Ricardo Gessner

busca | avançada
111 mil/dia
2,5 milhões/mês
Mais Recentes
>>> Cia Truks comemora 35 anos com Serei Sereia?, peça inédita sobre inclusão e acessibilidade
>>> Lançamento do livro Escorreguei, mas não cai! Aprendi, traz 31 cases de comunicação intergeracional
>>> “A Descoberta de Orfeu” viabiliza roteiro para filme sobre Breno Mello
>>> Exposição Negra Arte Sacra celebra 75 Anos de resistência e cultura no Axé Ilê Obá
>>> Com Patricya Travassos e Eduardo Moscovis, “DUETOS, A Comédia de Peter Quilter” volta ao RJ
* clique para encaminhar
Mais Recentes
>>> A vida, a morte e a burocracia
>>> O nome da Roza
>>> Dinamite Pura, vinil de Bernardo Pellegrini
>>> Do lumpemproletariado ao jet set almofadinha...
>>> A Espada da Justiça, de Kleiton Ferreira
>>> Left Lovers, de Pedro Castilho: poesia-melancolia
>>> Por que não perguntei antes ao CatPt?
>>> Marcelo Mirisola e o açougue virtual do Tinder
>>> A pulsão Oblómov
>>> O Big Brother e a legião de Trumans
Colunistas
Últimos Posts
>>> O MCP da Anthropic
>>> Lygia Maria sobre a liberdade de expressão (2025)
>>> Brasil atualmente é espécie de experimento social
>>> Filha de Elon Musk vem a público (2025)
>>> Pedro Doria sobre a pena da cabelereira
>>> William Waack sobre o recuo do STF
>>> O concerto para dois pianos de Poulenc
>>> Professor HOC sobre o cessar-fogo (2025)
>>> Suicide Blonde (1997)
>>> Love In An Elevator (1997)
Últimos Posts
>>> O Drama
>>> Encontro em Ipanema (e outras histórias)
>>> Jurado número 2, quando a incerteza é a lei
>>> Nosferatu, a sombra que não esconde mais
>>> Teatro: Jacó Timbau no Redemunho da Terra
>>> Teatro: O Pequeno Senhor do Tempo, em Campinas
>>> PoloAC lança campanha da Visibilidade Trans
>>> O Poeta do Cordel: comédia chega a Campinas
>>> Estágios da Solidão estreia em Campinas
>>> Transforme histórias em experiências lucrativas
Blogueiros
Mais Recentes
>>> Francis Ford Coppola
>>> Retrato em branco e preto
>>> Marcha Sobre a Cidade
>>> Canto Infantil Nº 2: A Hora do Amor
>>> Osesp, 01/06 - Bruckner
>>> Eu quero é rosetar
>>> O Velho e o Grande Cinturão dos Peso-Pesados
>>> George Sand faz 200 anos
>>> Riobaldo
>>> André Mehmari, um perfil
Mais Recentes
>>> Heroinas Negras Brasileiras - Em 15 Cordeis de Jarid Arraes pela Seguinte (2020)
>>> Diário De Um Zumbi Do Minecraft - Parceiros E Rivais de Ana Ban pela Sextante (2015)
>>> Comunicação Entre Pais E Filhos de Maria Tereza Maldonado pela Integrare (2008)
>>> Memorias De Um Sargento De Milicias de Manuel Antônio De Almeida pela Ateliê Editorial (2006)
>>> Mercado de Opções - Conceitos e Estratégias de Luiz Mauricio da Silva pela Halip (2008)
>>> O Príncipe Medroso E Outros Contos Africanos de Anna Soler-pont pela Companhia Das Letras (2009)
>>> French Liberalism From Montesquieu To The Present Day (hardcover) de Raf Geenens - Helena Rosenblatt pela Cambridge University Press (2012)
>>> Naruto Gold - Vol.8 de Masashi Kishimoto pela Panini (2016)
>>> Naruto Gold - Vol 7 de Masashi Kishimoto pela Panini (2016)
>>> Naruto Gold - Vol.9 de Masashi Kishimoto pela Panini (2016)
>>> O Apanhador No Campo De Centeio de J. D. Salinger pela Editora Do Autor (2012)
>>> Os Ratos de Dyonelio Machado pela Planeta (2010)
>>> Venha Ver o por do Sol e Outros Contos (edição escolar - suplemento de leitura) de Lygia Fagundes Telles pela Atica (2018)
>>> Claro Enigma de Carlos Drummond De Andrade pela Companhia Das Letras (2012)
>>> Tudo Depende De Como Você Vê As Coisas de Norton Juster pela Companhia Das Letras (1999)
>>> Adeus, China: O Ultimo Bailarino De Mao de Li Cunxin pela Fundamento (2010)
>>> Escravidão de Laurentino Gomes pela Globo Livros (2019)
>>> Gerenciamento De Ativos E De Passivos de Jean Dermine e Yousset F. Bissada pela Atlas (2005)
>>> Enquanto O Dia Não Chega de Ana María Machado pela Alfaguara (2013)
>>> Vivendo Perigosamente de Osho pela Alaúde (2015)
>>> Raízes: Os Princípios Da Fé de Marcos Paulo Ferreira e Igor Storck Da Silva pela A. D. Santos (2009)
>>> Onde Foi Que Eu Acertei de Francisco Daudt Da Veiga pela Casa Da Palavra (2009)
>>> Bagagem Para Mães De Primeira Viagem de Laura Florence e Ana Paula Guerra pela Jaboticaba (2004)
>>> Persépolis de Marjane Satrapi pela Quadrinhos Na Cia (2007)
>>> Ensina-me A Rezar de Padre Juarez De Castro pela Petra (2015)
BLOGS

Domingo, 23/9/2018
Ricardo Gessner
Ricardo Gessner
 
A dignidade da culpa, em Graciliano Ramos

Em 1934, um brasileiro nascido na cidade de Quebrângulo, Alagoas, chamado Graciliano Ramos, publicou o romance São Bernardo. É um livro que põe o dedo numa ferida sempre aberta, por mais esforços que se faça para silenciá-la: o sentimento de culpa. E não seria exagero dizer que a obra mereceria estar ao lado de Crime e Castigo (Fiódor Dostoievski), Ressurreição (Leon Tolstói) ou Metamorfose (Franz Kafka), num panteão de obras essenciais ao entendimento da natureza humana, não fosse a língua portuguesa que a condenou a ser um “galho menor de um arbusto secundário dos jardins das musas”. Ora, no jardim das musas não há arbustos secundários, e os leitores de língua portuguesa também têm seus privilégios.

O romance é uma espécie de autoanálise em que Paulo Honório, narrador-personagem, reconta a história de sua ascensão social, graças às falcatruas, emboscadas, relações de falsa amizade e interesse. Relembra de como levou Luís Padilha (antigo dono e herdeiro da fazenda São Bernardo) à falência; de como planejou o assassinato de seu vizinho para expandir suas terras; de como perdeu o interesse pelo próprio filho; de como levou sua esposa, Madalena, ao suicídio.

Diante de tais atrocidades, Paulo Honório lamenta-se de uma, em específico: a consciência de não conseguir sentir culpa. Apesar de pequenos indícios de aflição, trata-se de um sentimento ambíguo, pois não brota de um arrependimento, mas da consciência de ser incapaz de arrepender-se. Diz Paulo Honório: “Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos... Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige”; ou seja, mesmo se tivesse uma segunda chance, não faria diferente. Noutra situação, quando manifesta a ausência de amor pelo filho, sua expressão é emblemática: “Nem sequer tenho amizade a meu filho” – veja-se a precisão e sutileza com que se expressa: nem sequer “amizade” sente pelo filho, ou seja, nem mesmo o mínimo de afeição esperada, ao que se completa: “Que miséria!”.

A interjeição diante da falta de “amizade” pelo filho – “que miséria!” – é reveladora. Paulo Honório reconhece a miséria de sua própria condição moral. “Reconhecimento” é um item importante nas tragédias gregas: é o momento em que o herói reconhece sua condição de desgraça. Nesse sentido, São Bernardo é um romance trágico, construído sobre um paradoxo: à medida que Paulo Honório ascende socialmente, decresce moralmente. É uma ironia presente no próprio nome do protagonista: “Honório” provém de “honorius”, que em latim significa “honorífico”, “honrado”, sendo sua raiz etimológica: “honor”: “honra”; entretanto, toda sua honra se restringe à sua condição social, não moral.

A grandiosidade do romance está na figura de Paulo Honório ao reconhecer sua condição moral miserável e assumi-la como sua responsabilidade. Obviamente que não elogio suas ações criminosas, nem as defendo. Por outro lado, ele não mente para si mesmo: “Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu”. Se por um lado é uma fala que revelaria a perversidade do protagonista, por outro é um gesto de coragem, de alguém que assume a responsabilidade diante de sua condição de desgraça, consciente da própria incapacidade de se libertar.

A atualidade de São Bernardo não está na construção do típico “sinhozinho” que é Paulo Honório; não está na caracterização do explorador avaro e sem sentimentos; não está na crítica ao “capitalismo perverso que corrompe as pessoas”. A atualidade de São Bernardo está em ser um contraponto a um mundo que facilita e, silenciosamente, valoriza a mentira para justificar ou negar as próprias falhas, medos e fraquezas. Se Paulo Honório justificasse o suicídio de sua esposa pela adesão ao comunismo – “Comunista, materialista. Bonito casamento!”, exclama o narrador em pensamento, durante uma conversa a respeito de sua esposa –, seria menos doloroso. Contudo, seria menos honesto, menos consciente.

Quando Paulo Honório assume sua responsabilidade diante da própria vida, quando assume ser o culpado de sua desgraça, torna-se moralmente digno, pois sua coragem e sobriedade merecem respeito. Um gesto raro.

Um dos itens que compõe uma obra clássica é a contribuição para um entendimento mais profundo de nossa natureza e condição. São Bernardo é um clássico.

[Comente este Post]

Postado por Ricardo Gessner
23/9/2018 às 15h59

 
Em defesa do preconceito, de Theodore Dalrymple

Recentemente conclui minha releitura do livro Em defesa do preconceito, de Theodore Dalrymple, cujo estilo de escrita não me canso de ler. O título é claramente provocativo; alguns argumentariam que se trata de uma jogada de marketing para chamar nossa atenção. Que seja, pois nesse gesto de “chamar a atenção” ele também revela, sutilmente, a nossa ignorância diante da aplicabilidade do termo “preconceito”, com larga aceitação (ou rejeição), mas, ao mesmo tempo, feita de maneira irrefletida e, não raro, mecânica.

Normalmente o “preconceito” está associado a uma atitude de repúdio anterior à experiência; de rejeitar algo ou alguém antecipadamente, sem conhecimento ou segundo critérios infundados, como: cor da pele, do cabelo, nacionalidade etc. Nesse sentido, “preconceito” é algo deletério; como poderia alguém escrever um livro em sua defesa?

Não é esta acepção que Dalrymple aplica; segundo o autor, há um matiz conceitual que define o “preconceito” como um conjunto de valores morais preconcebidos, construídos ao longo da história e mantidos através da tradição. Diferentemente da acepção comum, neste caso o “preconceito” é algo benéfico e salutar. Nesse sentido, o livro de Dalrymple é tanto uma defesa quanto uma crítica: defende os valores tradicionais e critica aqueles que, sob as mais variadas (e, não raro, infundadas) justificativas, pretendem destruí-los.

Em primeiro lugar, uma pessoa que se declara viver sem preconceitos e os contesta é uma espécie de cartesiano, pois articula um modus operandi similar: se René Descartes preocupou-se em fundamentar um posicionamento filosófico puro, isto é, sem o menor resquício de dúvidas e, desse modo, garantindo-lhe maior segurança para construir um raciocínio o mais próximo da Verdade, alguém “sem preconceitos” almeja, analogamente, um lugar “puro”, sem o menor resquício de preconceito e, assim, apresentar-se como alguém “superior e livre de ideias pré-concebidas”. Em síntese, ao invés da projeção de dúvidas, projetam-se “preconceitos”: “A popularidade do método cartesiano não decorre do desejo de remover as dúvidas metafísicas e encontrar a certeza, mas o que ocorre é precisamente o oposto: jogar dúvida em todas as coisas e, portanto, aumentar o escopo de licenciosidade pessoal ao destruir, de antemão, quaisquer bases filosóficas para a limitação dos próprios apetites” (p. 21)

No entanto, a conduta “anti-preconceito” se apoia numa crítica aos valores tradicionais como forma de justificar filosoficamente comportamentos pessoais licenciosos, assim como alargar (se não, abolir) os limites em torno “dos próprios apetites”. Entenda-se “comportamentos pessoais licenciosos” como sendo os interesses de ordem pessoal, que normalmente são restringidos por alguma “autoridade moral”, por “valores tradicionais” ou algo do gênero.

“Então, subitamente, todos os recursos da filosofia lhes são disponibilizados, e serão imediatamente usados para desqualificar a autoridade moral dos costumes, da lei e da sabedoria milenar” (p. 22)

A História torna-se o centro de contestação, visto que foi através dela – ao longo do desenvolvimento do tempo – que determinados “preconceitos” se formaram e se perpetuaram. Contudo, reconstituir o passado requer uma postura seletiva em relação ao modo e ao que será narrado. Nesse ínterim, um estudioso pode projetar anseios predeterminados ou ideológicos, estabelecendo-os como critério científico de seleção; desse modo, reconfiguram-se outras possibilidades de narrativa histórica, mas que apenas devolve o seu interesse; diz o que se quer ser ouvido.

Um “liberal sem preconceitos”, quando pretende deslegitimar a “autoridade imposta” ao longo da história, estabelece o seu interesse ideológico como critério. Esse gesto demonstra a consequência imediata do combate ao preconceito, cujo resultado não é a sua abolição, mas, no máximo, a substituição por outro preconceito.

“Derrubar determinado preconceito não significa destruir o preconceito enquanto tal. Na verdade, implica inculcar outro preconceito” (p. 39)

Nesse sentido, a família, a educação, a história, as artes, a religião, tornam-se alvo de críticas, em que os “caçadores de preconceito” pretendem desmontar a “autoridade repressiva” detrás esses valores. Mas qual o resultado? O que é proposto no lugar? As respostas são várias e estão apresentadas ao longo dos 29 capítulos do livro. Exemplifico com apenas um: as consequências no campo da educação.

“Se alguém se vê moralmente obrigado a limpar a sua mente dos detritos do passado para que possa se tornar um agente moral completamente autônomo, isso implica o dever de não jogar na mente dos mais jovens, os detritos produzidos por nós. Não causa surpresa, portanto, constatar que, de forma crescente, investimos as crianças de autoridade para que administrem as suas próprias vidas, e isso é feito com crianças cada vez menores. Quem somos nós para dizer a elas o que fazer?” (p. 31)

Em termos práticos, isso leva a uma perda de autoridade dos pais diante dos filhos. Na verdade, não se trata precisamente de uma “perda”, mas de uma delegação – consciente ou não – às crianças da responsabilidade de decidirem o que querem comer, assistir, falar, fazer; quando querer dormir, acordar, ir à escola, sem qualquer critério (isto é: valores) pré-estabelecidos. Se isso é visivelmente um gesto de imprudência, que tipo de pais poderiam confiar tamanha responsabilidade aos seus filhos, ainda imaturos?

“Pais preguiçosos e sentimentais, sem dúvida” (p. 33)

As consequências disso podem ser vistas desde em um supermercado, quando uma criança ordena, aos berros, para que lhe compre um pacote de bolachas recheadas para o jantar, ao que a mãe lhe obedece e responde, meio sem graça, às pessoas ao redor: “Ele é assim mesmo”; até a desordem que predomina nas escolas, em que professores são agredidos direta ou indiretamente, física e verbalmente, sem qualquer respeito à sua (antiga, tradicional) autoridade. Em síntese: um mundo predominado de gente mimada e sem o senso de responsabilidade e respeito, que são outros valores tradicionais.

Como o bem disse Dalrymple, numa síntese magistral: “(...) o sábio questiona apenas aquelas coisas que merecem questionamento” (p. 63)

Ora, se por um lado foram os intelectuais quem iniciaram os questionamentos (às vezes convenientes, o que não justifica uma regra) a respeito da “autoridade”, isso não foi mediante uma postura sábia, mas inconsequente, vaidosa e egoísta:

“Em outras palavras, para essa classe, trata-se do mero exercício retórico e de exibicionismo intelectual, no sentido de conferir ao sujeito uma aura de ousadia, generosidade, sagacidade, sugerindo a presença de uma mente independente aos olhos de seus pares, em vez de ser uma real questão de conduta prática” (p. 39)

Combater as “ideias pré-estabelecidas” nem sempre é uma questão de conduta prática, mas é uma atitude típica e artificialmente blasé, de alguém que se pretende colocar num lugar incomum, não-convencional, e que apenas repete o convencionalismo de (tentar) não ser convencional.

Há preconceitos que foram deletérios, claro, o que não justifica a sua generalização ou o constante reexame de toda e qualquer ideia pré-estabelecida. Elas existiram, existem e existirão.

“Temos que ter, ao mesmo tempo, confiança e discernimento para pensarmos logicamente a respeito de nossas crenças herdadas, e a humildade para reconhecermos que o mundo não começou conosco, e tampouco terminará conosco, e que a sabedoria acumulada da humanidade é muito maior do que qualquer coisa que podemos alcançar de forma independente” (p. 137)

Por fim, a sabedoria não está apenas na correção do que deve ser questionado, mas no modo como os valores preconcebidos – os preconceitos – são incorporados na vida prática. “Não se apresenta como uma das grandes glórias de nossa civilização que um homem com habilidades moderadas possa – e talvez deva – saber mais que os grandes cientistas e sábios do passado? Ele vê mais longe por estar sobre os ombros de gigantes, e não porque ele impertinentemente questionou tudo o que alcançou” (p. 129)

O livro de Dalrymple é uma oposição à mentalidade imprudente, pois situa a importância de hábitos e valores importantes em vias de extinção.

[Comente este Post]

Postado por Ricardo Gessner
9/9/2018 às 17h43

 
Evasivas admiráveis, de Theodore Dalrymple

Resenha: Evasivas admiráveis, Theodore Dalrymple

Há alguns anos, durante um jantar, conversava com uma colega sobre a minha afeição pela escrita de Miguel de Unamuno, escritor espanhol e precursor do existencialismo. Aprecio justamente por ele escrever como existencialista, não como filósofo. Para Unamuno, a existência não era uma categoria, nem um conceito ou um sistema abstrato, mas um questionamento sincero sobre aquilo que o fazia sentir-se vivo: seus medos, angústias, aflições. Sua escrita incide sobre questões que lhe interessavam vitalmente, sem reduzi-las a uma dedicação meramente intelectual. Era uma forma de enfrentar seus demônios interiores — se possível superá-los –, mas de maneira nenhuma esquivar-se deles.

Ao concluir, minha interlocutora responde: “Ah… eu não acho que a gente deva ficar pensando muito…”. Ela era psicóloga. E sua resposta ecoava em minha mente enquanto lia Evasivas admiráveis, de Theodore Dalrymple. Pois aquela resposta era uma evasiva admirável.

Em várias ocasiões Dalrymple mencionou que um dos seus principais temas de interesse é a respeito da natureza do mal. De fato, o autor discute o assunto em seus vários livros, mas não em termos filosóficos, nem apoiando-se exclusivamente em sistemas abstratos, mas constrói seu raciocínio a partir de sua experiência como psiquiatra e de costumes morais; isto é, de como o fator moral (e sua ausência) influencia comportamentos perigosos, narcisistas e socialmente deletérios.

Contudo, em Evasivas admiráveis foge-se um pouco desse quadro, pois Dalrymple constrói sua reflexão a partir de teorias — teorias psicológicas –, para demonstrar como elas podem, sob o verniz conceitual da ciência, eximir o indivíduo de certas responsabilidades. Noutras palavras, Dalrymple discorre sobre como algumas teorias delegam a fatores externos a responsabilidade dos malefícios individuais, ou incentivam um egocentrismo desonesto, trajado em conceitos como autoaceitação (amar-se acima de qualquer coisa, inclusive os seus demônios interiores), autoperdão (suas ações são culpa de maus pensamentos inculcados pela sociedade opressora, ou de um desequilíbrio químico dos neurotransmissores), Eu-verdadeiro (herança rousseauniana: no âmago, você é bom; são seus demônios interiores — com vida própria — que te atrapalham). São as condutas que dão nome ao livro.

Existe uma diferença entre infelicidade e depressão. Infelicidade está associada a uma capacidade de compreensão; isto é, pressupõe um exercício honesto de identificar e assumir certas responsabilidades sobre decisões erradas, condutas equivocadas, relacionamentos ruins, que trouxeram algum tipo de sofrimento. Dessa forma, infelicidade é um estado de espírito. Depressão, por outro lado, é um quadro clínico, geralmente associado a alguma disfunção neurológica, e o indivíduo não tem controle sobre si ou sobre seus pensamentos. Quando transposto esse quadro àqueles com transtornos psicológicos, há uma confusão entre infelicidade e depressão. “Eles nunca serão responsabilizados pelo seu estado ou situação; são vítimas de algo exterior a elas (nesta circunstância as disfunções do cérebro são consideradas exteriores, e não o eu verdadeiro dessas pessoas)” (p. 42).

Isso explica o fetiche pelos antidepressivos. A promessa de felicidade fácil e rápida, mesmo que os efeitos dos comprimidos não sejam tão eficazes conforme informações divulgadas na mídia. Trata-se, portanto, de uma evasiva admirável.

“Excetuando instâncias específicas, a psicologia não contribui em nada para o autoconhecimento humano, e fez até o oposto; pois ao se meter entre o ser humano e o que Samuel Johnson chamou de ‘movimentos de sua própria mete’, ela atua como um obstáculo ao genuíno (ainda que muitas vezes doloroso) exame de si mesmo” (p. 94).

Em resumo, o autoconhecimento não é sinônimo, nem garantia, de felicidade, pois requer um olhar honesto para si mesmo; requer o reconhecimento das próprias limitações, assim como assumir a responsabilidade sobre os próprios infortúnios e o enfrentamento de suas causas e consequências. O Eu-verdadeiro não é tão bonito quanto se pinta; a autoaceitação, o autoperdão, sem uma responsabilidade moral, legitima um egoísmo narcisista.

A publicação de Evasivas admiráveis, pela editora É Realizações, é um gesto de considerável importância, pois apresenta numa linguagem acessível e elegante, um olhar crítico sobre determinado comportamento marcado por uma “insatisfação, um descontentamento com a vida” (p. 17), em que e a felicidade é concebida como um direito inalienável.

Em síntese, a busca pela felicidade não é uma busca sincera se associada exclusivamente ao autoconhecimento.

Evasivas admiráveis, de Theodore Dalrymple. Editora É Realizações, 2017

[Comente este Post]

Postado por Ricardo Gessner
2/9/2018 às 12h00

 
Os livros sem nome

Depois de tempos através das estantes decidi, não sem dificuldade, qual livro levar. A moça colocou-o numa sacola e, assim, voltei pra casa preparado para os desafios da nova leitura. Acomodado em minha poltrona, retirei o livro da sacola e percebi que não era o mesmo. Passei os olhos pela nota de registro e, de fato, ali constava o título correto. Numa tentativa de consolar-me, abri o livro, li algumas linhas. Não era sobre o mesmo assunto, nem de algum outro que me interessava. Voltei à biblioteca reclamando engano, mostrei a nota e, ao retirar o livro da sacola, era o mesmo que havia levado, o mesmo que constava no registro. Não pude evitar um gesto de irritação – tanto pelo fato, pois detesto quando acontece, como pela obrigação em pedir desculpas. Vi novamente nos olhos da moça aquele fundo de graça e escárnio. Voltei pra casa e, ao retirar o livro da sacola, o já esperado – não era o mesmo título. Com isso, sou obrigado a concluir a leitura sob as mais variadas intempéries. E, no final das contas, o que mais me constrange é que tenho uma biblioteca inteira com vários livros sem nome.

[Comente este Post]

Postado por Ricardo Gessner
31/8/2018 às 19h54

Julio Daio Borges
Editor

Digestivo Cultural
Histórico
Quem faz

Conteúdo
Quer publicar no site?
Quer sugerir uma pauta?

Comercial
Quer anunciar no site?
Quer vender pelo site?

Newsletter | Disparo
* Twitter e Facebook
LIVROS




A Fazenda Publica Em Juizo
Leonardo Jose Carneiro Cunha
Dialética
(2013)



Gradus ad parnassum: 32 estudos para piano
Muzio Clementi
Irmãos Vitale
(1970)



O Livro dos Médiuns
Allan Kardec
Ide
(2008)



Alívio para o Sofrimento e a Depressão
James F. Drane
Paulus
(2015)



Vademecum de Clínica Médica Volume 1
Celmo Celeno Porto
Guanabara Koogan
(2010)



A Mágica da Arrumação
Marie Kondo
Sextante
(2015)



História da literatura portuguesa
Antonio jose
Roberto limitada



Duas Mulheres
Martina Cole
Record
(2008)



Até que a Rua nos Separe - Bílingue
Dias & Riedweg
Imago
(2012)



Guide to wine
Fiona Sims
Parragon
(2005)




>>> Abrindo a Lata por Helena Seger
>>> A Lanterna Mágica
>>> Blog belohorizontina
>>> Blog da Mirian
>>> Blog da Monipin
>>> Blog de Aden Leonardo Camargos
>>> Blog de Alex Caldas
>>> Blog de Ana Lucia Vasconcelos
>>> Blog de Anchieta Rocha
>>> Blog de ANDRÉ LUIZ ALVEZ
>>> Blog de Angélica Amâncio
>>> Blog de Antonio Carlos de A. Bueno
>>> Blog de Arislane Straioto
>>> Blog de CaKo Machini
>>> Blog de Camila Oliveira Santos
>>> Blog de Carla Lopes
>>> Blog de Carlos Armando Benedusi Luca
>>> Blog de Cassionei Niches Petry
>>> Blog de Cind Mendes Canuto da Silva
>>> Blog de Cláudia Aparecida Franco de Oliveira
>>> Blog de Claudio Spiguel
>>> Blog de Diana Guenzburger
>>> Blog de Dinah dos Santos Monteiro
>>> Blog de Eduardo Pereira
>>> Blog de Ely Lopes Fernandes
>>> Blog de Expedito Aníbal de Castro
>>> Blog de Fabiano Leal
>>> Blog de Fernanda Barbosa
>>> Blog de Geraldo Generoso
>>> Blog de Gilberto Antunes Godoi
>>> Blog de Hector Angelo - Arte Virtual
>>> Blog de Humberto Alitto
>>> Blog de João Luiz Peçanha Couto
>>> Blog de JOÃO MONTEIRO NETO
>>> Blog de João Werner
>>> Blog de Joaquim Pontes Brito
>>> Blog de José Carlos Camargo
>>> Blog de José Carlos Moutinho
>>> Blog de Kamilla Correa Barcelos
>>> Blog de Lúcia Maria Ribeiro Alves
>>> Blog de Luís Fernando Amâncio
>>> Blog de Marcio Acselrad
>>> Blog de Marco Garcia
>>> Blog de Maria da Graça Almeida
>>> Blog de Nathalie Bernardo da Câmara
>>> Blog de onivaldo carlos de paiva
>>> Blog de Paulo de Tarso Cheida Sans
>>> Blog de Raimundo Santos de Castro
>>> Blog de Renato Alessandro dos Santos
>>> Blog de Rita de Cássia Oliveira
>>> Blog de Rodolfo Felipe Neder
>>> Blog de Sonia Regina Rocha Rodrigues
>>> Blog de Sophia Parente
>>> Blog de suzana lucia andres caram
>>> Blog de TAIS KERCHE
>>> Blog de Thereza Simoes
>>> Blog de Valdeck Almeida de Jesus
>>> Blog de Vera Carvalho Assumpção
>>> Blog de vera schettino
>>> Blog de Vinícius Ferreira de Oliveira
>>> Blog de Vininha F. Carvalho
>>> Blog de Wilson Giglio
>>> Blog do Carvalhal
>>> BLOG DO EZEQUIEL SENA
>>> Blog Ophicina de Arte & Prosa
>>> Cinema Independente na Estrada
>>> Consultório Poético
>>> Contubérnio Ideocrático, o Blog de Raul Almeida
>>> Cultura Transversal em Tempo de Mutação, blog de Edvaldo Pereira Lima
>>> Escrita & Escritos
>>> Eugênio Christi Celebrante de Casamentos
>>> Flávio Sanso
>>> Fotografia e afins por Everton Onofre
>>> Githo Martim
>>> Impressões Digitais
>>> Me avise quando for a hora...
>>> Metáforas do Zé
>>> O Blog do Pait
>>> O Equilibrista
>>> Relivaldo Pinho
>>> Ricardo Gessner
>>> Sobre as Artes, por Mauro Henrique
>>> Voz de Leigo

busca | avançada
111 mil/dia
2,5 milhões/mês