Billie Holiday cantando no Storyville club, Boston, em Outubro 29, 1955. Foto de Mel Levine. Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Billie_Holiday.png
No último domingo, dia 30 de abril, foi celebrado o Dia Internacional do Jazz . Aproveito a ocasião para seguir com uma lista de músicas do gênero musical, iniciada no texto anterior “Dia internacional do Jazz: 10 músicas para sentir”. Quem sabe, caro leitor, essas músicas, entre uma forte balada, ou uma música suave e terna, interrompam um pouco o dia a dia. Justamente porque precisamos seguir em frente, é que devemos sentir a música, o resto “não significa nada” (“It Don’t Mean A Thing”).
“It Don’t Mean A Thing (If It Ain’t Got That Swing)” é o título de um hino jazzístico composto por Duke Ellington e gravado em 1932. É um dos símbolos do dançante estilo “swing” e representa toda variabilidade do músico norte-americano.
Em uma cena do filme “Cotton Clube” (1984), de Francis Ford Coppola, no backstage do clube os músicos comentam que “The Duke” estará presente. Esse era o apelido de Ellington que se apresentou por vários anos no lendário clube de Nova Iorque.
A excitação com a notícia não era para menos, Ellington já era considerado um dos maiores músicos do deu tempo e tomado como um “nobre”, por sua elegância e genialidade, no mainstream do jazz.
Há muitas versões de “It Don’t Mean A Thing”. Se você quiser pegar o espírito da força do swing dessa música, ouça a gravação ao vivo de Ella Fitzgerald e Ellington no álbum “Ella and Duke at the Cote D'Azur”, de 1967. Há algo parecido na apresentação dos dois, disponível em vídeo, no Ed Sullivan Show em 1965.
Vamos baixar um pouquinho o tom e nos deixarmos levar pela maviosa voz de Dinah Washington na famosíssima “What Difference A day Makes”, de 1959. Lenta, compassada, a letra de Stanley Adams é uma declaração ao ser amado e à beleza da vida que retorna e afasta o que antes parecia lúgubre e que dissipa a chuva, a tristeza e a solidão.
É uma enorme injustiça limitar Dinha Washington a essa canção, suas interpretações são repletas de uma densidade melódica raramente vista em outras cantoras do gênero. Em “What Difference...” isso surge, mas é uma parte do que se pode deleitar com o talento de Washington.
Uma curiosidade (não gosto de curiosidades, mas aqui é uma certa justiça), a música original, quase sempre esquecida quando mencionada a versão em inglês, é “Cuando Vuelva a tu Lado”, de 1934, da compositora espanhola María Grever .
Após ouvir a versão de Dinah espero que você perceba “que diferença um dia faz” (“What Difference A day Makes”), ou como se diz em bom português, “que bom que você voltou”.
Sigamos com a pujança de Lee Morgan e perceba como o trompete é capaz de fazer variar as emoções, enfatizando-as, espaçando-as, condensando-as. É o que “Sidewinder”, de 1964, com sua marcante base de piano, nos dá no álbum de mesmo nome.
Álbum considerado umas das gravações seminais do jazz (veja, por exemplo, a explosão rítmica da faixa “Totem pole”). O disco tem a inigualável companhia de Joe Henderson no Sax e é um dos orgulhos da histórica gravadora Blue Note. O sucesso foi estrondoso à época.
Lee Morgan foi um músico prodígio não só pela idade que começou a gravar com grandes nomes como John Coltrane, mas por demonstrar as suas linhas melódicas tocadas com um perfeccionismo só comparado a outros monstros como Clifford Brown (sua grande influência).
Seguindo a sina do jazz, Morgan após um período de crise pessoal, e depois do sucesso da música de 1964, morreria aos 33 anos, vítima de um tiro disparado por sua mulher no intervalo de um show, em 1972. Mas ele continua no compasso inesquecível dessa música e no panteão do estilo com esse álbum.
Como não seguimos uma sequência de importância neste texto, Charlie Parker chega para “bagunçar” a festa. Isso mesmo, nenhum outro músico foi tão importante na modificação melódica do sax e, também, do jazz do que Parker.
Essa revolução que originou o estilo Bebop se tornará icônica na célebre música “Billie's Bounce”, de 1945. Ela possui o fraseado que ele imprime nas músicas de mesmo estilo como “Koko” (verdadeira expressão, com todas suas modificações harmônicas, da revolução do Bebop).
Quase todos conhecem a história do mitológico Parker, mas se você, sendo amante ou não de jazz, quiser ter uma versão em filme da vida do músico, veja o longa-metragem “Bird” (1988), de Clint Eastwood , uma bela representação da história das quedas e glórias de Bird (como Parker era conhecido).
Naquele momento o Bebop vinha, com um olimpo de músicos como Miles Davis (então com 19 anos), Dizzy Gillespie, Bud Powell, ocupar o lugar do ritmo Swing e das Big bands .
Na verdade, ocupar o lugar é um eufemismo, ele veio mesmo foi mudar a história da música.
E mudou. Um dos símbolos da origem dessa mudança é “Night in Tunisia” (1942), do trompetista Dizzy Gillespie .
Um dos standards mais famosos do jazz já demonstrava como ele se modificaria com a introdução de outros estilos musicais, como novas formas rítmicas, mas sem perder a beleza que marca essa forma musical e, especialmente, a calma e expansiva música de Dizzy.
Veja na versão remasterizada gravada com Charlie Parker. Essa exuberância do trompete de Gillespie, a marcação perfeita do ritmo e, ao mesmo tempo, a sua variação, em possibilidades que parecem intermináveis, são algumas das características dessa canção.
“Nigth in Tunisia” é obrigatória em toda jam session de jazz que se preze. E, se você for a um clube onde estiver ocorrendo uma e eles não a tocarem, educadamente, exija-a.
Já escrevi em outra ocasião sobre a importância de João Gilberto nessa história ( “João Gilberto: o mito”). Aqui estamos diante não apenas dos metais (instrumentos de sopro) que tanto caracterizam o jazz, mas da introdução definitiva para esse mundo de um novo ritmo no violão e na inigualável interpretação do músico brasileiro.
Além do sucesso arrebatador no mundo inteiro de “Garota de Ipanema” (uma das canções mais executadas na época e, até hoje, uma das mais regravadas), a bela “Corcovado” ( “Quiet Nights Of Quiet Stars” ), que por aqui, foi até tema de abertura de novela, traz todo o espírito da Bossa nova e conta com um toque magistral do notável saxofonista Stan Getz.
Repito aqui o que escrevi: “Nesse aspecto, sua glória internacional, está ligada à música norte-americana. O álbum "Getz /Gilberto", de 1969, foi um fenômeno em todos os sentidos.
Ele consolidou e expandiu mundialmente a bossa nova. Presente em especiais de TV, em filmes e séries, a música de espírito carioca, se tornaria uma música-mundo.
O pai da bossa nova estaria inserido em um circuito musical inaudito para qualquer outro músico brasileiro, com exceção, à época, e graças à bossa, de Tom Jobim”.
Agora, o exibido (quase sempre com todos os motivos para isso) Miles Davis chega com os óculos escuros, enfunando o peito e dizendo pra todo mundo como se deve conduzir a harmonia.
Davis gera polêmica até hoje, evidentemente. Uns apontam a performance de “Kind of blue” como o seu melhor, outros não se dobram e bradam o icônico “Round About Midnight”, de 1957.
É nesse que temos a música “Round Midnight”, uma das mais executadas quando o tema é noite chuvosa, ruas esfumaçadas, pessoas solitárias e neon piscando nas faixadas de bares.
A música é do homem de dedos que pareciam baquetas, o aclamado pianista Thelonius Monk . Mas entrou mesmo para a galeria das versões incomparáveis, com Miles.
Nela, uma introdução do trompete dominando o espaço, no estilo de Davis, como um som domado, misterioso, introvertido e solitário. Sim, a alusão é a uma figura que está na solidão da noite, da cidade, de si mesma.
Vejam nessa preciosidade que é a versão ao vivo em vídeo com o Quinteto de Miles, em 1967, em Estocolmo.
Aí estão alguns dos maiores músicos de jazz de todos os tempos, variando o tema, com Miles retomando-o com uma finalização quase abrupta após as experiências harmônicas de seus companheiros.
E já que falamos dele, não há como deixar de lado o homem que, para muitos, virou de cabeça para baixo o piano no jazz, Herbie Hancock , o embaixador do Dia Internacional do Jazz e, certamente, um dos mais prolíficos músicos do estilo.
Para se ter uma ideia, alguns connaisseurs, como Vinicius Mesquita, afirmam que sem ele, talvez, o “Acid jazz” (uma fusão do jazz com estilos como o funk, a soul music e o disco), ou até mesmo o Hip hop não teriam existido.
Quer ter uma noção disso? Escute o V.S.O.P (Very Especial Old Product) que cito aqui como forma de, tanto homenagear os membros desse grupo, os mesmos do Quinteto de Miles, com exceção de Freddie Hubbard (trompete), como para percebermos como o estilo mudou no decorrer do tempo e, com ele, os estilos dos músicos.
Essas mudanças de época, de tom, de sentido do jazz estão plasmadas, por exemplo, em “Para Oriente” (1979) do álbum “Live Under the Sky”.
Aí estão os resultados das várias experiências do jazz com outras possibilidades estilísticas, mas notem como o piano pulsante de Hancock salta para fora para acentuar sua dominância da cadência na música. É o embaixador do jazz em seu estado puro.
Pureza é tudo que não mais existe na versão de “Take ‘a’ train” do elogiadíssimo álbum “Study in Brown” (1955) do já mencionado trompetista Clifford Brown e do baterista Max Roach .
Não existe pureza porque a música é de Duke Ellington e, originalmente, é um swing que imita a partida de um trem. Há um vídeo de Ellington do filme “Reveille with Beverly” (1943) no qual sua banda surge dentro de um vagão representando a ideia da música.
Mas na versão de Brown e Roach o trem (a música) não só parece ir mais rápido, mas, principalmente, sua velocidade já não é para dançar, e sim para escutar as possibilidades que o Hard bop trouxe com a maior aceleração dos andamentos que o bebop, proporcionando uma intensidade que terá na assinatura dessa música e desse álbum uma das melhores expressões.
O trem está no começo e no final da canção, mas ele não embala mais as pessoas como em Duke, ele as desperta, sacudindo-as.
Digamos que seja final do dia e você agora pretende estar contemplativo. E, se for para ouvir a canção seguinte, deve. Exatamente porque trata-se, agora, da representação de um sublime, mas de um sublime diferente.
No texto anterior, mencionei Billie Holiday , nesse, a deixarei com vocês na interpretação de uma canção que, não por acaso, é, e deve, ser muito mais do que isso. Sim, senhoras e senhores, trata-se de “Strange Fruit”.
Como mencionei anteriormente ( “Billie Holiday, Strange Fruit e 100 anos do Jazz”), “a música surgiu de um poema de Abel Meeropol sobre os linchamentos de negros que ocorriam nos Estados Unidos após a Guerra Civil. A inspiração teria vindo de uma fotografia de uma dessas atrocidades ocorrida em 1930, em Marion, Indiana. Esse é o tema de Strange Fruit.
Nenhuma versão se aproxima do que Billie fez. Há um vídeo de Holiday, de 1959, em Londres. Vejam. Ali, Billie, em seu derradeiro momento, encarna a música e a música a define.
Ali está, não importa se em sua fase de decadência ou não, diz David Margolick em seu fabuloso livro ‘Strange Fruit: Billie Holiday e a biografia de uma canção’, ‘a experiência de ouvir e ver Billie Holiday cantando Strange Fruit: os olhos fechados, a cabeça jogada para trás, a gardênia de sempre atrás da orelha, o batom rubi realçando a pele escura, os dedos estalando de leve, as mãos segurando o microfone como se fosse uma xícara de chá’”.
Como se sabe, o jazz está profundamente ligado a vários contextos históricos decisivos. Espero que quando leia este texto possa aproveitar o máximo possível o que o estilo e as músicas podem proporcionar, e possa fruir, verdadeiramente, os sentidos das canções. Se isto for atingido, o resto “não significa nada” (“It Don’t Mean A Thing”).
É tarde de 31 de dezembro de 2022. Em uma loja de conveniência, em um dos cruzamentos mais movimentados de Belém , uma senhora sozinha, de aproximadamente 80 anos, pergunta ao balconista se eles vão abrir no dia seguinte. Ele diz que sim, “funcionaremos normalmente”. Ela, então, agradece e caminha lentamente, provavelmente, de volta para casa. Eu não a conheço, mas vou chamá-la de “Andreia” (coragem, em grego).
A dois quarteirões, próximos dali, um grupo de pessoas, em sua maioria idosos, reúne-se em frente a uma casa, como faz todos os dias. As calçadas largas da rua, a aparente tranquilidade e um hospital que fica em frente devem promover, ainda mais, os olhares e as conversas, e favorecerem a manutenção desse hábito, já residual na grande cidade.
Homem ao final da tarde. Foto: Relivaldo Pinho
A cidade parece proporcionar formas de convívio diferentes. Pessoas sozinhas, não necessariamente solitárias, e pessoas que em grupo parecem dividir os mesmos interesses.
Belém, nesse sentido, no aspecto de reunir pessoas, é uma comunidade. Mas poderia, ainda, a cidade ser considerada uma comunidade política?
Aquela em que a sua principal finalidade (estou transpondo, com certa indisciplina, a ideia de cidade-estado para uma ideia moderna de cidade) é promover um bem, lembrando, distantemente, a definição de Aristóteles , no famosíssimo início da obra “Política”?
Busto de Aristóteles, do escultor grego Lysippos, ao lado de uma cópia do livro Ética a Nicômaco do século XIV. Fonte: https://www.netmundi.org/filosofia/2017/aristoteles-cientista-da-antiguidade/
A concepção naturalista da cidade (cidade-estado, pólis ) aristotélica, como se sabe, propõe que os indivíduos se unem porque a natureza assim os impele, para sua própria sobrevivência e permanência.
Não apenas isso, a cidade precede o indivíduo, já que, para o grego, a parte apenas se define pelo todo. É o viver na coletividade política (na cidade-pólis) que define o homem.
Daí que para Aristóteles viver na cidade-estado não é apenas viver em conjunto, mas viver bem. Isso significa que a natureza da cidade, do estado, como nós ainda adotamos, é a promoção do bem comum, essa é sua definição.
O indivíduo, que tem o dom da fala, ao contrário dos outros animais, e que por isso detém o poder de escolher e julgar, pode, investido de justiça e moral, criar uma coletividade voltada para aquilo que o define, ser um animal político ( “zoón politikon”).
Quase todos conhecemos essas argumentações, aqui abruptamente resumidas, do filósofo grego, exatamente porque, dentre outras coisas, elas fundamentaram grande parte da compreensão da política e do estado por séculos.
Belém não é uma “pólis”, evidentemente, mas o espírito do viver em comum (a analogia aqui é mais inspiradora que comparativa) ainda nela habita.
Nessa múltipla urbe, uma senhora entra em uma loja buscando manter seu hábito; um grupo de pessoas, pelo mesmo motivo, junta-se para conversar.
Ambos, de certo modo, desafiam a ideia de uma cidade, como Belém, que em quase tudo parece não atender ao chamado do viver em conjunto, que dela se participe, realizando a sua finalidade, a finalidade do cidadão (o conceito de cidadão da Grécia antiga tinha relação com a participação política direta ou indiretamente, mas nem todos, como se sabe, eram considerados cidadãos) de participar do bem comum.
Mas, aqui, não é Belém ou o ente estatal somente a proverem esse comportamento, esse hábito, esse bem.
Planos citadinos I. Foto: Relivaldo Pinho
De certo modo, há ainda, não no sentido estritamente aristotélico, uma cidade que permanece apesar da fragmentação do ambiente citadino e mesmo com a inequívoca ausência de um estado enquanto poder.
A atitude da senhora e do grupo da calçada parecem exclusivamente individuais, mas não são. São comportamentos de um sentido maior, sentidos que permanecem em uma grande cidade como Belém.
No caminhar sozinha de casa para a loja, a senhora queria se assegurar que, mesmo em uma data incomum, ela iria conseguir seu pão, ou doce, onde sempre compra.
Há um hábito de sair de casa e se comunicar com a cidade, há uma tradição que, sendo assegurada, satisfaz, para a metódica cidadã, a sua doméstica riqueza, sua vida.
Os que ainda permanecem nas frentes de suas casas desejam apenas manter-se na calçada, essa extensão da casa que se comunica com a rua, sendo uma interseção ainda possível entre as separadoras grades de janelas e portas e uma certa necessidade de se integrar, com os outros, ao espaço citadino.
Se a noção de cidadão na antiguidade grega se liga à ideia de participação política na cidade-estado, na contemporânea cidade, essa noção parece cada vez mais distante.
Talvez a distância entre o indivíduo e o estado não possam suscitar essa direta participação como em momentos da antiguidade helênica.
Ângulos. Foto: Relivaldo Pinho
Não só porque a participação representativa indireta na cidade, no estado ocidental, se tornou uma das formas mais aceitas há muitos séculos. Mas, possivelmente, porque, com o distanciamento do aparato burocrático político, restou a uma parte dos cidadãos gritar em frente à TV, enraivecer-se diante de uma mensagem no celular, comprar um pão, ou ficar em frente de sua casa.
Você, estimado leitor, pode estar pensando que a senhora da conveniência poderia pedir seu produto pelo aplicativo, e que, por outro aplicativo, os contempladores da calçada poderiam manter suas conversas.
Sim, poderiam, e não há motivos para questionar que ambos os comportamentos se complementem hoje.
Mas, talvez, exista um elã que faça alguém sair de casa, congraçar-se com aquele caminho da cidade, e falar diretamente com alguém, mesmo que seja para fazer uma pergunta simples.
Haveria um mesmo motivo no ato de se estender para além dos quartos, salas e telas de celular e olhar para os outros e, principalmente, olhar para os outros e a cidade.
Pode parecer romântico, mas é possível que haja um certo cerne irremovível de nossa atitude gregária, de participação da cidade, que ainda, para lembrarmos Aristóteles, de algum modo nos defina – “zoón politikon”.
Na Belém do amanhã, espero passar novamente pela rua dos que ficam sentados na calçada e espero, antes, encontrar dona Andreia na fila do pão.
Meu pai sempre dizia gostar mais de Garrincha do que de Pelé . Acho que ele gostava do tom zombeteiro do jogador, dele parecer gente comum e, mais ainda, acho que, no fundo, ele gostava mesmo era porque o craque, como ele, criava passarinhos.
Se Garrincha para ele sempre foi algo muito próximo, para mim Pelé encarnava em tudo a ideia do mito inalcançável.
Todos nós brasileiros, de certo modo, assim crescemos ouvindo sobre o mito, o rei.
Em casa, como em milhões de outros lugares, alguns sempre realizavam essa comparação entre o Mané e Pelé.
Em geral, em defesa do ídolo do Botafogo , gritava-se, como uma torcida, sobre a copa de 1962, vencida pelo anjo de pernas tortas.
Mas, ao lembrar de 1970, quase todos se curvavam ao passe mediúnico para Carlos Alberto, ou à cabeçada que, como um passarinho que bate asas, Pelé desferiu contra a Itália.
Quando crescemos, pós geração de 70, a TV nos fez o favor de trazer as imagens dos gols, dos dribles, do sublime do rei.
Não havia como passar incólume àquilo. Se Garrincha, para muitos injustiçado, permaneceria, merecidamente, no imaginário romântico do futebol, Pelé parecia-nos sempre presente, trazido, também merecidamente, pela imagem.
Pode parecer frustrante que nossa geração apenas pôde vê-lo atuar dessa forma, e não nos esqueçamos que os mais velhos sempre se vangloriaram de ter visto o camisa 10 em sua época, no seu auge.
Mas não sei quantas vezes vi e comentei com amigos o lance, visto em tape (assim se chamavam imagens do passado), o drible que Pelé esculpiu sobre o goleiro uruguaio Mazurkiewicz.
É o famoso lance do drible da vaca sem Pelé tocar na bola. Mas, ao ser chutada, a bola não entra. Teria algo insondável atuado ali? Uma força desconhecida e não percebida, ou um sopro inefável?
Certa vez comecei um debate com meu amigo, o jornalista Marcelo Vieira, sobre um gol que Neymar havia feito pelo Barcelona, em 2015, sobre o Villareal .
No lance, Neymar recebe uma bola cruzada com força, imediatamente dá um lençol de costas no marcador e, sem deixar a bola cair, fulmina o gol.
O que estava em jogo na conversa não era, evidentemente, se os lances eram iguais, mas o processo (palavra feia para falar de futebol).
Conversávamos como, em ambos os lances, o movimento pôde ser realizado como em um momento quântico da física ou da ficção nos quais tempos se fundem, olhando-se um futuro enquanto ele acontece.
Essa previsibilidade imprevisível está realizada principalmente no lance de 70. Exatamente porque Pelé foi o símbolo da desordem no universo retangular dos gramados, da fantasia incrédula dos olhares, da majestade do sublime sobre o óbvio.
Parece saudosismo. E é. A fantasia é um tipo de sensação que se sobrepõe sempre a um presente, a um momento que não se assemelha ao anterior, quase sempre, sublime.
Li em algum lugar que parece quase impossível, por meios científicos conhecidos, explicar com total exatidão como um pássaro retorna para os mesmos lugares durante as migrações. Diz-se ser algo magnético, quântico.
Talvez também por isso os pássaros estavam perto de Mané Garrincha. Ambos, traçavam caminhos insondáveis.
A Seleção Brasileira antes do jogo contra o Peru. Em pé, da esquerda para a direita: Carlos Alberto, Brito, Piazza, Félix, Clodoaldo e Marco Antônio; agachados: Jairzinho, Gérson, Tostão, Pelé e Rivellino. Fonte: https://pt.wikipedia.org/
Pelé, também. Havia um "inexplicável" avançar que o guiava, como uma bússola, em campo. O que para os "russos" eram incontroláveis movimentos, para ele, era o magnetismo de sua natureza.
Mas o rei, ao contrário de Garrincha, pôde atravessar a glória e mantê-la em vida, no ar, por mais tempo. E, depois, pairar sobre ela com a recompensa daqueles que cumpriram suas jornadas.
No panteão do futebol, em sua última sublime jornada, sua majestade, em um impossível salto, deve estar passando ao lado do Mané que, ao virar para um lado, vai para o outro, enganando o tempo e o espaço, dando, em um passe para o rei, as asas da eternidade.
Por abordar, ao mesmo tempo com sutiliza e crueza, a temática da obesidade, “A baleia” ("The Whale"), filme do final de 2022, de Darren Aronofsky, estrelado por Brendan Fraser, merece ser visto.
Charlie (Fraser) é um professor que ministra aulas online para jovens postulantes a escritores. Ele se tornou um homem obeso e recluso depois da perda de seu companheiro que tirou a própria vida.
Antes de mergulhar em sua melancolia pela perda do amor, Charlie abandonou sua mulher e a filha pequena. É a filha, uma adolescente, traumatizada pelo abandono do pai, que serve como ponte para sua busca para a redenção.
Como se pode ver, não é apenas a temática da obesidade que está em jogo no longa. Estão também a paixão, a perda do indivíduo amado e a desestruturação familiar.
Uma das artes do filme. Fonte: https://media.fstatic.com
Principalmente está nele algo que me interessa filosoficamente, a ideia, enfocada no filme, de que existem indivíduos que não querem salvar a si mesmos, mas buscam um tipo de salvação no que ainda podem fazer por outros.
Não é nem apenas a ideia de um mergulho sem volta, nem a ideia de que esse mergulho será menos doloroso se dele resultar algo bom.
Está entre essas duas coisas, e essa é uma das forças do filme, tratar dessas temáticas no limiar entre a dor, a aceitação de si, a compaixão para com o outro e o mergulho para o fim.
A representação desses temas em “A baleia” está quase sempre, apesar de um efeito estético pouco original no fim do filme, em uma fina linha d'água, equilibrando-se. Linha que facilmente no cinema, como Hollywood Hollywood já demonstrou, pode cair no estereótipo e na pieguice.
Sim, é um tema difícil que o espaço aqui não permite aprofundamento. Mas parte desse motivo temático está representado nas figuras dos personagens que tentam “salvar” o protagonista.
Charlie, sua filha e amiga. Fonte: https://www.diariocinema.com.br/
Como o garoto de outra cidade, que fugiu da casa dos pais e que vai na porta de Charlie oferecer uma salvação religiosa, e que o descrente professor repele.
Ou sua amiga, uma enfermeira que está sempre ao seu lado e tenta ajudá-lo. Ele aceita os curativos momentâneos, mas se nega a procurar estancar a dor no peito que o impele a essa pulsão de vida e morte.
Charlie a toda hora não só rechaça a ideia de salvação pela religião e pela medicina, como mergulha “propositalmente” em sua autopunição através da compulsão alimentar.
Dor sentida por fora, pelo corpo que sofre, e que, na verdade, vem, pela perda, de dentro.
A salvação daquele homem, que não consegue andar sem um andador, é fazer a filha caminhar por águas menos turvas que a sua.
Charlie e a filha. Fonte: https://www.lascimmiapensa.com/
Ele deixa uma herança em dinheiro para ela, mas, para ele, tão importante quanto isso, é reconhecer que ela, através de ações valorosas e de seu talento para escrever, possa caminhar com as próprias pernas.
Sim, é um tema difícil, mas, como nos demonstra o filme, tão difícil quanto caminhar é permanecer em pé abdicando de si mesmo e, apesar disso, vislumbrar (para si e em alguém) uma fina linha d'água de esperança, ou uma linha escrita como redenção.
Não, não é um texto sobre fofoca, mas poderia ser. Não sei se já viram o teaser do filme "Barbie", , a ser lançado em 2023. No anúncio, a boneca mais famosa do mundo faz uma paródia/pastiche do clássico "2001 - uma odisseia no espaço" (1968), do diretor norte-americano Stanley Kubrick.
As reações foram as mais diversas e revelam muito do espírito cultural contemporâneo.
Sites e comentadores disseram ser "épico", "fantástico", "genial", outros viram "homenagem", "referência", "imitação".
Mas não paremos por aí. Alguns foram além do vídeo e comentaram que acharam o filme de Kubrick chato e, para não dizer que se está sem embasamento, incluíram "Cidadão Kane" (1941), um filme de um tal de Orson Wells, na mesma categoria.
A boneca gigante, agora humana na figura de Margot Robbie , que surge no filme é a síntese daquilo que as culturas pop e pós-moderna, fazem de "melhor".
Fonte: reprodução
É claro que pode parecer apenas uma brincadeira com um clássico, mas, não nos enganemos, há uma estratégia nesse procedimento.
Não sejamos "apocalípticos", nem "integrados". A cultura contemporânea tem como uma das características esse reaproveitamento de suas próprias fontes, imagens, conteúdos.
Esse reaproveitamento se dá como citação de conteúdos presentes (essa é a palavra) em nosso imaginário, atualizando-os, citando-os, necessariamente, presentificando-os (aí está a justificativa daquela palavra).
Fonte reprodução
Esses procedimentos são inerentes a essa cultura, cada vez mais imagética, cada vez mais diante de nossos olhos e cada vez mais, estruturalmente (palavra demasiadamente clássica), fugaz.
Parte dessa fugacidade tende a criar uma percepção do mundo atual que se vê sempre em busca de um obsoletismo da imagem e, ao mesmo tempo, que busca, no palácio das memórias da literatura, da televisão e do cinema do Século 20 algo em que, quando necessário, se agarrar.
É uma nostalgia às avessas. Ao mesmo tempo que rememora um passado exemplar (um clássico) faz dele uma montagem reconhecível, como troça e como promoção. Não o renega, pelo contrário, se abraça a ele, como Andy Warhol "abraça" Marilyn.
Daí compreendermos (e, sejamos sinceros, bote compreensão nisso) que Kubrick e Wells, para essa nova forma de percepção e consumo, pareçam chatos. E entendermos que as cores de "Barbie", que vão cintilar, explodir a tela ano que vem, pareçam tão esperadas.
O próprio twitter oficial que representa Kubrick, compreendendo o processo produtivo atual, afirmou, na frase clássica, "dizem que a imitação é a forma mais sincera de homenagem. Até a Barbie é fã do Kubrick".
Não façamos, sobre o teaser, uma grita de puristas (apocalípticos), não adiantará; nem brademos a sua genialidade (integrados), será inútil.
Os dois polos, na definição de Dwight Macdonald , da inventividade do highbrow (alta cultura) e da diluição do lowbrow (cultura de massa) já, há muito, se encontram, se entrecruzam, se relacionam.
A relação entre Barbie e Kubrick também pode ser compreendida através de uma expressão atual, "shippar", até bem pouco tempo uma moda (nada mais fugaz) nas redes sociais.
A expressão derivaria da palavra "relationship" (relacionamento) que era utilizada por fazedores de "fan fiction", narrativas ficcionais feitas por fãs que fantasiavam e desejavam nessas histórias relacionamentos, muitas vezes improváveis, entre personagens, por exemplo, do cinema, já conhecidos.
They say imitation is the sincerest form of flattery!
A expressão "shippar" é o anseio ou a criação de uniões, prováveis ou não, e pelas quais se torce, se vibra.
O cortejar da boneca (do filme) sobre o diretor (seu cinema), poderia ser pensado desse modo. Ele cria um tipo de relação aparentemente incomum, mas ela é resolvida (dissolvida?) pelas estratégias do mercado atual das imagens.
Não seria à toa que os elogios a essa fusão highbrow / lowbrow são mais efusivos que suas críticas.
Poderia parecer improvável que "2001" se cruzasse com um filme sobre uma boneca. Mas olhemos além dos sintomas e talvez percebamos que isso faz parte de nossa odisseia da ficção contemporânea. É, se quisermos, um epifenômeno de nossa condição.
O monólito insondável do filme de 1968, que surge em vários lugares e que provoca as mais diversas indagações, pode agora ser, sem problema, uma loira totalmente sondável, em traje de praia.
O monólito de 2001. Fonte: reprodução
Pegue uma pipoca, reconheça a referência, sorria ou se enraiveça com ela. Não importa. O teaser anuncia que a boneca e o diretor não são uma "fan fiction". Não há mais pedras no caminho.
Para alguns, Kubrick está se revirando no túmulo; para outros, entre ele e Barbie há uma relação.
Poucos filmes ficaram no imaginário do Século 20 como “Casablanca” (1942). Comumente, atribui-se esse feito à história de amor que ele conta, adornada pela famosíssima música “As Time Goes By”. Canção que aqueles que amam o filme, agora, devem estar cantarolando.
É verdade que grande parte do sucesso do filme também está em seu cenário político, a II Guerra Mundial , e, por ser realizado nesse período, aumenta ainda mais o motivo para que a obra de Michael Curtiz (para alguns, um dos mais injustiçados diretores de todos os tempos) permaneça na história.
Sempre teremos “Casablanca”, claro, mas sempre teremos política, paixão e poder. A história e o cinema sempre demonstraram isso.
Frame do Filme
Esses três elementos formam o núcleo do filme que mostra a intriga do amor de Rick ( Humphey Bogart ) e Ilsa ( Ingrid Bergman ), dentro da intriga “menor”, a guerra entre nazistas e aliados, reproduzida em miniatura no clube noturno Rick’s Café.
É no clube do norte-americano Rick que se localizam os eventos principais, porque é lá que estão soldados, mulheres, comerciantes, políticos, todos em busca de seus interesses, e um dos maiores desses interesses é escapar da cidade marroquina.
Escapar não só porque Hitler avançava em muitas frentes, mas, porque, Casablanca, sob o domínio francês até então, após a invasão da França pela Alemanha, a partir de 1940, estaria sob o Governo de Vichy , um governo submetido aos nazistas.
Esse cenário poderia ser, por si só, um conjunto perfeito para um filme de sucesso. Mas, Roger Ebert , um dos maiores críticos de cinema de todos os tempos, vencedor do Pulitzer, dá, em um texto de 1996, como já se disse, uma das chaves para o sucesso dessa obra.
Ebert diz que o que diferencia Casablanca de um dos fundamentos do cinema, a identificação, é que no filme de 1942, os personagens apaixonados de Rick e Ilsa têm tudo para seguir a trajetória do par romântico e do final feliz. Mas essa promessa e sua realização, com a qual nos projetamos e identificamos, não se cumpre, em prol de um valor maior.
Frame do filme
O casal se reencontra no Rick’s Café após um período intenso de amor em Paris e uma separação dolorosa, provocada pelos acontecimentos da Guerra. Mas ela surge com outro homem, Victor Laszlo (Paul Henreid), na verdade, seu marido e um dos líderes da resistência aos alemães e por quem, mesmo antes de Paris, ela devotava admiração.
Rick foi um ex-comerciante de armas para os inimigos dos nazistas e ex-combatente contra os nazis em guerras anteriores. Depois da perda do amor, torna-se, como a sina do amante ferido (ele acredita que Ilsa o abandonou, em uma fuga, na estação de trem em Paris), cinicamente niilista e diz não acreditar mais em política e ser apenas o dono de um clube.
A famosa cena da música que marca o filme, em que Rick se depara, inesperadamente, com Ilsa em seu clube, na qual a câmera, em close, mostra o espanto dele e o rosto, onde lágrimas suavemente surgem resplandecente, dela, une um passado doloroso dentro de um presente, em guerra, que se arruína.
A célebre frase de Ilsa, ainda em Paris, “o mundo todo desmoronando e escolhemos essa hora para nos apaixonar”, talvez, faça ainda mais sentido, naquele momento de reencontro.
A identificação pelo espectador com essa paixão é inevitável. Mas, como afirma Ebert, somente ela não daria, especialmente no final do filme, a noção do valor que a escolha política de Rick, a escolha de deixar Ilsa seguir com Laszlo, dá ao abdicar de sua paixão.
Ao contrário do que possa parecer, a inexistência do final feliz clássico em favor de uma razão maior – sim, Rick diz, no diálogo final, não ser muito bom em ser nobre – potencializa, pelo contexto histórico e político, pelo poder repressor e pela tentativa de um poder de libertação, essa força da identificação e da projeção.
É ele quem, na cena mais explicitamente política, porque simula, entre cânticos, o conflito em curso, autoriza a Marselhesa, o hino francês, a ser tocado contra os brados dos soldados nazistas, em seu clube. Há em Rick uma nobreza, como quase em tudo no filme, dissimulada.
Frame do filme
Lá já está esse processo de identificação (sem falarmos no poder, no charme e no aspecto sarcástico dos protagonistas) que nos faz querermos ser, ao som de “As Time Goes By”, tocada ao piano por Sam ( Dooley Wilson ), Rick e Ilsa.
Mas nos atinge mais ainda porque nessa obra, que ainda permanecerá por muito tempo, como na vida e no cinema, sempre teremos política, paixão e poder.
Essas dimensões estão sintetizadas em três momentos especiais. No final, quando o Capitão Renault (Claude Rains) joga, com desprezo, uma garrafa com a marca Vichy no lixo, simbolizando, talvez dissimuladamente, o início do fim de sua subserviência com aquele poder.
E, em seguida, quando ele, na cena final, caminha amigavelmente com Rick, o que profetiza (lembremos, o filme é de 1942), ironicamente (porque o capitão é, como Vichy, um colaboracionista dos nazis) a libertação da França pelos aliados, em 1944.
Política, paixão e poder. Esses aspectos do humano e do filme, já estão presentes na cena na qual, na iminência da invasão de Paris, Ilsa e Rick vão à janela e ela ouve um estrondo. Então ela pergunta, “Isso foi um canhão? Ou é meu coração batendo?”
Você lê o livro de contos, “Eu já morri” (2022), de Edyr Augusto, imaginando, eu já disse isso sobre outro livro, que ele está em sua janela olhando o que acontece lá embaixo e, ao mesmo tempo, debruçado sobre os cadernos de jornais de um mundo submerso em violência, sexo, amor, morte e irracionalidade.
De anjos natimortos, rufiões românticos, chacinas, até ameaças terroristas, toda a sorte de violência está exposta nessas linhas. São mundos de fronteiras e zonas. “Quem quer saber? A Zona não é para qualquer um”.
Se os caminhos da Rua Riachuelo e suas imediações são um dos principais trajetos desse livro, eles não são únicos e, até quando Augusto sai da Amazônia, a violência permanece, mesmo em uma cidade do outro lado do mundo, nas mesmas linhas.
Mundos de zonas físicas, (a “Zona da rua Riachuelo”, por exemplo), espaços da cidade e fronteiras do espírito. Mundos unidos entre o desejo e o instinto, entre afetos frágeis e algum devaneio de salvação, entre culturas em conflito e o amor, entre almas arruinadas e a vã busca de uma centelha de redenção.
”Eros e Psique” (17871793), de Antonio Canova. Os caminhos ”desviantes” do amor. Fonte: https://hdelartebach.wordpress.com/2017/02/15/escultura-de-eros-y-psique/
O primeiro conto do livro, “Anjo”, nos dá uma demonstração desse vitral composto em múltiplas vivências. Ele traz a temática da prostituição na “periferia” (Bairro da Matinha, descreve o autor), relacionando-a com o sentimento que muitos adolescentes nutririam por essas mulheres que pareceriam mais livres e imponentes e, por isso mesmo, mais misteriosas e desejadas.
É o sexo e sua descoberta, uma temática que é central dessa literatura, o tema que se mistura a esse incontornável mundo de proibição e desejo, no qual, nessa paisagem de barracos, se erguem verdadeiras barreiras entre excitação e indecisão.
Barreiras em madeira e sentimento, representadas na figura do garoto apaixonado por sua musa decadente e que, nela, se perde. Sentimento condensado na verossimilhança da descrição do ambiente “periférico” e na bela frase do autor, dita pelo menino, “mergulhei naquela mulher Amazônia sem passagem de volta”.
É da mesma cepa, um dos mais bem construídos contos do livro, “Caraxué”. Firmino, um guardador de carro das imediações da Riachuelo, evangélico e casado, se apaixona por uma prostituta, Dodora. O desejo é uma busca e é, também, alguma (in)completude de si.
Mas a busca, nesse mundo, nessa literatura, pode ser apenas um trajeto momentâneo para a queda. Rufião desiludido, apaixonado, em trono, destronado. “Caraxué”.
Bairro do Comércio em Belém, um dos cenários do livro. Foto: Angelo Cavalcante
Alguns elementos recorrentes da literatura de Edyr Augusto retornam nesse livro e, novamente, parece que estamos lendo alguma história que ouvimos de algum familiar, de um amigo, de um motorista de aplicativo que comentam as notícias do dia. Uma história soprada em nossos ouvidos e captada pela literatura.
É o caso do conto “Fale, garoto”. Leo é um ex-bon vivant que luta para não retornar à vida de festas, drogas e mulheres. Leo se debate entre ter uma vida rotineira e o desejo que o empurra para, talvez, o que ele realmente é.
Nesse retorno aos temas, locais e zonas do escritor paraense, é simbólico o conto “Motel Firenze”. Em um motel da cidade, um crime ocorre. Uma família da elite regional tenta encobrir o ocorrido. Um “playboy” está no centro dos fatos. A polícia e os governantes são corruptos e a imprensa escala sua busca diária pelo grotesco.
Em os “Éguas” (1998, em reprodução ao lado), os motéis já entrariam como uma das zonas recorrentes nessa escrita, exatamente por representarem o rompimento de fronteiras, nesse lugar onde as proibições se apagam e não se está mais “em casa”. Desejo e violência têm, aí, na literatura, um lugar para chamar de seu.
É um dos livros mais experimentais de Edyr Augusto e é, também, um dos livros mais presos à realidade mais visível. Realidades em lugares diferentes, com a violência matizada dentro de cada experiência das pessoas e suas cidades. São mundos, zonas, fronteiras.
Esse primeiro experimento, mais ousado esteticamente, está em “O amor entre nós”. Dois belenenses que não se conhecem, uma de descendência judaica e, outro, árabe, viajam para Jerusalém.
Eles se envolvem amorosamente com dois nativos de crenças opostas e, ao mesmo tempo, são engolfados pelo conflito árabe-israelense. A dúvida entre seguir suas crenças, o terrorismo e o amor, é a parte principal desse cenário.
Mas esse cenário, nesse que é o conto mais distante da Amazônia de Augusto, é contextualizado pelo autor com várias referências às crenças que atravessam os personagens e exibem seus pontos de vistas, seus prejulgamentos, suas leis e sua impensável união.
O escritor não nos dá uma análise do conflito, ele nos coloca diante de dilemas culturais, sociais e pessoais. Há história, mas há, fundamentalmente, literatura.
A frase, dita pelos belenenses que não entendem aqueles radicalismos daquelas terras distantes, “em Belém não tem disso, tem? Não. Não tem. Mas aqui...”, é a síntese desse mundo de zona de guerra e de - permitam-me a expressão - fronteira do amor. Em meio ao ódio, à dissimulação e ao caos.
O segundo experimento nesse livro não é tão novo assim. Na verdade, o contista, como se sabe, tem, na aproximação da sua literatura com a realidade amazônica, um dos seus fundamentos.
Livro de contos do autor que tem a Amazônia urbana como tema. Fonte: reprodução
Mas ele fará isso de modo muito mais documental - talvez, como em nenhum momento anterior - em dois contos, “O nosso amor não pode morrer” e o conto que dá título ao livro, “Eu já morri”.
O primeiro, faz alusão à chacina ocorrida no Bairro do Guamá, em Belém do Pará, em 2019, na qual, em um bar, onze pessoas foram mortas. Amplamente coberto pela imprensa, o autor transfigura o fato já no seu título, fazendo uma referência a uma famosa música do cancioneiro paraense (“Ao pôr do sol”), transfiguração que se seguirá nos nomes dos personagens, no enredo e na narração. No pôr do sol de Augusto, “na vizinhança, ninguém viu, ninguém ouviu nada. Era domingo, estavam dormindo. Às duas da tarde? Foi. A sesta”.
No segundo conto, a alusão é a outro famoso caso ocorrido no Estado do Pará, na cidade de Abaetetuba, no qual uma menor foi presa em uma cela com mais de 20 homens. Lá, por 26 dias, ela fora brutalmente violentada. No conto, ela se chama Janalice, mesmo nome da personagem de “Pssica” (2015) que sofre, também, vários tipos de violência.
Edyr Augusto repete, em muitos casos, os personagens em seus livros. Sejam os mesmos personagens, ou que se assemelham. Mas, nesse caso, talvez, ao criar a aproximação entre a menor de Abaetetuba e a Janalice de “Pssica”, ele queira nos dizer, pela semelhança dos acontecimentos, que ambas são parte de um mesmo mundo, de uma mesma decrepitude, de um mesmo roteiro.
Edyr Augusto homenageado na Feira Pan-Amazônica do livro de 2022. Foto: Maíra Belfort
Recentemente, o autor disse que existem antigos personagens que ficam atrás dele, em sua consciência, como fantasmas, a quererem mais um lugar nos seus livros. Eles diriam algo como, “olhe para mim, não esqueça de mim”. Nesse livro, eles voltam.
Mas não estão sozinhos. Vários novos personagens surgem. Com esses recém-chegados, a violência dará as mãos ao sexo; a desilusão se cobrirá de esperança e, resignadamente, cairá. Como no conto, de mesmo título, “Todos têm seu dia”. Eles deverão, no futuro, assombrar o escritor.
Se essas figuras, na realidade e no jornalismo, parecem sempre ser esquecidas, como fantasmas, cabe à literatura trazê-las para novos mundos, novas fronteiras, novas zonas. “Quem quer saber? A Zona não é para qualquer um”.
“Baby, the rain must fall” (“Baby, a chuva deve cair”) é o famoso título da crítica de Pauline Kael ao filme “Blade Runner”, de 1982. Kael, uma das maiores críticas de cinema, foi implacável. Para o bem, mas, principalmente, para o mal. Não é juízo de valor, é o papel da crítica. Ok, é juízo de valor.
Mas um juízo que se baseava no que, naquele momento, para a escritora, o filme lhe dava. Ao mesmo tempo, para ela, marcando um lugar na história do cinema, graças ao seu visual, e, pelos seus erros narrativos (estudiosos chamam diegese), não tendo nada a oferecer para o público.
Se Kael pode ter sido, para muitos, injusta em seu julgamento, em um ponto ela acerta em cheio. A principal ideia do filme, pouco explorada para ela, é que os replicantes, os androides que se rebelam, se tornaram mais humanos que os habitantes daquele novo mundo.
Frame do filme
Isso, agora, não parece novidade, e muitos ainda tomam essa opinião como sendo sua e original. Mas sacar isso, naquela época, quando a ficção científica era deslumbrada com o futuro, era muita coisa. Na verdade, ainda é, não sejamos pretenciosos, baby.
A história de um mundo futuro no qual uma empresa produzia seres autômatos para servirem aos seus propósitos e que, ao tomarem consciência e adquirirem sentimentos, se rebelam contra seus criadores, ainda é uma das obras mais comentadas, discutidas, referenciadas não apenas do cinema, mas da cultura.
E, talvez, o seja, justamente por essa indelével relação que mantemos com a máquina. Adoração e medo. São esses os sentimentos que afloram em Deckard (Harrison Ford), o caçador de androides sentimental.
Frame do filme
São esses os sentimentos que nos arrebatam em relação à figura daquilo que nos parecia separado de nós, por que nós, ao contrário da maquinaria, não somos bonecos (é como um dos policiais se refere aos replicantes) de uma linha de montagem.
Mas, é também, justamente esse automatismo um dos fascínios da máquina. Ela nos parece eficiente, precisa, inequivocadamente, responsiva.
Pelo menos assim era, até “Blade runner” colocar de modo arrebatador Roy (Rutger Hauer), o líder replicante, derramando lágrimas enquanto a chuva cai.
Esse antigo confronto, que se tornou o motivo principal da ficção científica, foi potencializado pelo filme de Ridley Scott . Posteriormente, seria diluído em muita produção, com a mesma temática, de péssima qualidade.
Se há um tema de fundo a tirarmos desse filme, e que me parece o seu “teor de verdade”, é esse. Não o sentimentalismo da máquina, mas o confronto de uma humanidade buscada.
Nesse sentido, na mesma linha de Pauline Kael, Francisco Rüdiger, em “Cibercultura e pós-humanismo”, afirma: “a valorização da liberdade de expressão e movimento, a curiosidade corajosa, o conhecimento das paixões, o cultivo dos sentimentos parecem ter se tornado patrimônio característico dos androides, mais humanos que seus criadores, em todos os sentidos”. Alexa deve estar feliz.
Esse antigo embate talvez, cada vez mais, esteja diante de nós. Os replicantes, a figura do autômato, como já escrevi em outro momento (“Nosferatu 100 anos e o infamiliar que em nós habita”), tem, também, esse poder de nos suscitar o estranhamento, justamente por encarnar o desconhecido. Não por acaso, o tememos.
Frame do filme
Mas, se o final do filme, no corte do diretor, essa ideia é um pouco rompida, quando o caçador foge com sua presa, na primeira versão, o final, odiado pela maioria dos cinéfilos (sic), uma imposição dos produtores, faz com que eles apareçam sobrevoando uma paisagem árcade, como um casal feliz.
Por ironia, hoje, esses finais parecem estar lado a lado em nosso mundo contemporâneo. Insípido e vivaz. “Se você gostou deixe um like”, se não, ignore.
De certo modo, estamos, ainda, naquela cidade que não para de chover e na qual tudo parece, ao mesmo tempo, reluzente e frio, decadente e futurístico, maquinalmente humano.
Você pode gostar ou não. Ok, é juízo de valor, então, baby, a chuva deve cair.
Cabeças explodindo, sexo compulsivo, corporações corruptas, heróis psicopatas, mocinhos indecisos. Tudo isso esfregado na cara do espectador, sem nenhuma condescendência. “The Boys”, a série da Amazon Prime, quer exatamente isso; chocar pela imagem, conquistar pelo grotesco, persuadir pela subversão.
Não que isso já não tenha sido feito no cinema, quadrinhos ou, até mesmo, em séries. Mas, nesse caso, a junção de imagens gratuitamente violentas e perversão (no sentido psicanalítico) é vista através daqueles que deveriam nos salvar.
Talvez, por isso, a série tenha ganhado tanta repercussão. Inverter o sentido do herói, explicitar o sexo pervertidamente, exibir a manipulação das pessoas, são parte dessa narrativa na qual semideuses e mortais compartilham do mesmo mundo midiaticamente degenerado.
Isso é uma parte. Provavelmente, nada disso teria provocado tantos efeitos se esses efeitos não estivessem de acordo com uma estética que, de certo modo, os fundamenta; uma dose cavalar de kitsch , pastiche e imagens que bastam por si mesmas.
O kitsch ( Umberto Eco ) é feito para dar ao espectador um sentimento já pronto, comestível, rapidamente consumível. As sequências e cenas de extrema violência são o principal, mas não o único, exemplo dessa estética na série.
Não por acaso, esses momentos surgem de modo inesperado, “surpreendendo” o espectador que vibra (pelo menos, creio, que é o que acontece com a maioria) com lutas com superpoderes, tripas para fora, cabeças pelos ares, corpos despedaçados.
É a expectativa da audiência sendo recompensada. Aqui, nenhuma centelha de violência deve, repito, deve, ser explicada por uma moral maior, por uma lição edificante, por um sentido enobrecedor como fundamentos principais a serem absorvidos. Splash! Mais uma cabeça se foi.
Nesse caso, nem mesmo a possível confusão com o “midcult”, um estilo que tenta imitar estilos anteriores com alguma grandeza, existe. É verdade que existe a imitação de heróis e temas anteriores, o que pode parecer uma paródia quando os ironiza, como Capitão Pátria /Superman , Soldier Boy /Capitão América , etc.
Mas, o sentido maior, é se aproveitar desses conteúdos anteriores que são reconhecíveis, para fazer uma imitação que, aparentemente, inverte os sentidos dos filmes de heróis, seus comportamentos, moral e objetivos.
Mas essa intenção quase desaparece por completo quando predominam a ideia das corporações malvadas, as imagens impactantes, o terror confeccionado, o sexo como choque e piada.
Sim, como choque e piada. Em “The Boys” o sexo, a perversão, nada tem a ver com uma crítica satírica profunda à condição humana (ou super-humana (sic)). Nada tem a ver com o sexo, tão decisivo, por exemplo, no cinema de Buñuel .
Na série, a perversão é exibida pela perversão. Imagem pela imagem. Expectativa e compensação. Exibição pela exibição. Não é à toa que ela se dá, principalmente, entre os super-humanos. Talvez porque, os “super”, como são chamados, corrompidos pelo poder, descem do seu olimpo, tornando-se, em seus “defeitos”, humanos.
E, no mesmo sentido, os humanos, querendo “ascender”, aspirem os poderes dos “super”, como uma obrigação de combater os maus heróis, mas também (vejam a alegria do frágil Hughie ao ter um super poder) como êxtase e compensação de si mesmos.
Você deve estar se questionando: mas a série não se propõe a fazer uma discussão profunda sobre esses temas, é entretenimento!
Exatamente. Daí ela poder ser considerada uma das manifestações da nossa contemporaneidade. A imagem, em si, domina a sensação. Ela não precisa estar ligada a uma justificativa ou a um propósito crítico.
Por isso o sexo é surreal, mas um “surrealismo sem inconsciente” (Fredric Jameson ). As imagens sobrepostas, descontextualizadas e as colagens da arte surrealista tinham um propósito; tornar menos familiar nossa compreensão das coisas.
Em “The Boys” a familiaridade exagerada das imagens não se propõe a isso. Não precisa. É o sentimento mastigável, a violência exacerbada e o sexo como choque programado que dão, aos Boys, o sentido. Sentido?
No cinema, um mago viaja por multiversos incontáveis. No streaming, filmes e séries voltam no tempo para reviver um tempo anterior. Na realidade (realidade?), a história parece se repetir continuamente. Como não podemos abrir um portal e atravessar o tempo, de repente, você se pergunta: é um déjà vu , ou isso está acontecendo?
Esse sentimento pode parecer uma sensação isolada, mas não é. Vejo depoimentos, imagens, pessoas, que realmente vislumbram um certo tempo, não muito distante, imaginam e sonham que, de algum modo, “as coisas poderiam voltar ao que era antes”.
É mais complexo que “O feitiço do tempo”, filme de 1993, no qual o personagem acorda sempre no mesmo dia. Talvez nossa condição contemporânea, especialmente dos últimos anos, nos empurre para uma nova sensação, um desejo, de retorno e repetição.
Filme “Feitiço do tempo”. Fonte: https://media.fstatic.com/
É uma especulação. As percepções e suas tentativas de explicação, surgem quando especulamos. Mas, busquemos um fundamento mais, digamos, concreto. O mito do eterno retorno, tão conhecido e interpretado nos mais variados campos, pode servir como esse fundamento.
Não caberia aqui, evidentemente, abordar as várias interpretações que esse mito teve, desde a filosofia de Nietzsche à psicanálise freudiana. Fiquemos com a interpretação da mitologia de Mircea Eliade , presentes, nos livros “O mito do eterno retorno” e “Mito e realidade”.
Mais especificamente, tomemos a sua interpretação do ato de regeneração do tempo das origens. As sociedades arcaicas, diz Eliade, necessitam regenerar-se periodicamente. Os rituais de regeneração sempre se ligam a um ato, momento, exemplar, arquetípico e, em geral, cosmogônico, como o surgimento do mundo.
A vida do homem arcaico está ligada às categorias essenciais, mitos primordiais, atos arquetípicos e não a eventos. (Deixa eu logo fazer essa observação, antes que eu seja apedrejado por uma antropologia: hoje, uma certa interpretação antropológica chama sociedades arcaicas de tradicionais e modernas de complexas; estou usando os termos literais de Eliade).
Fonte: submarino.com.br
Esse homem não carrega o peso do tempo, mesmo nele vivendo, exatamente porque sua concepção temporal se liga à ideia das origens.
Quando, no tempo, a realidade cai em desgraça, quando o homem se afasta de seus modelos, exemplos, anula-se o tempo e, então, para essa concepção arcaica, é possível ir, novamente, em busca das origens, em busca de uma renovação.
Isso se revela em mudanças cíclicas, como as fases lunares, ou em eventos mais cataclísmicos, como o apocalipse, nos quais a realidade se degenera em “pecado” para, em seguida, se regenerar.
A ideia do tempo da modernidade, um tempo linear irreversível, de rememorar os mais variados atos históricos que devem ser guardados, registrados, está distante da concepção de tempo cíclico atemporal das sociedades arcaicas.
Mas, então, o que explicaria essa sensação de eterno retorno contemporânea, presente na realidade e na ficção?
Estaríamos voltando à ideia de um necessário retorno às origens? Estaríamos buscando substituir um tempo decaído por um tempo exemplar, menos caótico, menos catastrófico, mais estável e compreensível?
Não tenho respostas definitivas, mas impressões. Em primeiro lugar, como sabemos e o próprio Mircea Eliade deixa claro, o mito não finda com a sociedade moderna, mas ele se modifica.
Os exemplos são vários, desde os rituais que atravessam a vida, os mitos da literatura, dos quadrinhos, do cinema e tantos outros.
A questão é que, na vida moderna, diferentemente da ficção, o mito tende a operar dentro do tempo irreversível, que não pode anular os momentos “profanos” que se afastam dos modelos.
”A persistência da memória”, 1931. Salvador Dalí. Fonte: https://pt.wikipedia.org/
O que significa, por exemplo, que dentro desse tempo, os momentos de guerras, catástrofes, pandemias, permanecem dentro do tempo da modernidade. Pode-se argumentar que aprendemos com eles, ou que eles são inevitáveis.
Mas, como vimos, para a concepção arcaica, a noção do tempo não se mede dessa forma, daí por exemplo, podermos afirmar que para essa ideia do homem arcaico o tempo é sempre presente. E, quando esse presente se apresenta distante dos seus modelos originários míticos de origem, pode-se recorrer aos mais variados rituais para refundá-lo, trazer um novo tempo.
Não exatamente o mesmo tempo anterior, mas o voltar a origem, ao modelo, ao arquétipo, de certo modo, regenera o tempo, dando-lhe outra configuração.
O estimado leitor já entendeu que, na nossa sociedade moderna, somos incapazes de realizar tal feito, justamente porque nosso tempo parte do princípio de linearidade, da ideia de continuidade. A palavra é progresso.
Se somos fundados na ideia de linearidade e progressão do tempo e, com isso, da história, carregamos o peso dos fatos ocorridos e não podemos anulá-los.
Daí, por exemplo, a ideia de subversão da dor, do sofrimento, passar pela concepção de mudança, subversão, revolução. Mas, mesmo essa ideia, é atravessada dentro de um tempo que evolui, que não volta a um tempo de origem, de arquétipo.
”Contos do loop”, série de streaming
O homem moderno talvez sinta isso como impossibilidade, o que, ao mesmo tempo, pode explicar seu sentimento de um desejo de retorno.
Olhamos para trás e desejamos que determinado tempo voltasse, olhamos para dois anos atrás e queríamos que os anos que se seguiram não tivessem acontecido. Exatamente porque o que se seguiu foi preenchido por desprazer, queda, catástrofe.
Nossa ideia moderna de progresso no tempo nos obriga a caminhar para frente, carregando nas costas, memória, o fardo da história.
Talvez a enorme quantidade das produções imagéticas que criam loops temporais, portais interdimensionais, viagens no tempo, do cinema, do streaming, reflita esse desejo, satisfazendo, assim, esteticamente, nossa necessidade de retorno.
Pode ser sintomático que desejemos, através das imagens espetaculares de outros mundos e realidades proporcionadas pela técnica contemporânea, vivenciar outras realidades, um desejo de retorno e, contraditoriamente, isso nos coloque em uma simulada tentativa de desafiar o tempo. Nosso eterno retorno é outro.
O homem arcaico, com sua concepção religiosa e mágica – e, ironicamente, exatamente por isso é chamado de arcaico – realizava tal façanha dentro do seu próprio tempo.
Como não podemos realizar tal feito, um mago, no cinema, realiza um ritual e abre um portal de onde várias réplicas de pessoas e mundos surgem e, então, escapamos, imageticamente, de nosso tempo. De repente, você se pergunta: é um déjà vu, ou isso está acontecendo? Loop!