“Na madrugada de 6 de junho, dezoito mil paraquedistas britânicos e americanos saltavam sobre a Normandia, ocupando pontes importantes e destruindo linhas de comunicação alemãs. Às 6h30, desembarcaram as primeiras tropas – forças americanas, que desceram na praia de Utah com seus tanques anfíbios. Menos de uma hora depois, às 7h25, os primeiros soldados britânicos chegavam às praias Gold e Sword, seguidos, na praia Juno, por 2.400 canadenses apoiados por 76 tanques anfíbios. Às 10h15, a notícia desses desembarques era levada a Rommel, que se encontrava na Alemanha. Rommel voou imediatamente para a França, recebendo instruções de Hitler para, até a meia-noite, ‘devolver ao mar’ os invasores” (Martin Gilbert. “A Segunda Guerra Mundial: os 2.174 dias que mudaram o mundo”).
Winston Churchill não estava convencido do ataque à Normandia. Ele não queria que as perdas sofridas na Primeira Guerra se repetissem diante das casamatas e fortificações alemães nas praias francesas.
Mas esse dia não começou na madrugada de 6 de junho, ele foi meticulosamente preparado e detalhado dentro do teatro de operações da Guerra.
Navios que desembarcaram na praia de Omaha na maré baixa durante os primeiros dias da invasão aliada, em meados de junho de 1944. Fonte: https://pt.wikipedia.org/
Os aliados treinaram as estratégias e possíveis adversidades, empregaram técnicas de despistamento para enganar os alemães sobre a data e o local de desembarque e avaliaram as condições climáticas e das marés periodicamente.
Tudo isso nos é contato pelo próprio Churchill (“Memórias da Segunda Guerra Mundial”), por historiadores, pela literatura e pelo cinema.
O Dia D é objeto não apenas de um decisivo momento da história, mas se tornou uma das representações mais presentes nas imagens do Século XX, e continuará sendo.
O grande monumento cinematográfico desse tema ainda é o filme “O mais longo dos dias”, de 1962 (Dir. Andrew Marton, Bernhard Wicki, Ken Annakin). Uma das produções que mais bem representam os acontecimentos históricos daqueles dias.
Vemos desde o começo da película a preocupação de generais, comandantes e soldados com a data para a invasão e a angústia diante dos adiamentos.
Cena do filme. Fonte: https://www.jestersreviews.com/reviews/3960
É preciso lembrar que naquele período, nos conta o relato histórico, já há muito se falava sobre a necessidade de abrir uma frente de ataque na Europa pelos aliados .
Stalin havia insistido nessa possibilidade e o tema se tornaria parte do acordo da Conferência de Teerã , em 1943, com o governante soviético.
O próprio Stalin enviaria um telegrama, em resposta a uma mensagem de Churchill que dizia que a operação começara bem, elogiando a iniciativa aliada e prometendo lançar as forças russas na parte Oriental da Europa.
Essas correspondências entre os dois líderes revelam um pouco do que representou a operação.
Mas nem Stalin, nem Churchill (a ausência do primeiro primeiro-ministro inglês, que vivia rezando pela entrada dos EUA na Guerra, é incompreensível), surgem no filme.
Na produção norte-americana o foco é muito maior na participação estadunidense, do que nos desdobramentos das negociações políticas dos aliados.
Os soberbos e descrentes oficiais alemães. Fonte: https://www.wearemoviegeeks.com/
Mas o generalato alemão surge. E surge espelhando a história de que no dia da invasão Hitler estava empanturrado de remédios para dormir e de que ninguém deveria incomodá-lo.
Mas também surge na arrogância dos generais que acreditavam, em parte pelo despistamento aliado, que a invasão aconteceria em outro momento e outro lugar.
Para eles, entrar pela Normandia seria não apenas uma insensatez estratégica, mas um risco diante da instabilidade do tempo, com muitas nuvens, chuva e marés variando, naqueles dias.
Mas Eisenhower, o comandante das forças aliadas, bateria o martelo e definia o Dia D e a Hora H.
Um LCVP (Landing Craft, Vehicle, Personnel) do USS Samuel Chase , tripulado pela Guarda Costeira dos EUA , desembarca tropas da Companhia A, 16ª Infantaria , 1ª Divisão de Infantaria (a Big Red One) caminhando para a seção Fox Green da Praia de Omaha. Fonte: https://pt.wikipedia.org/
No filme, os alemães não apenas parecem descrentes com as informações que chegam em mensagens em códigos sobre a invasão, mas fazem troça delas, jogando cartas, bebendo, e, mesmo diante da visão dos navios às portas da Normandia, não parecem dar crédito ao que iria acontecer.
Já durante algum tempo os aliados dispunham da decifração da máquina Enigma alemã (parte de um sistema de deciframento que se chamou Ultra), o que facilitaria muito suas estratégias.
Eles sabiam dos movimentos dos nazistas e sabiam do seu erro tático, erro do próprio Hitler, em acreditar em uma outra invasão.
A esses erros táticos se somam, como o filme rapidamente demonstra, a insistência de Hitler em manter dispersas suas forças e a exigência da permanência do exército até o último homem – decisões com as quais parte de seus generais, incluindo Rommel, não concordava -, posições que aumentaram as desvantagens do Reich.
O historiador Martin Gilbert narra que os alemães, ainda no dia nove de junho, acreditavam que a invasão se daria em Pas de Calais e de que isso seria confirmado pela lenta progressão das tropas aliadas.
“Essa mensagem foi decifrada na Grã-Bretanha em 10 de junho. As falsas operações não apenas forneciam um escudo protetor aos exércitos aliados como seus responsáveis sabiam que as farsas tinham bons resultados”. Diz ele.
O jogo de táticas de decifração, escutas e espiões, tão importante para as estratégias de ambos os lados, surge mais do lado nazista que tateia no filme em busca da decodificação das mensagens do ataque.
Mas, do lado francês, em determinado momento, um modesto senhor se prepara para tomar sua sopa trazida por sua esposa e ouve em um rádio uma mensagem codificada, ele larga a colher e pula de alegria.
Francês celebra ao ouvir a mensagem codificada sobre a invasão aliada. Fonte: youtube.com
Em outro lugar, a resistência francesa reconhece seu código e sai para realizar o descarrilamento de um trem alemão, em uma tática de guerrilha.
Essa caracterização dos franceses não se repete com os protagonistas, o que alguns criticam como uma falha do filme. Teria faltado uma representação mais profunda dos personagens interpretados por ícones, como John Wayne , Robert Mitchum , Henry Fonda e Richard Burton .
Talvez não fosse esse o objetivo, como o é de alguns filmes mais contemporâneos sobre guerra.
Mas a progressão das ações da guerra, a representação das batalhas são seu grande objetivo e seu ponto forte.
Talvez os diretores acreditassem que não coubesse, para um momento tão importante e para um esforço coletivo inédito de nações, primar pelas histórias de cada um dos protagonistas.
A sequência fílmica feita da batalha no vilarejo de Ouistreham, sem dúvida, está na história da filmografia de guerra.
Ela é realizada do alto (parece ser de um balão), mas é lenta e acompanha o movimento de ataque e contra-ataque dos soldados correndo pelas ruas, atirando e buscando proteção, e dá ao espectador uma visão subjetiva inesquecível dos acontecimentos.
Não há como não lembrar, pelo caos ali instalado, da famosa sequência de “Nascido para matar”, de Stanley Kubrick (1987), na qual os soldados tentam avançar em um pequeno espaço de uma cidade, mas são continuamente alvejados por um único atirador que derruba, em câmera lenta, cada um dos que tentam atravessar aquelas ruínas.
Temos também as sequências da praia de Omaha, onde a batalha foi mais dura, na qual a câmera faz um traveling lateral do alto durante o movimento do desembarque e avanço dos soldados e, depois, dois aviões alemães são mostrados, em tomadas aéreas de dentro das aeronaves, atingindo as linhas militares que tentavam correr pela areia.
Essas técnicas que se tornariam comuns em filmes mais recentes, não eram tão comuns ainda naquela época, especialmente porque não se tratam apenas de trucagens com cromaqui, ou, como depois se convencionou fazer, por trucagens do computador.
A excelência dessas imagens está em mostrar esse realismo que não quer ser apenas sentimental, às vezes piegas em filmes de guerra, mas um realismo que busca até mesmo uma certa reconstituição dos fatos em sua representação.
Nesse comparação sempre insuficiente entre história e cinema, porque tratam-se de duas realidades diferentes, de formas de contar a história diferente, a não referência da importante batalha da cidade de Caen também é um “esquecimento” do filme.
Caen era estratégica para o avanço da infraestrutura dos aliados e para pôr fim às conexões de transporte dos alemães.
Não dá para mostrar tudo, e nem se pode. O cinema tem seu papel no imaginário, mas ele não é a história tal como de fato ocorreu. Nem a histografia é.
Para alguns, o filme pode parecer ufanista demais, mas o que ele e a história demonstraram é que o terror nazista não podia se enfrentado nem pelo exército de um homem só, nem pela figura de um tolo herói que por acaso estava ali.
Sgt./Lt. John H. Fuller (Jeffrey Hunter) tenta ajudar um amigo desfalecido. Fonte: https://wp.jeffreyhunter.net/films/the-longest-day/
Não havia espaços para tergiversar.
Em outro contexto de suas “Memórias”, Churchill, na Normandia, após o Dia D, escreve para o presidente Roosevelt elogiando o poderio das forças aliadas.
Diz ele: “O senhor usou a palavra ‘estupendo’ num dos primeiros telegramas que me enviou. Devo admitir que o que vi só pode ser descrito por essa palavra, e penso que seus oficiais também concordariam ”.
É evidente que Churchill queria dar alguma boa-nova para seu aliado, mas ele sabia, como cunhou em uma de suas famosas frases, que “os problemas da vitória são mais agradáveis que os problemas da derrota, mas não menos difíceis”.
David Campbell (Richard Burton). Fonte: https://www.warhistoryonline.com/featured/56-movie-mistakes-the-longest-day.html
Na penúltima sequência de “O mais longo dos dias”, o aviador David Campbell (Richard Burton) está gravemente ferido encostado em uma casa, depois de um matar um combatente alemão, cujo corpo está à sua frente.
Um soldado norte-americano o encontra, lhe dá um cigarro e senta ao seu lado. Campbell diz a ele, “engraçado, não? Ele está morto; eu, aleijado; você, perdido. É sempre assim. Digo, a guerra”.
Nas “Obras Reunidas” (2000), de João de Jesus Paes Loureiro , o livro “O ser aberto” (1990) abre com uma citação de John Keats. “Foi só uma visão ou um sonho acordado?”, é a frase retirada de “Ode a um rouxinol”, poema de 1819, dois anos antes do romântico e lendário poeta inglês morrer, aos 25 anos.
Paes Loureiro sabe o valor de uma epígrafe. Seus trabalhos são repletos delas. Ele sabe seu papel de chave de leitura e compreensão de um texto, sua função de abertura e, ao mesmo tempo, de síntese.
Pode não parecer (nada é o que parece nessa poesia, mas tudo se revela exatamente com as aparências) mas os versos que compõem o “Ser aberto” e que são reapresentados agora em “Barcarolas: uma arte poética” estão muito próximos dessa faceta da epígrafe.
Não porque são poemas curtos ou poucos (10 poemas com 16 versos cada), mas porque são densos, guardam enigmas e, ao mesmo tempo, revelam um mundo.
O mundo nesse “Barcarolas” é da criação. Da criação do mundo pelo ser amazônico e da criação da poesia pelo artista.
O mundo é da canoa que dá significação ao homem e do homem, quem sem ele, ela, a barcarola, não existira.
”Barcarolas”, de Paes Loureiro e Nina Matos. Imagem: Ed. Paka-Tatu
O mundo do caboclo que se limita em sua barca, mas que é com ela que o horizonte se infinita.
O mundo do leme que conjuga com a mão e da mão que guia a escrita.
O mundo das águas sobre as quais a canoa se deita e do poeta que nela se estira.
É esse um dos mundos que há décadas o poeta dedica sua obra literária e teórica. Realidade aparente que guarda o mergulho infindável da fantasia.
Aqui, os objetos sempre, como em grande parte da poesia do autor, são mais do que eles mesmos, a canoa é templo e expiação , é caminho e destino, é lida e libido.
Esse é o elemento que atravessa o modo pelo qual o poeta vê a realidade, ele a vê sempre como uma dimensão de um mundo a ser exibido no que ele tem de mais perceptível e mais oculto. O fundamento per si do poético.
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Na barcarola simples, repousa uma ode e uma elegia do ser e da escrita. Na navegação do poeta, nenhum verso é suficientemente grandiloquente que possa sintetizar tamanha poesia.
A poesia de um mundo que Paes Loureiro ainda vê com os olhos esperançosos de um romântico insuficiente, como sempre insuficiente é a palavra que o poeta esgrima.
Quando, em 2003, pude publicar o primeiro livro sobre sua obra, esse mundo já há muito estava instaurado em sua arte poética.
Livro sobre a poesia de Paes Loureiro. Foto: Relivaldo Pinho
Depois, no decorrer de outros trabalhos em que sua poesia ou seu trabalho ensaístico me acompanhavam, pude perceber o quanto a percepção desse mundo para Loureiro não era apenas uma escrita.
Mas era, em grande parte, uma forma de olhar e tentar domar a transitoriedade de um mundo que parece não ter um tempo, um lugar, em uma “terra sem males”.
Pode-se pensar muita coisa sobre essa poesia, menos que ela não esteja atrelada a essa visão do Ser que está aí, mas que não vemos.
Quando uma canoa que passa em frente à Estação das Docas e achamos bonito, “compondo a paisagem” dizemos, fotografamos.
A imagem da poesia é de outra percepção e significação. É a busca pelo ethos (sentido) de um mundo naquele objeto movediço e da constatação da poesia como sublime e agônica “Tarefa” (1964).
Diz-se que John Keats, citado por Loureiro, escreveu “Ode a um rouxinol” quando ele absorto se separou de um grupo de pessoas ao contemplar o pássaro cantando.
Mas o texto de Keats não é apenas um elogio ao canto da ave, ele possui uma dimensão forte sobre a fragilidade da existência, sobre a impossibilidade de um paraíso permanente.
Vejamos esses versos de Loureiro em “Barcarola V”:
“A minha canoa vive
além de mim e da morte.
A forma é sua eternidade.
Língua e linguagem. A sorte.
Eu sou, enquanto navego,
de seu ego nave, templo.
A sua razão de ser.
Metáfora do momento.
Oh! Geometria com alma!
Assim é minha canoa...
Boiúna boiando. Vago
lume vago que flutua.
O que ficará de nós,
além do nada que é nosso:
madeira, quilhas e ossos
cabelo, poeira e verso?”
Como se vê, esses versos estão longe de uma visão inocente sobre a existência. Não estou comparando literaturas e motivos diferentes, estou exibindo o que é próprio da poesia, estou, para lembrar Mário Faustino , exibindo “madeira, quilhas e ossos”.
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Essa revisitação à sua obra nesse “Barcarolas” tem uma contribuição que em nada é um complemento, mas se transforma em sua verdadeira substância, são os trabalhos da artista visual Nina Matos.
Se você, caro leitor, tiver a oportunidade de ler esse livro, tenha a oportunidade de vê-lo. É esse seu sentido.
Os trabalhos de Nina Matos atravessam esses poemas, condensam horizontes, expandem a poesia, fazem uma bricolagem da percepção.
São cartografias da percepção, cartografias para se perder.
São também epígrafes, como essa poesia de Loureiro, na qual o mundo está sintetizado na imagem e aberto para sua compreensão.
Ao ler esses poemas, como Keats, talvez você possa se perguntar “foi só uma visão ou um sonho acordado?”
Não é esse um dos sentidos da poesia? Para trazer um dos versos desse livro, poesia é quando a linguagem sonha.
“Mestres do ar” (Masters of the air, 2024), a série recentemente exibida pela Apple, com a produção executiva de Steven Spielberg e Tom Hanks , foi produzida para ser vista como uma história de bravura. Da bravura sobre a vitória aliada na Europa invadida por Hitler e da bravura de homens diante de seus medos.
A história do esquadrão da aeronáutica norte-americana, que por volta dos dois últimos anos da Segunda Guerra Mundial luta contra as forças alemãs, é sobre a relação entre amigos, companheiros e combatentes que, muito jovens, buscam se desviar dos flaks (artilharia antiaérea) a cada missão e, ao mesmo tempo, empenham forças para causar, com suas bombas, danos nas cidades inimigas.
Isso, sem dúvida, é o momento de ação mais bem realizado da série e traz um impressionante realismo que confere, aos efeitos especiais e filmagens em locações, um status notável nas produções sobre guerras.
As imagens não parecem cenas baratas de videogame, elas parecem nos colocar dentro dos muitos momentos dos combates e da violência com que são travados.
Não costumo comentar sobre esses detalhes técnicos, mas poucas vezes vimos tanto cuidado com esse nível de produção, até mesmo em produções que tem nos efeitos especiais e na recriação de cenários seu fundo mais importante.
A isso se alia a condução dos capítulos, feitos para provocar êxtase, retrair e causar expectativa no espectador.
O sumiço, por dois episódios, de Gale Cleven ( Austin Butler ), um dos protagonistas, abatido em combate, e o surgimento de um personagem ainda mais interessante para preencher seu lugar, o Tenente Robert Rosenthal (Nate Mann), é uma estratégia muito perspicaz para renovar o roteiro.
Rosenthal é dos que representam a figura da bravura de maneira mais explícita. No “Centésimo Batalhão” do qual fazem parte, completar 25 missões dava ao comandante do bombardeiro o direito de voltar para casa.
Rosenthal as completa, mas se nega veementemente a deixar seu posto, ao saber que os termos foram mudados para os que ficaram. Os remanescentes teriam, agora, que completar 30 missões para voltarem para suas famílias.
“Rosie”, como é conhecido, exibe a mesma coragem que Gale e John Egan ( Callum Turner ), os dois personagens centrais que formam a principal amizade da série.
São eles que parecem viver mais intensamente aquele ambiente de muitas mortes, destruição, campos de prisioneiros, mas também de companheirismo e vitórias.
Os dois galãs encarnam grande parte da mitologia sobre a participação norte-americana na Guerra e, talvez, isso explique, também, o sucesso de público da série.
Quase sempre juntos, eles são respeitados por seus colegas e são os modelos a serem seguidos pelos novatos.
É verdade que a mensagem principal da série não é a política em si, mesmo que seja impossível dissociar esse mundo em chamas das decisões no teatro político da Guerra.
Os atores mais famosos (políticos, generais e burocratas), desse teatro desolado pelo conflito, não surgem, como costumamos ver em outras produções. O foco aqui é naqueles que ficaram menos evidentes nos livros de história.
Mas há momentos em que a realidade política mais explícita, que resultou em milhões de mortes, surge.
Ao serem capturados pelos alemães, os aviadores conhecem parte dos horrores, causados por eles, do outro lado, ao verem a destruição nas cidades germânicas.
Em uma das cenas como prisioneiros, os habitantes de uma das cidades gritam em direção a eles, “assassinos”, “aviadores assassinos!” e partem para cima dos militares, espancando e, com a ajuda dos nazis, matando quase todos. John Egan, um dos heróis, sobrevive.
Há também algum embate moral na produção, especialmente entre os personagens do tenente Harry Crosby (que narra grande parte da série, que, como se sabe, é baseada no livro de mesmo título, de Donald L. Miller) e Rosenthal que se questionam sobre seus atos. Mas isso é muito pouco na produção.
Talvez a cena política e humana mais representativa seja o conhecimento, por parte de Rosenthal, de um dos campos de concentração. Sua entrada no lugar e sua visão são, mesmo sem uma representação mais profunda e abrangente sobre o tema na série, impactantes.
Atordoado, em uma das paredes das celas dos prisioneiros, ele vê uma Menorá (um candelabro, símbolo do judaísmo). Algum sentido do que ocorrera ali parece se formar, definitivamente, em sua mente.
Em outro momento, os dois Buckys, Gale e Egan, como eles são conhecidos, tornam-se prisioneiros no mesmo campo. Em um estratagema, durante um deslocamento dos prisioneiros, Egan simula uma fuga, os soldados se distraem e Gale escapa com outros dois companheiros.
Durante a fuga, em uma momento de distração, um dos colegas sofre, pelas costas, um ataque com uma baioneta. Do ataque faz parte uma criança alemã que ameaça Gale com um revólver. O soldado toma sua arma e aponta furioso para a criança. O menino pede, “bitte!” (por favor!). Gale não atira. Ele precisa ser o belo e perfeito herói.
Na verdade, naquela altura dos acontecimentos, os soviéticos já haviam invadido Berlim e o fim do Reich era dado como certo. A arma utilizada pela criança nem munição mais tinha. Essa sequência, como tantas outras que já vimos sobre a Guerra, só demonstra a irracionalidade daquele momento.
Os aviadores do Centésimo Batalhão de Bombardeiros experimentaram essa realidade. Mas a mensagem que o episódio final, no qual eles jogam alimentos para um vila holandesa, quer deixar é de amizade, esperança e liberdade.
Pode parecer hollywoodiano demais, e é. Mas talvez a série lembre um cinema de outras épocas, de bravuras e esperanças de outras épocas.
E, talvez, seja o que explique sua aceitação pelo público. Homens desafiando o terror de outros homens e desafiando seus próprios medos.
“França – exército – Josephine”. Essas teriam sido as últimas palavras de Napoleão antes de morrer. Historicamente, existem controvérsias se foram realmente essas. Mas, para o filme de Ridley Scott , são esses motivos que ditam o enredo do seu “Napoleão” “Napoleão” (2023). O líder francês que a tudo ambicionava, constatará que nem sempre todo poder basta.
Antes de sua fama ecoar aos quatros ventos, Napoleão experimentará os caminhos pelos quais a política e o poder podem levar. Ele vê, taciturno, a rainha Maria Antonieta , sob os berros de escárnio do povo, ser guilhotinada, e vê as ambições e as brigas internas dos chefes da Revolução Francesa .
Em uma das poucas cenas representativas que remetem ao contexto histórico da Revolução, o líder jacobino Robespierre está discursando em um salão. A plateia se divide sobre sua fala. Do alto de um dos corredores, um líder adversário girondino grita em sua direção: “você não é um defensor da liberdade! Você se considera o juiz, o júri e o carrasco, não é verdade?”.
Esse período revolucionário seria lembrado por Norberto Bobbio (em “A teoria das formas de governo”) na sua exemplificação do poder despótico a partir de Montesquieu . O despotismo é o poder que tem no terror sua característica fundamental, seu símbolo.
Para Saint-Jus (o arcanjo do terror) e Robespierre, o terror é imprescindível para a chegada da república democrática, o reino da virtude. Como se sabe, como instiladores do medo, eles não se traíram. Mas o poder sem freios pode também a todos atingir. Logo depois, Robespierre e seu arcanjo serão vítimas de sua própria lâmina.
A Morte de Robespierre. Artista: Giacomo Aliprandi. Fonte: wikipedia.org
Napoleão (Joaquin Phoenix) sendo um produto da revolução, também, em um primeiro momento, não se trai. Após sua arrasadora vitória de Toulon, a batalha que lhe traria fama no território francês e que lhe proporcionou maior poder político, ele, no filme, com carta branca dos novos líderes revolucionários, explode, literalmente, a revolta monarquista de 1785.
Mas aí entra, definitivamente, Josephine (Vanessa Kirby). E, para a história de Ridley Scott, ela terá um papel decisivo na trajetória napoleônica. Ele não apenas se casa com ela, como, obsessivamente, por estar na campanha do Egito, implora por notícias suas.
Josephine, nesse momento, está traindo seu marido com outro homem. Napoleão ainda não sabe, mas uma cena da campanha do Egito serve como uma metáfora dessa relação nem sempre domesticável entre a política, o poder e a vida.
O comandante francês está diante dos tesouros arqueológicos egípcios. Encostada em uma parede, na vertical, está uma múmia dentro de um sarcófago.
Napoleão a olha, sobe em um banquinho, coloca seu famoso chapéu sobre a múmia e aproxima seu rosto daquela face sem vida. Em seguida, ele toca o rosto da múmia suavemente, deslocando-o para o lado, vendo o fim daquele poder já extinto. “Memento mori” (lembre-se da morte).
Napoleão diante da múmia. Fonte: https://twitter.com/EgyptianPodcast/status/1715462463821377980
Ele parece estar se perguntando, o que são os grandes homens? Aqueles que se acham deuses acabam assim? E nós com ele nos perguntamos se nem todas suas conquistas lhe teriam evitado a traição? Nem sempre todo o poder é suficiente.
Em seu retorno para a casa, ele, furioso, ameaça deixar Josephine. Ela reverte a situação dizendo para ele que, sem ela, ele não é nada. A partir daí, o filme começa seu desfile psicologizante, mostrando, grosseiramente, um edipiano e lascivo Napoleão.
Poucos personagens na história mereceram tantos textos. Poderíamos pensar que essa representação de um Napoleão incontrolável e contraditório faz parte de sua vida, faz parte do humano.
Mas para a história, ou pelo menos, para a história mais comum, ainda reverbera, por exemplo, a sua coroação e muitas de sua batalhas. Ele é um mito. E mitos são lidos de várias formas.
O filme de Ridley Scott dá essa versão na qual o homem e o mito procuram ser juntados. A famosa cena da coroação reproduz o famosíssimo quadro de Jacques-Louis David (1807).
”A coroação de Napoleão”, de Jacques-Louis David (1805-1807). Fonte: wikipedia.org
Diante do espanto de todos (no quadro isso é levemente perceptível, mas no filme gera um “ooohhh”!) o imperador coroa a si mesmo, marcando simbolicamente a separação do Estado e da Igreja, união fundamental das antigas monarquias.
Além das cenas impressionantes da Batalha de Waterloo , vemos a sequência da celebrada vitória em Austerlitz que, com o uso da tecnologia da computação, é capaz de representar esse momento, talvez, como nunca havíamos imaginado antes.
O sadismo do vitorioso general diante do derrotado Francisco II , ao agradecer ao imperador austro-húngaro por ter feito ele cometer um erro ao ter vindo até ele, o que lhe impediu de derrotar, já naquele momento, também os russos, é muito mais impactante que todas as cenas libidinosamente sádicas do filme.
A pretensão de mostrar Napoleão como homem e mito ganha ainda duas sequências representativas. A primeira é a dissolução do casamento com Josephine (ela não poderia ter mais filhos e o imperador queria um herdeiro). No ato, ele chora e, em seguida, estapeia Josephine para que ela assine o documento de divórcio em prol da França.
O poder supera o amor, mas, ao mesmo tempo, talvez esse poder possa ser um complemento da perda, da sua falta, dos seus medos. Homem e mito. As lágrimas caem, mas sem compaixão.
A segunda sequência é sua famosa entrada em Moscou. A câmera movimenta-se seguindo seu cavalo de perto, ele gira em 360 graus com seu animal e, em close, vemos seu rosto estupefato.
Napoleão encontra Moscou deserta. Fonte: IMDB
A cidade está deserta. Napoleão grita: “onde estão vocês!?”. Aquele que é tido por muitos como o maior estrategista de todos os tempos, não antecipara o movimento adversário.
Há muitas produções cinematográficas e séries sobre o líder francês. Mas o que o diretor Abel Gance fez em 1927 é algo totalmente extraordinário até hoje. O “Napoleão”, de Gance, é um daqueles filmes do cinema mudo que ficaram lendários por vários motivos.
Quando foi exibido teria sete horas de duração, suas técnicas empregadas são revolucionárias – não há outra palavra – para o período, com travellings (movimento de câmera) com a câmera na mão, cortes em contraponto (uma cena contrapondo ou complementando o sentido da outra), fusões de imagens, efeitos especiais e a famosa sequência final na qual três quadros na tela mostram, ao mesmo tempo, a mesma cena ou cenas diferentes.
Não apenas por todas essas inovações ele é cultuado. Ao contrário do filme de Scott, o filme de Gance (que interpreta Saint-Just, o arcanjo do terror) pretendeu mostrar o Napoleão desde sua infância, passando ainda por uma longa representação dos acontecimentos da Revolução Francesa, até terminar no início da campanha da Itália.
O “Napoleão”, de Ridley Scott, pode não ter tido essa pretensão. O fato de ser anunciado de que se pretende relançá-lo com mais uma hora e meia de duração para TV, talvez indique o quanto ele poderia ser mais coeso, parecendo menos uma sequência de episódios esparsos.
Talvez por isso ele tenha buscado se deter – com resultados questionáveis – nesses elementos que muitas vezes moveram a história, tragicamente ou não, a pátria (França), as armas (exército) e o amor (Josephine).
O filme nos conta que Napoleão nem sempre pôde ter essas conquistas como gostaria. Mas a história já mostrou que, quando esses elementos colidem, nem todo poder basta.
“Ó profeta – disse eu – Criatura do Mal, e ainda assim profeta, ave ou demônio”. (“O corvo”, Edgar Allan Poe)
Pôster de “Os pássaros”. Fonte: wikimedia.org
Nunca algo tão inofensivo na história do cinema, tirando as belas mulheres, pareceu tão aterrador. “Os pássaros” (1963), de Alfred Hitchcock fez isso. E fez mais. Mudou, para sempre, a ideia de que é preciso explicar o sentido de um filme. Se você já viu ou não, não importa, mas acorde! corvos bicam seus olhos!
O sucesso estrondoso de “Psicose” (1960), diria Hitchcock, fez com que ele imaginasse que o público queria algo mais forte ainda.
A origem de “Os pássaros” nasce da ideia de que ele pretendia contar uma história de catástrofe, mas que ela envolvesse pessoas normais, comuns, e que suas vidas ordinárias fossem terrivelmente interrompidas.
Na entrevista que Hitchcock concedeu a Peter Bogdanovich (Diretor do provocador filme “A última sessão de cinema”) ele explicaria isso com outros termos, após analisar a obra de Daphne du Maurier, “The birds”, na qual o filme se baseia.
Dizia ele: “Em outras palavras, estávamos dizendo: ‘Vejam. Todas essas pessoas inconsequentes as suas vidas transcorrem de modo bastante aborrecido, mas, de repente, surgem os pássaros. Agora sua equanimidade comparativa é perturbada’”.
A “equanimidade comparativa” (leia-se complacência, conformismo) é justamente uma das explicações para sua heroína, a belíssima Melaine Daniels ( Tippi Hedren ).
A mãe de Melissa a abandonou aos 11 anos. Ela é filha de um proprietário de um grande jornal de San Francisco, suas ocupações parecem repetitivas e pueris, como fazer ações de caridade e ir à loja de pássaros onde encontrou Mitch ( Rod Taylor ), seu parceiro e amante na guerra contra as aves e contra ela mesma.
Contra ela mesma, porque a ideia é de que não só as vidas comuns das pessoas da pequena vila de Bodega Bay, onde os pássaros atacam, são viradas de cabeça pra baixo, mas de que a ordinária vida de Melaine sai do seu conformismo e se depara com um trágico desafio. Daí a ideia da heroína hitchcockiana.
Novamente Hitchcock dá a uma de suas mulheres o protagonismo do filme, seguindo o que fizera antes com Janeth Leigh em “Psicose”.
Parte do storyboard do filme
Mas se no filme anterior Marion Crane (Leigh) foge da cidade após realizar um roubo, em “Os pássaros”, Melaine sai da cidade com a desculpa de presentear Cathy, a irmã de Mitch, com dois “loverbirds”, dois periquitos.
A diferença não é apenas de intenção, mas de motivo, razão. Marion sucumbe à tentação da cobiça; Melaine sucumbe à tentação do amor. São pecados, mas pecados diferentes.
Melaine em sua chegada na vila logo sentirá essa mão do destino ao ser atacada por uma gaivota. Ainda sob os efeitos da grande cidade e do impacto do novo lugar, a professora (ex-namorada de Mitch) que a acolhe pergunta o que ela achou do povoado, e ela responde: “detestei!”.
Hitchcock aos poucos irá demonstrar como essas apreensões sobre a vida, sobre a realidade e sobre nossos pequenos mundos nem sempre são as únicas corretas, possíveis.
É o signo da catástrofe que está a espreitar, com asas, pendurado nos fios dos postes da pequena vila.
O primeiro ataque massivo dos pássaros demonstra isso. Na casa de Mitch, o que era para ser um jantar de recepção se transforma, sob os olhares de reprovação da mãe à visitante, em caos quando pequenos pardais invadem a casa como uma nuvem de fumaça densa que desce da chaminé.
É a segunda prova de realidade para os habitantes da casa, mas, principalmente, para Melaine que, enquanto se mantém calma, observa a perda de controle da mãe de Mitch, a imagem aqui é de que se trata da bruxa má a amaldiçoar aqueles acontecimentos.
Naqueles acontecimentos a sequência do fazendeiro, encontrado pela mãe morto com os olhos arrancados pelos pássaros, proporciona uma nova aproximação. É quando a bela jovem da cidade se aproxima definitivamente daquela que poderia ser sua algoz.
Um chá servido no quarto da mãe, após o pânico da cena de morte, aproxima esses dois polos da paixão de Melaine pelo filho e do medo de substituir a mãe e condená-la à solidão.
A sequência mítica e bíblica da morte do fazendeiro é uma abertura para uma nova realidade. Os olhos do fazendeiro se foram, mas são os olhos de Melaine que, para deterem os corvos do destino, devem se abrir. É um Édipo às avessas.
Essa caraterização do destino, quase mítica e quase mística, estará presente naquela que talvez seja a sequência mais famosa do filme. A sequência dos corvos pousados na frente da escola onde Cathy, a irmã de Mitch, estuda.
Os pássaros em frente à escola
O corvo é uma simbologia de morte e vida, felicidade e infortúnio e se tornará uma das imagens arquetípicas e massificadas com a qual pensamos sobre augúrio, predestinação, má sorte. A sorte da vila está a espreitar em todos os lugares.
Farfalham as asas, grasnam assustadoramente as aves, gritam os medos, correm os moradores. Muitos, no mercado, não creem no que está lhes acontecendo. Como aquela “equanimidade comparativa” foi quebrada?
A incredulidade da “ciência”, simbolizada em uma senhora especialista em pássaros, só é derrubada pela realidade que se impõe na sequência no centro da cidade. Os pássaros voltam a atacar, e a ideia de Hitchcock se faz em toda sua força. Homens aprisionados, aves livres, ameaçadoras, violentas.
Hitchcock afirmaria sua intenção dessa perspectiva na famosa entrevista ao cineasta François Truffaut , “Hitchcock/Truffaut”, um dos mais importantes livros sobre cinema.
Ele relembra a sequência inicial na loja de pássaros, na qual Mitch ao capturar um pardal o recoloca na gaiola e diz: “recoloco você em sua gaiola dourada, Melaine Daniels”. Essa metáfora é reintroduzida na famosíssima parte em que Melaine ficará presa em uma cabine telefônica no ataque dos pássaros ao centro da cidade.
Melaine presa na cabine telefônica. Fonte: reprodução
Essa seria a prova de fogo da jovem, diz o diretor. Ela está presa, agora, em uma gaiola de infelicidade. As aves podem lhe ferir mais ainda, ela terá que acordar para um universo, um destino, que desconhecia.
O mundo não é feito apenas de vilas calmas e vidas rotineiras. A sorte, o augúrio e o imponderável dele também fazem parte. Não importa porque os pássaros atacaram.
Não por acaso, na sequência final, o aspecto de sonho e fantasia é preponderante. Ele ocorre no sótão, lugar onde se alojam coisas não rotineiras, ou coisas que deixamos para trás. Atacada, Melaine desfalece suspirando pelo nome de seu amado.
Não há mais nada a fazer sobre o augúrio consumado. A família atravessa um caminho onde os pássaros, como a sorte, o destino, estão a espreitar. Entrar no carro e deixar isso para trás talvez seja a única possibilidade de continuar.
Ao partirem, em primeiro plano está a imagem assustadora do lugar repleto de aves, ao fundo, está o carro, a vida, que segue um novo caminho.
Cena final. Fonte: Reprodução
Não deixa de ser instigante a ideia do diretor de brincar com um outro fim para o filme no qual, na fuga do juízo final de Bodega Bay, os passageiros do carro olhassem para a ponte Golden Gate e ela estaria coberta de pássaros. É um mundo como desafio interminável, sem complacência.
Complacência. Esse seria o tema do filme para Hitchcock. Para ele, é sob as dificuldades que as pessoas tendem a se sair melhores. Nem sempre se deve considerar a opinião de artistas sobre suas obras como verdade absoluta.
Mas, nesse caso, Hitchcock está dizendo, acorde! corvos bicam seus olhos.
A série veiculada pela Netflix neste novembro, “Toda luz que não podemos ver” (Direção de Shawn Levy), poderia ser, como tantas outras produções, sobre a vida em um mundo mergulhado na guerra, mas esse mundo, ou o que seria sua ambientação histórica, a invasão nazista da França na Segunda Guerra Mundial é, na verdade, apenas seu cenário, parte de sua mise-en-scène.
A série mostra a história de dois jovens em meio ao conflito. A francesa Marie (Aria Mia Loberti) e o alemão Werner ( Louis Hofmann ) estão em lados opostos da Guerra na cidade francesa de Saint-Malo .
Ela é uma jovem cega que faz transmissões de rádio clandestinas para avisar os bombardeiros aliados as posições alemãs. Ele é um jovem soldado alemão encarregado de vigiar as radiocomunicações da resistência francesa.
Marie utiliza o mesmo rádio que seu tio Etienne, “o professor” (Hugh Laurie ), usava antes da Guerra para suas transmissões. Werner, desde garoto um perito em rádios e que por isso se destacou militarmente, sempre ouviu na Alemanha a mesma frequência que o tio de Marie utilizava.
Separados pela guerra, o rádio os aproxima. Mas eles não se conhecem. Werner foi órfão e Marie, até a chegada das tropas alemãs, vivia uma vida feliz com seu pai, Daniel (Mark Ruffalo ), um funcionário de museu em Paris.
O drama está pronto. Está? Não, tudo isso se dá na série em meio à representação da invasão, mas o modo como é mostrado esse momento histórico o reduz quase que apenas a um pano de fundo em CGI (Imagens Geradas por Computador).
É claro que não se trata apenas da antiga discussão de que a ficção não tem obrigação de representar a realidade. Mas representações estéticas têm seu poder de persuasão.
Se assim não fosse, estaríamos negando toda a história da representação cinematográfica da política, dos conflitos, das guerras. Essas representações foram não apenas instrumento de entretenimento, mas, como se sabe, de deliberada propaganda.
Há centenas de filmes e séries sobre a Segunda Guerra . Alguns utilizam programaticamente o cenário e os contextos históricos para os mais diversos propósitos. Os mais frequentes desses motivos utilizados talvez sejam o amor, a dor e a esperança.
As representações imagéticas mostram esses motivos em conjunto com a ambientação história das mais diversas maneiras. Algumas exibem esses temas se relacionando com o contexto da realidade, tomando-o como elemento decisivo (“A ponte do Rio Kwai”, toma a dor, a resistência e a esperança dentro de um campo de prisioneiros), outras tratam essa ambientação como elemento influente, mas um tanto distante (“Casablanca” toma o amor impossível em uma cidade ainda possível).
Cartaz de "A ponte do Rio Kwai" (1957), de David Lean
E outras, bem..., outras se utilizam dos vários arquétipos da ficção para aparentar tratarem de um tema sério, mas que pode ser sentido apenas sintonizando uma frequência de paixão.
A série da Netflix parece se prender muito mais nessa frequência mais palatável da sensibilidade. Ela foi anunciada (com o grande reforço das mídias) como uma produção que trata sobre o nazismo (ou, pelo menos, sobre a ocupação nazista), mas sua estética emoldura esse tema histórico e dentro desse quadro emoldurado o seu relevo praticamente se perde.
A decisiva tomada da França , como triunfo e vingança; o avanço das forças alemãs em direção à Inglaterra; a fuga desesperada de milhões de pessoas e o terror nas cidades, por exemplo, surgem mais como algo que passa – e apenas passa – pela intriga central (os dois jovens) do que como algo que com essa intriga esteja indissoluvelmente ligada.
Não é que a invasão alemã, as separações de pessoas e a violência não sejam importantes na série. É que isso parece surgir como algo circunstancial, não como seu núcleo gerador da trama. Retire a caçada à pedra preciosa com poderes mágicos da série e... voilà! você entenderá do que estou falando.
“Mas esse tom histórico não era o propósito da série”, alguém pode argumentar, com algum grau de razão. Mas pode-se responder que, se esse não era o propósito, então a série poderia figurar em qualquer outro contexto, ou pretexto, correto?
A batalha da França. Fonte: commons.wikimedia.org
E aí está exatamente o ponto central. O núcleo de um drama quando obedece a certos padrões estéticos estanques, como bom e mal, inocência e bravura, vítima e algoz, ignomínia e honra, caracterizados e demarcados, ou sintonizados exatamente como um número de uma frequência de rádio, tende a não fornecer imagens que possam ir além da estrutura predominantemente sentimental do drama.
É conhecida, por exemplo, a argumentação de historiadores que apontam que se esperava por parte das forças francesas maior resistência, como fizeram os poloneses. Também se argumenta que a resistência francesa só se tornou efetiva após 1943, quando se percebeu que os aliados poderiam realmente ganhar a Guerra (Max Hastings, “Inferno: o mundo em guerra”).
Na série, essa figura da resistência é mostrada através do tio Etienne. Ele é de longe o melhor personagem da produção. Como um ex-combatente traumatizado da Primeira Guerra, ele vive solitário e triste, mas, com a chegada dos aliados, se dispõe a lutar e tem em sua sobrinha Marie sua seguidora.
Mas o colaboracionismo francês é visto através de uma mulher que dorme com o vilão alemão, o sargento Reinhold von Rumpel (Lars Eidinger).
Já o Governo de Vichy , o colaborador oficial dos nazistas, que teve como representante maior o General Pétain, aquele que foi ao rádio pedir para que os franceses parassem de lutar, nem sequer aparece na minissérie.
Mocinhos e vilões precisamente demarcados são uma das chaves sentimentais do enredo. Não há como não mencionar a caricatura do vilão maior, o sargento alemão, em seu histrionismo, trejeitos afetados e animalidade.
Cartaz de "Carlitos nas trincheiras". Fonte: wikimedia.org
Von Rumpel é a imagem dessa forma repetida e que, por isso, sobre ele recai na série, e por parte do espectador (não sem motivos), todo o sentimento incontido de justiça (vingança), quando ele desaba morto diante da joia com poderes mágicos que poderia salvá-lo de sua doença terminal.
Na narrativa histórica, o destino do comandante da cidade de Sant-Malo é um pouco diferente do sargento Rumpel da série, mas talvez seja mais interessante. Martin Gilbert, em “A Segunda Guerra Mundial: os 2.174 dias que mudaram o mundo”, é quem nos conta assim essa história:
“O comandante alemão de St. Malo, coronel Aulock, dera ordens para que o porto fosse defendido até o último homem. Quem desertasse ou se rendesse, declarara o coronel, não passaria de ‘um cão vadio!’. Hitler, extremamente impressionado com a determinação de Von Aulock, concedeu-lhe as Folhas de Carvalho que faltavam à sua cruz de Cavaleiro, mas a batalha foi tão rápida que a atribuição da medalha, em 18 de agosto, deu-se um dia após a rendição de Aulock”.
Na série, no último episódio, vemos o porto da cidade ser destruído. Mas quase nada sabemos do contexto em que a retomada da cidade se dá. A história se circunscreve, novamente, entre o casal e o vilão, como se o poder totalitário, a esperança e a luta da resistência e a ajuda dos aliados surgissem do nada em um céu de onde as bombas não param de cair.
E, para selar esse final, Marie e Werner, que acabaram de se conhecer pessoalmente e escapar da morte, dançam e se beijam, prometendo se reencontrar (sim, ele, desolado, se volta para ela enquanto os soldados aliados o prendem) ao final da Guerra. Deve vir 2ª temporada por aí.
Cena do filme "Paris está em chamas?" Fonte: IMDB
Querem um contraponto disso, com temática semelhante, mas com abordagem diferente? Vejam “Paris está em chamas?” (1966), de René Clément . O filme conta a luta da resistência francesa para libertar Paris em 1944. O que falta na série, a tentativa de uma contextualização histórica e a matização de personagens, está presente no filme; o que “falta” no filme, um romance como único cerne da narrativa, é o centro da série.
Ao final do filme de Clément, vemos imagens de época das comemorações pela retomada de Paris, o Arco do Triunfo lotado, a chegada do general De Gaulle , líder da resistência, sendo ovacionado. Ao final do último capítulo da série, surgem imagens históricas das cidades francesas destruídas. Esse momento é, na mise-en-scène da minissérie, a imagem verossímil mais impressionante.
“Originalmente lançada para explodir a cerca de 500 metros de altitude, a primeira bomba provocou efetivamente um clarão, um flash nuclear [...], clarão do qual a luz se infiltrou em todos os locais, nas residências e até nos porões, deixando sua impressão nas pedras. O mesmo ocorreu com as roupas e os corpos, pois o desenho dos quimonos tatuou a pele das vítimas”. (Paul Virilio. “Guerra e cinema”, 1984).
O prometeu norte-americano teria sido um patriota arrependido de ser o “destruidor de mundos”, ou suas ligações com a esquerda da época apontavam para um traidor?
Nolan não deixa dúvidas. Seu filme procura provar que aquele genial sujeito franzino foi ao mesmo tempo um homem de sua época que cumpria seu dever e, depois, um sujeito destroçado por algum sentimento moral.
É provável que a intenção central do filme tenha sido essa. Porque se você vai ao cinema à procura de um show de imagens sobre o poder de destruição atômica que assombrou o mundo em 1945, refaça seu espírito. Isso não existe nesse filme.
Fonte: https://filmow.com/
Estamos aqui diante de um fenômeno não incomum do cinema. A expectativa de que teremos uma pirotecnia que repetiria as trucagens, frases de efeito e plots inesperados que tanto marcaram a obra do diretor britânico.
Mas esse não foi o objetivo de “Oppenheimer”. É certamente o filme histórico de Nolan mais preso à realidade, digamos. Ou pelo menos à realidade à qual o longa-metragem toma.
Mais do que “Dunkirk” (2017) no qual ainda podemos ver algumas das famosas confluências temporais no ritmo de vai e vem que tanto encantaram os espectadores.
Se você quer ter um fundo mais prático para verificar essa “base de realidade”, veja o documentário “To end all war: Oppenheimer & the atomic bomb” (2023).
Nele, além de vários depoimentos, temos as falas dos autores, Kai Bird e Martin J. Sherwin, do livro no qual o filme se baseia, “Oppenheimer: o triunfo e a tragédia do Prometeu americano” (2006), e a participação do próprio Nolan. Depois de ver essa “prova de realidade” você poderá compreender melhor a ficção.
E compreenderá não porque ela é difícil, mas porque as disrupções temporais, tão caras à trajetória do diretor, que mostram o passado do protagonista, seu tempo já no projeto da bomba e sua posterior inquisição pela política norte-americana, confundem um pouco o espectador não habituado ao tema.
É certo que se a ideia do filme era representar Oppenheimer (Cillian Murphy) em suas contradições ele vai bem. Mas fica-se com a impressão de que um momento histórico tão decisivo da história da humanidade poderia ter uma representação melhor.
Por exemplo, a Conferência de Potsdam, que definiu as diretrizes da administração da Alemanha, assim como outros acordos com os países envolvidos na II Guerra, desaparece. Ela surge unicamente em um telefonema do General Leslies Grooves (Matt Damon) para o presidente norte-americano, Harry Truman (Gary Oldman).
Conferência de Potsdam. Stalin, Truman e Churchill. Fonte: Wikimedia commons
Como se sabe, essa carta na mão foi decisiva para os interesses dos Estados Unidos, exatamente porque o teste da bomba realizado com sucesso na região desértica de White Sands se dá um dia antes, 16 de julho de 1945, do início da reunião em Potsdam. Com essa informação, Truman poderia barganhar mais poder diante de Stalin .
Tudo bem, é ficção e o foco talvez não fosse esse. Mas em outros momentos tão importantes daquele período, resta ao espectador ou buscar por sua memória, ou fazer conjecturas diante da quantidade de informação que poderia dar, ainda mais, um fundo de realidade mais compreensível. Em estética isso se chama verossimilhança.
Essa capacidade de representação mais convincente, persuasiva, que pode ser tomada como realmente algo possível, no filme, por vezes, se prende muito mais a algumas representações quase obrigatoriamente clichês.
A atuação de Cillian Murphy está longe de ser um desastre, evidentemente. Mas em quase todo filme Oppenheimer, um homem com tamanho poder, parece que vai se quebrar não por uma explosão, mas apenas por um vento que balança os lençóis de um varal no deserto (vendo o filme você vai entender essa metáfora).
Talvez Oppenheimer não coubesse na ideia caricata que muitas vezes cientistas (malucos com cabelos em pé, baseados na imagem midiática de Einstein ) são mostrados por Hollywood.
As partes escuras mostram as marcas deixadas pelas roupas que esta vítima usava durante o clarão que causou queimaduras na pele . Fonte: Wikipedia commons
É verdade também que os depoimentos históricos demonstram que o nível de tensão, provocado por um tipo e uma quantidade de trabalho extenuantes, não poderia fazer sempre sujeitos vívidos, nem sujeitos que ignorassem por completo o que estava sendo construído.
Era impossível ignorar o que estava sendo construído. Mas mesmo as justificativas pelo fim da guerra, entoadas de modo vacilante pelo físico, não atingem na narrativa seu propósito de convencimento. E não creio que o filme teve vontade de, em algum momento, abordar essa questão com profundidade.
Edward Teller (no filme, Benny Safdie), o pai da bomba de hidrogênio, que na narrativa implora o apoio de Oppenheimer para continuar as pesquisas com a bomba H , demonstraria sua angústia sobre o projeto.
Max Hastings , em “Inferno: o mundo em guerra 1939-1945” (2011), transcreve um trecho de uma das cartas do pesquisador a um colega: “não tenho a menor esperança de limpar minha consciência. As coisas nas quais estamos trabalhando agora são tão terríveis que nenhuma quantidade de protestos ou de justificativas políticas salvará nossas almas”.
Os efeitos da bomba sobre as cidades japonesas não surgem, em imagens, em nenhum momento do filme. O foco é a expressão de Oppenheimer ao ver um conjunto de slides mostrados por um grupo de ativistas descrevendo a tragédia.
O pai da bomba está desolado. Em um auditório, no qual ele é recebido de modo eufórico com pessoas gritando Oppie! Oppie! Oppie!, ele ensaia um discurso patriótico. É vacilante. Os rostos das pessoas refletem um clarão, um flash nuclear, e começam a se desintegrar.
Um dia, quando entrava no ônibus voltando da faculdade para casa, sentou ao meu lado uma das pessoas que me inspiraram a fazer o curso de jornalismo. Era o jornalista Lúcio Flávio Pinto . Caramba! Tudo tremia e a voz embargou. Saiu um: “olá professor”. Sim, ele era professor na faculdade de comunicação naquela época, mas era muito mais do que isso para muitos de nós, era a ideia de que “um dia quero ser como esse cara”.
Para nós, sempre o ano que marca a passagem de um ritual em nossa vida tende a ser um ano revolucionário.
E 1994 foi mesmo. A banda Nirvana estava no auge, foi o ano de filmes como “Pulp ficton” e “O Profissional” e era ano da segunda eleição presidencial da nova república.
Mas, para mim, quando entrei na faculdade, acima de tudo, foi o ano que conheci pessoalmente Lúcio Flávio.
Eu era um garoto esguio, contaminado pelas ideias e pelos novos (nem tão novos, é verdade) conhecimentos com os quais a universidade e seu mundo adentram na cabeça de um jovem vindo, recentemente, do interior.
Naquela viagem de ônibus, depois de meu cumprimento, ele respondeu educadamente. Tímido, eu pensava.
Como usar palavras, se você acha que pode falar uma besteira logo de cara? Mas, apesar de tudo, a conversa fluiu, na medida do possível.
Capa da 1ª edição do JP. Fonte: https://www.icbsena.com.br/
Ao final, antes dele descer do ônibus, ele me deu um exemplar da primeira edição do “Jornal Pessoal”, a famosa edição com a premiada reportagem sobre o assassinato do ex-deputado Paulo Fonteles. Eu a tenho até hoje, muito bem guardada, entre meus documentos mais importantes.
Você já percebeu, caro leitor, que este é um texto de homenagem quase irrestrita. E é mesmo. Deve ser. Pessoas que são inspiradoras nunca deixam de povoar nossa imaginação e nossos objetivos. Ser grato ainda é uma honra para com o outro.
A leitura do “Jornal Pessoal” já era uma religião, um rito que se tornou cada vez mais importante e, em não poucos momentos, fonte de pesquisa incorporada aos meus trabalhos.
Mas voltemos à faculdade, onde Lúcio lecionava a disciplina história da imprensa. Em uma de suas aulas tivemos (Ah! A juventude é naturalmente pretenciosa) um embate a respeito de um livro.
Mais recentemente, ele lembraria desse fato em um pequeno texto muito generoso a respeito da minha carreira e do meu livro, o “Antropologia e Filosofia”.
Mas se enganam aqueles que pensam que isso tenha sido uma constante em seus comentários sobre o que escrevi.
Antes do seu pequeno texto generoso, Lúcio, sem citar meu nome, desceu a lenha sobre um livro que publiquei, porque nele citava uma influência de seu texto e outra da extinta “Agenda Amazônica” (um de seus empreendimentos jornalísticos) colocada no livro como epígrafe de um capítulo, mas não nas referências.
Para ele, um erro imperdoável, para mim, as outras referências no trabalho citadas, poderiam diminuir o erro. Na época fiquei furioso, pensei escrever uma resposta, mas deixei pra lá, poderia ser coisa só da minha imaginação (não era, tenho certeza agora).
Não saberia enumerar e nem lembrar o quanto, nesses anos de leitura do “Jornal Pessoal”, de seus livros e demais textos, aprendi, incorporei e refleti com suas abordagens e com suas ideias, e o quanto discordei muito de vários de seus argumentos e análises.
Foto: reprodução
No periódico, de política nacional, regional e internacional, líamos e comentávamos com colegas, família, amigos e vizinhos.
Minha edição da última quinzena rodava de mão em mão. Os mais próximos tomaram como hábito e perguntavam: “já tem o JP?”. Tenho certeza que muitos que lerão estas linhas tiveram experiência parecida.
Uma feliz coincidência ocorreria nesses anos. Meu irmão trabalharia com um dos irmãos de Lúcio Flávio em uma instituição. Ele, ao saber de quem se tratava, contou sobre minha leitura constante do Jornal Pessoal.
Alguns dias depois, meu irmão chegou com um enorme envelope de edições do Jornal que fora dada a ele por seu colega de trabalho.
Ainda por esses tempos eu entraria para o mestrado do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA), da UFPA, com um projeto de pesquisa sobre o jornalismo nos livros de Lúcio Flávio. Procuraria ali demonstrar como havia uma história do presente sendo feita nessa obra.
Mas, depois, por motivos que aqui não cabem, mudei de tema. Havia pouca coisa na academia sobre seu trabalho e isso é, e sempre foi, um dos incentivos para o que faço; trazer algo incomum para um âmbito (a academia) que ainda não lhe dirigiu o devido olhar.
Não há como desconsiderar, nessa trajetória de leitura, a parte cultural, que sempre finalizava as páginas do JP (e ainda presente, seu jornal está online).
Naqueles idos dos anos 90 e 2000 fazia ainda mais sentido porque ainda éramos muito verdes sobre escritores, cientistas, música. Quase tudo era incorporado como novo.
Quando ele publicou a série de livros sobre sua famosa coleção de jornais antigos de Belém, “Memória do cotidiano”, materiais que ele já havia começado a incorporar na “Agenda Amazônica”, aquilo foi um bálsamo sobre o desconhecimento dos textos e das imagens sobre a cidade.
Livro da série editada por Lúcio Flávio. Fonte: Estante virtual
Dizia-se antigamente, (ainda se diz?) e não era pejorativo, pelo menos não como é hoje, que jornalista tem um conhecimento genérico, fala de tudo um pouco. Mas o jornalismo de Lúcio escapava (e escapa) muito dessa generalidade. Na maioria das vezes, a sua generalidade era substanciada com uma profunda erudição sobre vários assuntos.
Seu conhecimento empírico sobre a realidade amazônica, conhecimento que poucos de nós temos, sempre foi profícuo, não pela demonstração de acumulação de informação, mas por aquilo que é próprio àquele que nutre esperanças de uma nova compreensão sobre o lugar, o compartilhamento do saber, a contextualização da região no mundo.
Hoje já poderia dizer que alguns desses assuntos, para mim, são temas de aprofundamento, mas naquele momento, tomávamos quase tudo como “verdade”.
Mais recentemente, soubera que Lúcio estava doente, mas, então, pouco tempo depois, soube que ele estava fazendo uma palestra em uma das faculdades que trabalhei.
Fui direto ao local. Ele em pé falando e a plateia atônita, como sempre. Sem titubear, atravessei todo o corredor central do auditório, interrompi sua fala e lhe dei um abraço caloroso.
Li, há alguns dias, um texto seu dizendo que ele vai se aposentar da atividade “jornalística pública diária”, devido à sua condição de saúde. Diz que vai se dedicar a outros projetos que ainda o permitem produzir.
Desejo-lhe toda saúde e que ele continue escrevendo, produzindo (ele está no instagram, https://www.instagram.com/lucioflaviopintoonline/). Que continuemos aprendendo, nos formando e não concordando (sim, discordar ainda é uma atividade que enobrece o conhecimento) com seus textos e ideias. Seu jornalismo já, há muito, é parte da realidade.
Agora, estou sentado novamente naquele ônibus, em 1994. Mas desta vez, antes de Lúcio Flávio sair, tomo coragem e aperto sua mão, dizendo firmemente: obrigado, mestre!
Billie Holiday cantando no Storyville club, Boston, em Outubro 29, 1955. Foto de Mel Levine. Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Billie_Holiday.png
No último domingo, dia 30 de abril, foi celebrado o Dia Internacional do Jazz . Aproveito a ocasião para seguir com uma lista de músicas do gênero musical, iniciada no texto anterior “Dia internacional do Jazz: 10 músicas para sentir”. Quem sabe, caro leitor, essas músicas, entre uma forte balada, ou uma música suave e terna, interrompam um pouco o dia a dia. Justamente porque precisamos seguir em frente, é que devemos sentir a música, o resto “não significa nada” (“It Don’t Mean A Thing”).
“It Don’t Mean A Thing (If It Ain’t Got That Swing)” é o título de um hino jazzístico composto por Duke Ellington e gravado em 1932. É um dos símbolos do dançante estilo “swing” e representa toda variabilidade do músico norte-americano.
Em uma cena do filme “Cotton Clube” (1984), de Francis Ford Coppola, no backstage do clube os músicos comentam que “The Duke” estará presente. Esse era o apelido de Ellington que se apresentou por vários anos no lendário clube de Nova Iorque.
A excitação com a notícia não era para menos, Ellington já era considerado um dos maiores músicos do deu tempo e tomado como um “nobre”, por sua elegância e genialidade, no mainstream do jazz.
Há muitas versões de “It Don’t Mean A Thing”. Se você quiser pegar o espírito da força do swing dessa música, ouça a gravação ao vivo de Ella Fitzgerald e Ellington no álbum “Ella and Duke at the Cote D'Azur”, de 1967. Há algo parecido na apresentação dos dois, disponível em vídeo, no Ed Sullivan Show em 1965.
Vamos baixar um pouquinho o tom e nos deixarmos levar pela maviosa voz de Dinah Washington na famosíssima “What Difference A day Makes”, de 1959. Lenta, compassada, a letra de Stanley Adams é uma declaração ao ser amado e à beleza da vida que retorna e afasta o que antes parecia lúgubre e que dissipa a chuva, a tristeza e a solidão.
É uma enorme injustiça limitar Dinha Washington a essa canção, suas interpretações são repletas de uma densidade melódica raramente vista em outras cantoras do gênero. Em “What Difference...” isso surge, mas é uma parte do que se pode deleitar com o talento de Washington.
Uma curiosidade (não gosto de curiosidades, mas aqui é uma certa justiça), a música original, quase sempre esquecida quando mencionada a versão em inglês, é “Cuando Vuelva a tu Lado”, de 1934, da compositora espanhola María Grever .
Após ouvir a versão de Dinah espero que você perceba “que diferença um dia faz” (“What Difference A day Makes”), ou como se diz em bom português, “que bom que você voltou”.
Sigamos com a pujança de Lee Morgan e perceba como o trompete é capaz de fazer variar as emoções, enfatizando-as, espaçando-as, condensando-as. É o que “Sidewinder”, de 1964, com sua marcante base de piano, nos dá no álbum de mesmo nome.
Álbum considerado umas das gravações seminais do jazz (veja, por exemplo, a explosão rítmica da faixa “Totem pole”). O disco tem a inigualável companhia de Joe Henderson no Sax e é um dos orgulhos da histórica gravadora Blue Note. O sucesso foi estrondoso à época.
Lee Morgan foi um músico prodígio não só pela idade que começou a gravar com grandes nomes como John Coltrane, mas por demonstrar as suas linhas melódicas tocadas com um perfeccionismo só comparado a outros monstros como Clifford Brown (sua grande influência).
Seguindo a sina do jazz, Morgan após um período de crise pessoal, e depois do sucesso da música de 1964, morreria aos 33 anos, vítima de um tiro disparado por sua mulher no intervalo de um show, em 1972. Mas ele continua no compasso inesquecível dessa música e no panteão do estilo com esse álbum.
Como não seguimos uma sequência de importância neste texto, Charlie Parker chega para “bagunçar” a festa. Isso mesmo, nenhum outro músico foi tão importante na modificação melódica do sax e, também, do jazz do que Parker.
Essa revolução que originou o estilo Bebop se tornará icônica na célebre música “Billie's Bounce”, de 1945. Ela possui o fraseado que ele imprime nas músicas de mesmo estilo como “Koko” (verdadeira expressão, com todas suas modificações harmônicas, da revolução do Bebop).
Quase todos conhecem a história do mitológico Parker, mas se você, sendo amante ou não de jazz, quiser ter uma versão em filme da vida do músico, veja o longa-metragem “Bird” (1988), de Clint Eastwood , uma bela representação da história das quedas e glórias de Bird (como Parker era conhecido).
Naquele momento o Bebop vinha, com um olimpo de músicos como Miles Davis (então com 19 anos), Dizzy Gillespie, Bud Powell, ocupar o lugar do ritmo Swing e das Big bands .
Na verdade, ocupar o lugar é um eufemismo, ele veio mesmo foi mudar a história da música.
E mudou. Um dos símbolos da origem dessa mudança é “Night in Tunisia” (1942), do trompetista Dizzy Gillespie .
Um dos standards mais famosos do jazz já demonstrava como ele se modificaria com a introdução de outros estilos musicais, como novas formas rítmicas, mas sem perder a beleza que marca essa forma musical e, especialmente, a calma e expansiva música de Dizzy.
Veja na versão remasterizada gravada com Charlie Parker. Essa exuberância do trompete de Gillespie, a marcação perfeita do ritmo e, ao mesmo tempo, a sua variação, em possibilidades que parecem intermináveis, são algumas das características dessa canção.
“Nigth in Tunisia” é obrigatória em toda jam session de jazz que se preze. E, se você for a um clube onde estiver ocorrendo uma e eles não a tocarem, educadamente, exija-a.
Já escrevi em outra ocasião sobre a importância de João Gilberto nessa história ( “João Gilberto: o mito”). Aqui estamos diante não apenas dos metais (instrumentos de sopro) que tanto caracterizam o jazz, mas da introdução definitiva para esse mundo de um novo ritmo no violão e na inigualável interpretação do músico brasileiro.
Além do sucesso arrebatador no mundo inteiro de “Garota de Ipanema” (uma das canções mais executadas na época e, até hoje, uma das mais regravadas), a bela “Corcovado” ( “Quiet Nights Of Quiet Stars” ), que por aqui, foi até tema de abertura de novela, traz todo o espírito da Bossa nova e conta com um toque magistral do notável saxofonista Stan Getz.
Repito aqui o que escrevi: “Nesse aspecto, sua glória internacional, está ligada à música norte-americana. O álbum "Getz /Gilberto", de 1969, foi um fenômeno em todos os sentidos.
Ele consolidou e expandiu mundialmente a bossa nova. Presente em especiais de TV, em filmes e séries, a música de espírito carioca, se tornaria uma música-mundo.
O pai da bossa nova estaria inserido em um circuito musical inaudito para qualquer outro músico brasileiro, com exceção, à época, e graças à bossa, de Tom Jobim”.
Agora, o exibido (quase sempre com todos os motivos para isso) Miles Davis chega com os óculos escuros, enfunando o peito e dizendo pra todo mundo como se deve conduzir a harmonia.
Davis gera polêmica até hoje, evidentemente. Uns apontam a performance de “Kind of blue” como o seu melhor, outros não se dobram e bradam o icônico “Round About Midnight”, de 1957.
É nesse que temos a música “Round Midnight”, uma das mais executadas quando o tema é noite chuvosa, ruas esfumaçadas, pessoas solitárias e neon piscando nas faixadas de bares.
A música é do homem de dedos que pareciam baquetas, o aclamado pianista Thelonius Monk . Mas entrou mesmo para a galeria das versões incomparáveis, com Miles.
Nela, uma introdução do trompete dominando o espaço, no estilo de Davis, como um som domado, misterioso, introvertido e solitário. Sim, a alusão é a uma figura que está na solidão da noite, da cidade, de si mesma.
Vejam nessa preciosidade que é a versão ao vivo em vídeo com o Quinteto de Miles, em 1967, em Estocolmo.
Aí estão alguns dos maiores músicos de jazz de todos os tempos, variando o tema, com Miles retomando-o com uma finalização quase abrupta após as experiências harmônicas de seus companheiros.
E já que falamos dele, não há como deixar de lado o homem que, para muitos, virou de cabeça para baixo o piano no jazz, Herbie Hancock , o embaixador do Dia Internacional do Jazz e, certamente, um dos mais prolíficos músicos do estilo.
Para se ter uma ideia, alguns connaisseurs, como Vinicius Mesquita, afirmam que sem ele, talvez, o “Acid jazz” (uma fusão do jazz com estilos como o funk, a soul music e o disco), ou até mesmo o Hip hop não teriam existido.
Quer ter uma noção disso? Escute o V.S.O.P (Very Especial Old Product) que cito aqui como forma de, tanto homenagear os membros desse grupo, os mesmos do Quinteto de Miles, com exceção de Freddie Hubbard (trompete), como para percebermos como o estilo mudou no decorrer do tempo e, com ele, os estilos dos músicos.
Essas mudanças de época, de tom, de sentido do jazz estão plasmadas, por exemplo, em “Para Oriente” (1979) do álbum “Live Under the Sky”.
Aí estão os resultados das várias experiências do jazz com outras possibilidades estilísticas, mas notem como o piano pulsante de Hancock salta para fora para acentuar sua dominância da cadência na música. É o embaixador do jazz em seu estado puro.
Pureza é tudo que não mais existe na versão de “Take ‘a’ train” do elogiadíssimo álbum “Study in Brown” (1955) do já mencionado trompetista Clifford Brown e do baterista Max Roach .
Não existe pureza porque a música é de Duke Ellington e, originalmente, é um swing que imita a partida de um trem. Há um vídeo de Ellington do filme “Reveille with Beverly” (1943) no qual sua banda surge dentro de um vagão representando a ideia da música.
Mas na versão de Brown e Roach o trem (a música) não só parece ir mais rápido, mas, principalmente, sua velocidade já não é para dançar, e sim para escutar as possibilidades que o Hard bop trouxe com a maior aceleração dos andamentos que o bebop, proporcionando uma intensidade que terá na assinatura dessa música e desse álbum uma das melhores expressões.
O trem está no começo e no final da canção, mas ele não embala mais as pessoas como em Duke, ele as desperta, sacudindo-as.
Digamos que seja final do dia e você agora pretende estar contemplativo. E, se for para ouvir a canção seguinte, deve. Exatamente porque trata-se, agora, da representação de um sublime, mas de um sublime diferente.
No texto anterior, mencionei Billie Holiday , nesse, a deixarei com vocês na interpretação de uma canção que, não por acaso, é, e deve, ser muito mais do que isso. Sim, senhoras e senhores, trata-se de “Strange Fruit”.
Como mencionei anteriormente ( “Billie Holiday, Strange Fruit e 100 anos do Jazz”), “a música surgiu de um poema de Abel Meeropol sobre os linchamentos de negros que ocorriam nos Estados Unidos após a Guerra Civil. A inspiração teria vindo de uma fotografia de uma dessas atrocidades ocorrida em 1930, em Marion, Indiana. Esse é o tema de Strange Fruit.
Nenhuma versão se aproxima do que Billie fez. Há um vídeo de Holiday, de 1959, em Londres. Vejam. Ali, Billie, em seu derradeiro momento, encarna a música e a música a define.
Ali está, não importa se em sua fase de decadência ou não, diz David Margolick em seu fabuloso livro ‘Strange Fruit: Billie Holiday e a biografia de uma canção’, ‘a experiência de ouvir e ver Billie Holiday cantando Strange Fruit: os olhos fechados, a cabeça jogada para trás, a gardênia de sempre atrás da orelha, o batom rubi realçando a pele escura, os dedos estalando de leve, as mãos segurando o microfone como se fosse uma xícara de chá’”.
Como se sabe, o jazz está profundamente ligado a vários contextos históricos decisivos. Espero que quando leia este texto possa aproveitar o máximo possível o que o estilo e as músicas podem proporcionar, e possa fruir, verdadeiramente, os sentidos das canções. Se isto for atingido, o resto “não significa nada” (“It Don’t Mean A Thing”).
É tarde de 31 de dezembro de 2022. Em uma loja de conveniência, em um dos cruzamentos mais movimentados de Belém , uma senhora sozinha, de aproximadamente 80 anos, pergunta ao balconista se eles vão abrir no dia seguinte. Ele diz que sim, “funcionaremos normalmente”. Ela, então, agradece e caminha lentamente, provavelmente, de volta para casa. Eu não a conheço, mas vou chamá-la de “Andreia” (coragem, em grego).
A dois quarteirões, próximos dali, um grupo de pessoas, em sua maioria idosos, reúne-se em frente a uma casa, como faz todos os dias. As calçadas largas da rua, a aparente tranquilidade e um hospital que fica em frente devem promover, ainda mais, os olhares e as conversas, e favorecerem a manutenção desse hábito, já residual na grande cidade.
Homem ao final da tarde. Foto: Relivaldo Pinho
A cidade parece proporcionar formas de convívio diferentes. Pessoas sozinhas, não necessariamente solitárias, e pessoas que em grupo parecem dividir os mesmos interesses.
Belém, nesse sentido, no aspecto de reunir pessoas, é uma comunidade. Mas poderia, ainda, a cidade ser considerada uma comunidade política?
Aquela em que a sua principal finalidade (estou transpondo, com certa indisciplina, a ideia de cidade-estado para uma ideia moderna de cidade) é promover um bem, lembrando, distantemente, a definição de Aristóteles , no famosíssimo início da obra “Política”?
Busto de Aristóteles, do escultor grego Lysippos, ao lado de uma cópia do livro Ética a Nicômaco do século XIV. Fonte: https://www.netmundi.org/filosofia/2017/aristoteles-cientista-da-antiguidade/
A concepção naturalista da cidade (cidade-estado, pólis ) aristotélica, como se sabe, propõe que os indivíduos se unem porque a natureza assim os impele, para sua própria sobrevivência e permanência.
Não apenas isso, a cidade precede o indivíduo, já que, para o grego, a parte apenas se define pelo todo. É o viver na coletividade política (na cidade-pólis) que define o homem.
Daí que para Aristóteles viver na cidade-estado não é apenas viver em conjunto, mas viver bem. Isso significa que a natureza da cidade, do estado, como nós ainda adotamos, é a promoção do bem comum, essa é sua definição.
O indivíduo, que tem o dom da fala, ao contrário dos outros animais, e que por isso detém o poder de escolher e julgar, pode, investido de justiça e moral, criar uma coletividade voltada para aquilo que o define, ser um animal político ( “zoón politikon”).
Quase todos conhecemos essas argumentações, aqui abruptamente resumidas, do filósofo grego, exatamente porque, dentre outras coisas, elas fundamentaram grande parte da compreensão da política e do estado por séculos.
Belém não é uma “pólis”, evidentemente, mas o espírito do viver em comum (a analogia aqui é mais inspiradora que comparativa) ainda nela habita.
Nessa múltipla urbe, uma senhora entra em uma loja buscando manter seu hábito; um grupo de pessoas, pelo mesmo motivo, junta-se para conversar.
Ambos, de certo modo, desafiam a ideia de uma cidade, como Belém, que em quase tudo parece não atender ao chamado do viver em conjunto, que dela se participe, realizando a sua finalidade, a finalidade do cidadão (o conceito de cidadão da Grécia antiga tinha relação com a participação política direta ou indiretamente, mas nem todos, como se sabe, eram considerados cidadãos) de participar do bem comum.
Mas, aqui, não é Belém ou o ente estatal somente a proverem esse comportamento, esse hábito, esse bem.
Planos citadinos I. Foto: Relivaldo Pinho
De certo modo, há ainda, não no sentido estritamente aristotélico, uma cidade que permanece apesar da fragmentação do ambiente citadino e mesmo com a inequívoca ausência de um estado enquanto poder.
A atitude da senhora e do grupo da calçada parecem exclusivamente individuais, mas não são. São comportamentos de um sentido maior, sentidos que permanecem em uma grande cidade como Belém.
No caminhar sozinha de casa para a loja, a senhora queria se assegurar que, mesmo em uma data incomum, ela iria conseguir seu pão, ou doce, onde sempre compra.
Há um hábito de sair de casa e se comunicar com a cidade, há uma tradição que, sendo assegurada, satisfaz, para a metódica cidadã, a sua doméstica riqueza, sua vida.
Os que ainda permanecem nas frentes de suas casas desejam apenas manter-se na calçada, essa extensão da casa que se comunica com a rua, sendo uma interseção ainda possível entre as separadoras grades de janelas e portas e uma certa necessidade de se integrar, com os outros, ao espaço citadino.
Se a noção de cidadão na antiguidade grega se liga à ideia de participação política na cidade-estado, na contemporânea cidade, essa noção parece cada vez mais distante.
Talvez a distância entre o indivíduo e o estado não possam suscitar essa direta participação como em momentos da antiguidade helênica.
Ângulos. Foto: Relivaldo Pinho
Não só porque a participação representativa indireta na cidade, no estado ocidental, se tornou uma das formas mais aceitas há muitos séculos. Mas, possivelmente, porque, com o distanciamento do aparato burocrático político, restou a uma parte dos cidadãos gritar em frente à TV, enraivecer-se diante de uma mensagem no celular, comprar um pão, ou ficar em frente de sua casa.
Você, estimado leitor, pode estar pensando que a senhora da conveniência poderia pedir seu produto pelo aplicativo, e que, por outro aplicativo, os contempladores da calçada poderiam manter suas conversas.
Sim, poderiam, e não há motivos para questionar que ambos os comportamentos se complementem hoje.
Mas, talvez, exista um elã que faça alguém sair de casa, congraçar-se com aquele caminho da cidade, e falar diretamente com alguém, mesmo que seja para fazer uma pergunta simples.
Haveria um mesmo motivo no ato de se estender para além dos quartos, salas e telas de celular e olhar para os outros e, principalmente, olhar para os outros e a cidade.
Pode parecer romântico, mas é possível que haja um certo cerne irremovível de nossa atitude gregária, de participação da cidade, que ainda, para lembrarmos Aristóteles, de algum modo nos defina – “zoón politikon”.
Na Belém do amanhã, espero passar novamente pela rua dos que ficam sentados na calçada e espero, antes, encontrar dona Andreia na fila do pão.