ao seu amigo, descreve sua situação de angústia: “uma coisa terrível aconteceu na minha vida! Pressentimentos sombrios de um destino horroroso e ameaçador se espalham sobre mim como sombras de nuvens negras, impenetráveis a qualquer aprazível raio de sol”. (O Homem da areia, em “O infamiliar”, Freud, Autêntica, 2019).

Em “Nosferatu”, o vampiro realiza seu desejo com Ellen. O destino horroroso se consumou. Mas, se em Hoffmann, Nathanael não vê nenhuma possibilidade de um raio de sol que dissipe seu sentimento, em Nosfetratu o galo canta, o sol se levanta e o vampiro desaparece. A peste que, com ele chegou, se esvai. O convidado (in)desejado, o infamiliar, por agora, se foi.


Em um poster do filme, cena clássica da subida da escada


Mas, no plano final do filme, Ellen, desfalece, o marido tenta reanimá-la em vão, enquanto o médico, na porta do quarto, abaixa a cabeça, desconsolado.

A premonição de um passante, que surge logo no início do filme, admoestando Hutter, que caminhava feliz para o trabalho, se concretiza: “não tenha pressa meu jovem amigo, ninguém escapa do próprio destino”.

Convido o leitor a saltar 50 anos, à frente, no tempo.



O filme é ”Solaris”, de ”Andrei Tarkovsky”. Kris, o protagonista, é um psiquiatra encarregado de uma missão no espaço. Já na estação espacial, ele se depara (por motivos que aqui não cabe explicar, e cinéfilos – sic – talvez dissessem ser uma heresia tentar fazê-lo) com um simulacro de sua esposa Hari, morta há tempos.

Ela encontra uma fotografia sua, na mala de Kris. Diante de um espelho, ela, revezando, olha para o espelho e para a fotografia (novamente a fotografia, a imagem) e, então, vira-se para o ex-marido e lhe diz: “Kris, esta sou eu...”.

Kris, angustiado, levanta-se da cama, e Hari lhe confessa: “sabe, eu tenho essa sensação... como se estivesse esquecido algo”. Aflita, ela pergunta: “qual é o problema comigo?”.


Hari, o desejo simulado


Nesse caso, um certo infamiliar é desencadeado em Kris, mesmo que as dúvidas que suscitam esses questionamentos, sejam proferidas pela esposa.

É ele quem realmente duvida se aquela é sua esposa, exatamente porque, essa dúvida provocada pela duplicidade da pessoa amada, faz surgir nele um fascínio, um medo e uma angústia.

Kris, projeta seu desejo e ele se realiza como vida e morte. A cada tentativa de salvá-la, ela morre novamente e, na projeção compulsiva de Kris, ela sempre reaparece, para morrer.

É a ideia de que os mortos, pela vontade onipotente dos que os amaram, podem voltar. E é, também, a ideia do duplo e da compulsão do eterno retorno, tão caras para a análise freudiana. São, como vimos no filme anterior, sentimento ancestrais, míticos, próprios da alma e, ao mesmo tempo, contemporâneos.

Contemporâneos porque “Solaris” serve como uma metáfora das nossas representações especulares, de espelhos, artefatos eletrônicos e reproduções, mas, também, de uma percepção que se desenvolve cada vez mais por simulacros, reprodução e duplicação, que tende a perder a noção do tempo, da história e, em última instância, de si mesmo. Nesse caso, Hari, como Kris, são tanto o vetor do estranho-familiar que não se (re)conhece, como seu objeto.

Nesse âmbito do contemporâneo que aludimos com “Solaris”, aqui, eu permito-me me apropriar da trilha deixada por Ernani Chaves, tradutor do texto de Freud e comentador da sua obra, em seu ensaio, “Perder-se em algo que parece plano” (em O infamiliar, autêntica, 2019).


O infamiliar


Situando o conto de Hoffman e a leitura que Freud empreende desse texto no contexto das novas mudanças tecnológicas, como a fotografia e o cinema, Chaves afirma: “tal aproximação entre o mundo do ‘infamiliar’ e as formas contemporâneas de produção de imagens – hoje levadas a um extremo que Freud e seus contemporâneos não poderiam sequer imaginar – não é descabida, se pensarmos, por exemplo, na exploração “ad infinitum”, nos filmes e nas séries de televisão, das figuras dos mortos-vivos, zumbis, vampiros e fantasmas. As formas românticas do ‘infamiliar’, longe de terem desaparecido, continuam absolutamente presentes no nosso mundo midiatizado e fascinado pelas imagens”.

Sim. Continuam presentes graças, exatamente, a esses novos aparatos técnicos, mas esses aparatos fazem parte de um espírito. Uma disposição contemporânea não só pelo grotesco ou pelo terrífico dos filmes, mas, fundamentalmente, pela possibilidade de termos de lidar com as imagens que deles irrompem e que nós fazemos questão de contemplar, ignorar e esquecer.

Quantas fotos de nós mesmos, repetidas e, principalmente, “duplicadas”, temos em nossos aparatos eletrônicos? Exibimos nosso cotidiano, nossos afazeres, família e gostos. Nessa compulsiva exibição, tratamos sempre de mostrar, mecanicamente, o que nós “seríamos” e ocultamos aquilo que nos desagrada, ou que, julgamos, ao outro irá desagradar e, então, ampliamos o filtro da projeção encantatória.

Nessas representações, talvez estejamos evitando que, não apenas uma certa realidade venha à tona, mas que a reprodução, manchada de vivência, se manifeste. Nessa dialética própria da fantasia, tendemos a ocultar ao que a nós, indelevelmente, pertence.

Na imagem, o que se quer mostrar não é a mera duplicação da vivência, mas outro duplo, o duplo que nos agrade e que não nos incomode. Compulsivamente, repetimos um eterno retorno psicótico, por isso repleto de fantasia, dessa contemporânea vivência.

No limite, a imagem de nós mesmos, sem os aparatos eletrônicos, parece, agora, guardar algo irrepresentável, demasiadamente próximo de nós e, ao mesmo tempo, inevitavelmente estranho, distante e, em certo sentido, angustiante.

Realismo demais de nós mesmos não é algo bem-vindo, é demasiadamente cru e a realidade parece ser sempre a mesma e cruel demais.

Em “Nosferatu”, o medo, a angústia, surgem do entrecruzamento de mundos que pareciam separados, a cidade e o castelo, a vida mundana e uma região na escuridão. Nas compulsões imagéticas contemporâneas, já não se pode mais separar mundos.

E não porque eles convivem em uma sinérgica harmonia, mas porque sua separação, agora, pode ser realizada tecnicamente. O mundo da casa e da rua, separados, para esse “artificial” corte, não apenas não existem mais, mas estão totalmente encavalados, sobrepostos, montados.

Estamos em outros tipos de rituais. Colocamos o monóculo de Coppola e uma certa histeria de nós se apossa. “Ajeite esse fundo, ele está destoando do conjunto da imagem!”.

Um tipo de reprodução recalcada que, com o filtro, em sépia, procura arrumar uma mesa como se fosse um banquete, sem revelar o alimento da alma desalinhado.

Em “Solaris”, Hari afirma ter a sensação de que esqueceu algo. Kris, seu esposo, sabe que ela não pode lembrar porque ela é uma simulação instantânea, que não pode reconstituir toda a experiência anteriormente vivida.

A angústia do marido advém dessa condição, mas seu sentimento pela esposa, adormecido (semelhante à possessão de Ellen pelo Vampiro), compulsivo, ignora essa realidade em prol de um átimo de amor simulacional, que diante dele pergunta: “você me ama?”.

Não seria, de certo modo, o mesmo proceder que desenvolvemos diante de nossa contemporaneidade tecnificante? Ao contemplarmos as simulações das imagens e dos dispositivos, não estaríamos diante, então, desse sentimento compulsivo que ignora o estranho, a repetição imagética e a duplicidade do Eu e do Outro?

A mulher simulacional de “Solaris”, por não ter o sentido do passado, deixa-se levar pelos momentos de prazer com seu ex-marido. Ele, também, a isso não se recusa, mas ele, ao contrário dela, por deter a experiência do que ocorreu, embora se entregue ao momento de prazer, sabe que ele é fugidio, que sob ele se encontra algo que lhe destina a morte do objeto amado e, por conseguinte, essa angústia dele não se afasta.

Poderíamos argumentar que a humanidade sempre tratou de recalcar seu infamiliar. Sim, isso é, inclusive psicanaliticamente, verdade. Mas a questão, reitero, é que a contemporaneidade levou essa atitude ao status de naturalização, talvez, “consciente”.

Naturaliza-se, agora, a repetição das imagens, a compulsão do eterno retorno pela fantasia, a vida como autômato e a dissociabilidade das vivências nas representações. Deve-se evitar – sem nem sempre conseguirmos, como sabemos – as crises de Nathanael.

Enquanto para Freud essas manifestações surgem menos frequentes na vivência, para contemporaneidade seu recalque é a condição do existir.

Se “Nosferatu” (1922) pode ser legatário do “misticismo e magia - forças obscuras às quais, desde sempre, os alemães se abandonaram com satisfação - tinham florescido em face da morte nos campos de batalha. A hecatombe de jovens precocemente ceifados pareceu alimentar a nostalgia feroz dos sobreviventes. E os fantasmas, que antes haviam povoado o romantismo alemão, se reanimavam tal como as sombras de Hades ao beberem sangue”. (Eisner 1985, citado por Canépa, “Expressionismo alemão”, 2006), nosso expressionismo contemporâneo imagético edita, na palma da mão, um rosto, ou uma paisagem, sem a “feiura” de sua realidade. Velando pelo esquecimento e adornando a dor e a morte.

Reproduzimos, duplicamos, filtramos, editamos. Se isso pode revelar uma atitude que ignora o infamiliar que nos é próprio, isso não quer dizer que esse ignorar gere sempre um tipo de desconforto, angústia, no processo de percepção de nós mesmos.

A expressão jocosa que compara duas imagens, uma sem a utilização da técnica e outra na qual ela foi utilizada (“Na internet/ Na vida real”), é um chiste sintomático desse sentimento, desse espírito. A aceitação angustiante de Kris diante da simulada esposa não nos é estranha.


Episódio da série Black mirror. Tecnologia e vivência


Talvez, nesse sentido, a grande mudança contemporânea desse aspecto seria, ao ignorar esse infamiliar que em nós habita, recalcar esses medos, essas angústias, gerando, posteriormente, um desencadeamento doloroso do Eu.

Agora, talvez, o afeto que estava em casa, acomodado, pela tecnicidade contemporânea, lá deve permanecer, e não se quer que, inesperadamente, ele torne-se um estranho do mesmo lar.

Uma infamiliaridade controlada. Mas sabemos que o infamiliar é sempre um hóspede fiel, seja em uma vila do Século XIX, seja em uma estação espacial do futuro, seja na tela para qual olhamos, compulsivamente, em busca de nós mesmos.

A plaqueta que inicia “Nosferatu” diz: “Cuidado para não dizer a palavra [Nosferatu] senão as imagens da vida se transformarão em sombras”.

Na contemporaneidade, reproduz-se e duplica-se a realidade para, em muitos casos, construirmos a sensação de que, de nossos corações imagéticos, jamais saiam, com sombras, as imagens da vida que não possam ser tecnicamente modificadas. Não podemos ter a sensação de que aquilo que deveria permanecer oculto, venha à tona.




*Esse texto teve a honrosa consultoria de Ernani Chaves.

Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia”, ed. ufpa.


Esse texto foi publicado no Diário online

*Por uma questão técnica, todas as fontes das imagens podem ser consultadas nos links nelas presentes.

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Postado por Relivaldo Pinho
20/4/2022 às 23h40

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