Ricardo Gessner

busca | avançada
52329 visitas/dia
1,9 milhão/mês
Mais Recentes
>>> Circuito Contemporâneo de Juliana Mônaco
>>> Tamanini | São Paulo, meu amor | Galeria Jacques Ardies
>>> Primeiro Palco-Revelando Talentos das Ruas, projeto levará artistas de rua a palco consagrado
>>> É gratuito: “Palco Futuro R&B” celebra os 44 anos do “Dia do Charme” em Madureira
>>> CEU Carrão recebe o Festival Ubuntu nos dias 15, 16 e 17 de Novembro.
* clique para encaminhar
Mais Recentes
>>> Do lumpemproletariado ao jet set almofadinha...
>>> A Espada da Justiça, de Kleiton Ferreira
>>> Left Lovers, de Pedro Castilho: poesia-melancolia
>>> Por que não perguntei antes ao CatPt?
>>> Marcelo Mirisola e o açougue virtual do Tinder
>>> A pulsão Oblómov
>>> O Big Brother e a legião de Trumans
>>> Garganta profunda_Dusty Springfield
>>> Susan Sontag em carne e osso
>>> Todas as artes: Jardel Dias Cavalcanti
Colunistas
Últimos Posts
>>> Lisboa, Mendes e Pessôa (2024)
>>> Michael Sandel sobre a vitória de Trump (2024)
>>> All-In sobre a vitória de Trump (2024)
>>> Henrique Meirelles conta sua história (2024)
>>> Mustafa Suleyman e Reid Hoffman sobre A.I. (2024)
>>> Masayoshi Son sobre inteligência artificial
>>> David Vélez, do Nubank (2024)
>>> Jordi Savall e a Sétima de Beethoven
>>> Alfredo Soares, do G4
>>> Horowitz na Casa Branca (1978)
Últimos Posts
>>> E-books para driblar a ansiedade e a solidão
>>> Livro mostra o poder e a beleza do Sagrado
>>> Conheça os mistérios que envolvem a arte tumular
>>> Ideias em Ação: guia impulsiona potencial criativo
>>> Arteterapia: livro inédito inspira autocuidado
>>> Conheça as principais teorias sociológicas
>>> "Fanzine: A Voz do Underground" chega na Amazon
>>> E-books trazem uso das IAs no teatro e na educação
>>> E-book: Inteligência Artificial nas Artes Cênicas
>>> Publicação aborda como driblar a ansiedade
Blogueiros
Mais Recentes
>>> Daniel Mazini, country manager da Amazon no Brasil
>>> Samba da benção
>>> O novo GPT-4o
>>> Um olhar sobre Múcio Teixeira
>>> Entrevista com Guilherme Fiuza
>>> Susan Sontag em carne e osso
>>> A Associated Press contra a internet
>>> The Newspaper of the Future
>>> Por que não perguntei antes ao CatPt?
>>> 3 Grandes Escritores Maus
Mais Recentes
>>> Livro Nenhum Peixe Aonde Ir de Janice Nadeau; Marie Francine Hebert pela Sm Paradidático (2006)
>>> Livro A Cia E O Culto Da Inteligência de Victor Marchetti pela Nova Fronteira (1974)
>>> Veronesi : Tratado de Infectologia ,Volume 1 de Ricardo Veronesi pela Atheneu (1996)
>>> Em Pauta - Revista do Programa de Música da UFRGS de Mércia Pinto e outros pela UFRGS (1989)
>>> Livro Contos De Aventura E Magia Das Mil E Uma Noites de Varios Autores pela Princípio (2007)
>>> Marte E Vênus Juntos Para Sempre: Nova Formas De Relacionamento Para Um Amor Duradouro de John Gray pela Rocco (1997)
>>> Livro Os Novos Mercados de Peter F. Drucker pela Expressão e Cultura (1973)
>>> Atlas de Anatomia Humana em Imagem de Jamie Weir pela Elsevier (2012)
>>> Livro Minhas Memórias Dos Outros de Rodrigo Octavio pela Civilização Brasileira (1979)
>>> Livro A Loja Da Dona Raposa de Hardy Guedes pela Scipione (2005)
>>> Gibi Saiba Mais Sobre A História Dos Esportes Nº66 de Érico Rodrigo Maioli Rosa pela Panini (2013)
>>> Mito e sexualidade de Jamake Highwater pela Saraiva (1992)
>>> Tratado de Endoscopia Digestiva Diagnóstica e Terapêutica : Estômago e Duodeno de Paulo Sakai pela Atheneu
>>> Livro Antropologia Cultural E Social de E. Adamson Hoebel; Everet L. Frost pela Cultrix (1976)
>>> Salvador: Guia de Cheiros, Caminhos e Mistérios de Fernando Coelho pela Autor (2024)
>>> Livro A Cada Tempo de Alexandre Carvalho pela Paulus (2019)
>>> Livro Labirinto de Histórias de Stela Barbieri , Fernando Vile pela Companhia Das Letrinhas (2019)
>>> Alimentos, Nutrição e Dietoterapia de Krause pela Roca (1991)
>>> Livro O Conhecimento Volume II de Denis Huisman e André Vergez pela Freitas Bastos (1968)
>>> Livro Divertido dos Animais de Anne Vande Lanoitte pela Girassol
>>> Livro Onde Esta O Wally? O Livro Dos Jogos Sensacional! Volume 4 de Martin Handford pela Martins Fontes
>>> Livro Celic Viaja a La Tierra Coleção Lecturas em Acción Volume 4 de Carla Dulfano e Outro pela Edelvives (2018)
>>> Sambexplícito: as vidas desvairadas de Germano Mathias de Caio Silveira Ramos pela A Girafa (2008)
>>> Neuroanatomia Humana de Barr de John A. Kiernan pela Manole (2003)
>>> O Exercício da Lágrima de Rossyr Berny pela Grafosul (1979)
BLOGS

Domingo, 23/9/2018
Ricardo Gessner
Ricardo Gessner
 
A dignidade da culpa, em Graciliano Ramos

Em 1934, um brasileiro nascido na cidade de Quebrângulo, Alagoas, chamado Graciliano Ramos, publicou o romance São Bernardo. É um livro que põe o dedo numa ferida sempre aberta, por mais esforços que se faça para silenciá-la: o sentimento de culpa. E não seria exagero dizer que a obra mereceria estar ao lado de Crime e Castigo (Fiódor Dostoievski), Ressurreição (Leon Tolstói) ou Metamorfose (Franz Kafka), num panteão de obras essenciais ao entendimento da natureza humana, não fosse a língua portuguesa que a condenou a ser um “galho menor de um arbusto secundário dos jardins das musas”. Ora, no jardim das musas não há arbustos secundários, e os leitores de língua portuguesa também têm seus privilégios.

O romance é uma espécie de autoanálise em que Paulo Honório, narrador-personagem, reconta a história de sua ascensão social, graças às falcatruas, emboscadas, relações de falsa amizade e interesse. Relembra de como levou Luís Padilha (antigo dono e herdeiro da fazenda São Bernardo) à falência; de como planejou o assassinato de seu vizinho para expandir suas terras; de como perdeu o interesse pelo próprio filho; de como levou sua esposa, Madalena, ao suicídio.

Diante de tais atrocidades, Paulo Honório lamenta-se de uma, em específico: a consciência de não conseguir sentir culpa. Apesar de pequenos indícios de aflição, trata-se de um sentimento ambíguo, pois não brota de um arrependimento, mas da consciência de ser incapaz de arrepender-se. Diz Paulo Honório: “Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos... Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige”; ou seja, mesmo se tivesse uma segunda chance, não faria diferente. Noutra situação, quando manifesta a ausência de amor pelo filho, sua expressão é emblemática: “Nem sequer tenho amizade a meu filho” – veja-se a precisão e sutileza com que se expressa: nem sequer “amizade” sente pelo filho, ou seja, nem mesmo o mínimo de afeição esperada, ao que se completa: “Que miséria!”.

A interjeição diante da falta de “amizade” pelo filho – “que miséria!” – é reveladora. Paulo Honório reconhece a miséria de sua própria condição moral. “Reconhecimento” é um item importante nas tragédias gregas: é o momento em que o herói reconhece sua condição de desgraça. Nesse sentido, São Bernardo é um romance trágico, construído sobre um paradoxo: à medida que Paulo Honório ascende socialmente, decresce moralmente. É uma ironia presente no próprio nome do protagonista: “Honório” provém de “honorius”, que em latim significa “honorífico”, “honrado”, sendo sua raiz etimológica: “honor”: “honra”; entretanto, toda sua honra se restringe à sua condição social, não moral.

A grandiosidade do romance está na figura de Paulo Honório ao reconhecer sua condição moral miserável e assumi-la como sua responsabilidade. Obviamente que não elogio suas ações criminosas, nem as defendo. Por outro lado, ele não mente para si mesmo: “Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu”. Se por um lado é uma fala que revelaria a perversidade do protagonista, por outro é um gesto de coragem, de alguém que assume a responsabilidade diante de sua condição de desgraça, consciente da própria incapacidade de se libertar.

A atualidade de São Bernardo não está na construção do típico “sinhozinho” que é Paulo Honório; não está na caracterização do explorador avaro e sem sentimentos; não está na crítica ao “capitalismo perverso que corrompe as pessoas”. A atualidade de São Bernardo está em ser um contraponto a um mundo que facilita e, silenciosamente, valoriza a mentira para justificar ou negar as próprias falhas, medos e fraquezas. Se Paulo Honório justificasse o suicídio de sua esposa pela adesão ao comunismo – “Comunista, materialista. Bonito casamento!”, exclama o narrador em pensamento, durante uma conversa a respeito de sua esposa –, seria menos doloroso. Contudo, seria menos honesto, menos consciente.

Quando Paulo Honório assume sua responsabilidade diante da própria vida, quando assume ser o culpado de sua desgraça, torna-se moralmente digno, pois sua coragem e sobriedade merecem respeito. Um gesto raro.

Um dos itens que compõe uma obra clássica é a contribuição para um entendimento mais profundo de nossa natureza e condição. São Bernardo é um clássico.

[Comente este Post]

Postado por Ricardo Gessner
23/9/2018 às 15h59

 
Em defesa do preconceito, de Theodore Dalrymple

Recentemente conclui minha releitura do livro Em defesa do preconceito, de Theodore Dalrymple, cujo estilo de escrita não me canso de ler. O título é claramente provocativo; alguns argumentariam que se trata de uma jogada de marketing para chamar nossa atenção. Que seja, pois nesse gesto de “chamar a atenção” ele também revela, sutilmente, a nossa ignorância diante da aplicabilidade do termo “preconceito”, com larga aceitação (ou rejeição), mas, ao mesmo tempo, feita de maneira irrefletida e, não raro, mecânica.

Normalmente o “preconceito” está associado a uma atitude de repúdio anterior à experiência; de rejeitar algo ou alguém antecipadamente, sem conhecimento ou segundo critérios infundados, como: cor da pele, do cabelo, nacionalidade etc. Nesse sentido, “preconceito” é algo deletério; como poderia alguém escrever um livro em sua defesa?

Não é esta acepção que Dalrymple aplica; segundo o autor, há um matiz conceitual que define o “preconceito” como um conjunto de valores morais preconcebidos, construídos ao longo da história e mantidos através da tradição. Diferentemente da acepção comum, neste caso o “preconceito” é algo benéfico e salutar. Nesse sentido, o livro de Dalrymple é tanto uma defesa quanto uma crítica: defende os valores tradicionais e critica aqueles que, sob as mais variadas (e, não raro, infundadas) justificativas, pretendem destruí-los.

Em primeiro lugar, uma pessoa que se declara viver sem preconceitos e os contesta é uma espécie de cartesiano, pois articula um modus operandi similar: se René Descartes preocupou-se em fundamentar um posicionamento filosófico puro, isto é, sem o menor resquício de dúvidas e, desse modo, garantindo-lhe maior segurança para construir um raciocínio o mais próximo da Verdade, alguém “sem preconceitos” almeja, analogamente, um lugar “puro”, sem o menor resquício de preconceito e, assim, apresentar-se como alguém “superior e livre de ideias pré-concebidas”. Em síntese, ao invés da projeção de dúvidas, projetam-se “preconceitos”: “A popularidade do método cartesiano não decorre do desejo de remover as dúvidas metafísicas e encontrar a certeza, mas o que ocorre é precisamente o oposto: jogar dúvida em todas as coisas e, portanto, aumentar o escopo de licenciosidade pessoal ao destruir, de antemão, quaisquer bases filosóficas para a limitação dos próprios apetites” (p. 21)

No entanto, a conduta “anti-preconceito” se apoia numa crítica aos valores tradicionais como forma de justificar filosoficamente comportamentos pessoais licenciosos, assim como alargar (se não, abolir) os limites em torno “dos próprios apetites”. Entenda-se “comportamentos pessoais licenciosos” como sendo os interesses de ordem pessoal, que normalmente são restringidos por alguma “autoridade moral”, por “valores tradicionais” ou algo do gênero.

“Então, subitamente, todos os recursos da filosofia lhes são disponibilizados, e serão imediatamente usados para desqualificar a autoridade moral dos costumes, da lei e da sabedoria milenar” (p. 22)

A História torna-se o centro de contestação, visto que foi através dela – ao longo do desenvolvimento do tempo – que determinados “preconceitos” se formaram e se perpetuaram. Contudo, reconstituir o passado requer uma postura seletiva em relação ao modo e ao que será narrado. Nesse ínterim, um estudioso pode projetar anseios predeterminados ou ideológicos, estabelecendo-os como critério científico de seleção; desse modo, reconfiguram-se outras possibilidades de narrativa histórica, mas que apenas devolve o seu interesse; diz o que se quer ser ouvido.

Um “liberal sem preconceitos”, quando pretende deslegitimar a “autoridade imposta” ao longo da história, estabelece o seu interesse ideológico como critério. Esse gesto demonstra a consequência imediata do combate ao preconceito, cujo resultado não é a sua abolição, mas, no máximo, a substituição por outro preconceito.

“Derrubar determinado preconceito não significa destruir o preconceito enquanto tal. Na verdade, implica inculcar outro preconceito” (p. 39)

Nesse sentido, a família, a educação, a história, as artes, a religião, tornam-se alvo de críticas, em que os “caçadores de preconceito” pretendem desmontar a “autoridade repressiva” detrás esses valores. Mas qual o resultado? O que é proposto no lugar? As respostas são várias e estão apresentadas ao longo dos 29 capítulos do livro. Exemplifico com apenas um: as consequências no campo da educação.

“Se alguém se vê moralmente obrigado a limpar a sua mente dos detritos do passado para que possa se tornar um agente moral completamente autônomo, isso implica o dever de não jogar na mente dos mais jovens, os detritos produzidos por nós. Não causa surpresa, portanto, constatar que, de forma crescente, investimos as crianças de autoridade para que administrem as suas próprias vidas, e isso é feito com crianças cada vez menores. Quem somos nós para dizer a elas o que fazer?” (p. 31)

Em termos práticos, isso leva a uma perda de autoridade dos pais diante dos filhos. Na verdade, não se trata precisamente de uma “perda”, mas de uma delegação – consciente ou não – às crianças da responsabilidade de decidirem o que querem comer, assistir, falar, fazer; quando querer dormir, acordar, ir à escola, sem qualquer critério (isto é: valores) pré-estabelecidos. Se isso é visivelmente um gesto de imprudência, que tipo de pais poderiam confiar tamanha responsabilidade aos seus filhos, ainda imaturos?

“Pais preguiçosos e sentimentais, sem dúvida” (p. 33)

As consequências disso podem ser vistas desde em um supermercado, quando uma criança ordena, aos berros, para que lhe compre um pacote de bolachas recheadas para o jantar, ao que a mãe lhe obedece e responde, meio sem graça, às pessoas ao redor: “Ele é assim mesmo”; até a desordem que predomina nas escolas, em que professores são agredidos direta ou indiretamente, física e verbalmente, sem qualquer respeito à sua (antiga, tradicional) autoridade. Em síntese: um mundo predominado de gente mimada e sem o senso de responsabilidade e respeito, que são outros valores tradicionais.

Como o bem disse Dalrymple, numa síntese magistral: “(...) o sábio questiona apenas aquelas coisas que merecem questionamento” (p. 63)

Ora, se por um lado foram os intelectuais quem iniciaram os questionamentos (às vezes convenientes, o que não justifica uma regra) a respeito da “autoridade”, isso não foi mediante uma postura sábia, mas inconsequente, vaidosa e egoísta:

“Em outras palavras, para essa classe, trata-se do mero exercício retórico e de exibicionismo intelectual, no sentido de conferir ao sujeito uma aura de ousadia, generosidade, sagacidade, sugerindo a presença de uma mente independente aos olhos de seus pares, em vez de ser uma real questão de conduta prática” (p. 39)

Combater as “ideias pré-estabelecidas” nem sempre é uma questão de conduta prática, mas é uma atitude típica e artificialmente blasé, de alguém que se pretende colocar num lugar incomum, não-convencional, e que apenas repete o convencionalismo de (tentar) não ser convencional.

Há preconceitos que foram deletérios, claro, o que não justifica a sua generalização ou o constante reexame de toda e qualquer ideia pré-estabelecida. Elas existiram, existem e existirão.

“Temos que ter, ao mesmo tempo, confiança e discernimento para pensarmos logicamente a respeito de nossas crenças herdadas, e a humildade para reconhecermos que o mundo não começou conosco, e tampouco terminará conosco, e que a sabedoria acumulada da humanidade é muito maior do que qualquer coisa que podemos alcançar de forma independente” (p. 137)

Por fim, a sabedoria não está apenas na correção do que deve ser questionado, mas no modo como os valores preconcebidos – os preconceitos – são incorporados na vida prática. “Não se apresenta como uma das grandes glórias de nossa civilização que um homem com habilidades moderadas possa – e talvez deva – saber mais que os grandes cientistas e sábios do passado? Ele vê mais longe por estar sobre os ombros de gigantes, e não porque ele impertinentemente questionou tudo o que alcançou” (p. 129)

O livro de Dalrymple é uma oposição à mentalidade imprudente, pois situa a importância de hábitos e valores importantes em vias de extinção.

[Comente este Post]

Postado por Ricardo Gessner
9/9/2018 às 17h43

 
Evasivas admiráveis, de Theodore Dalrymple

Resenha: Evasivas admiráveis, Theodore Dalrymple

Há alguns anos, durante um jantar, conversava com uma colega sobre a minha afeição pela escrita de Miguel de Unamuno, escritor espanhol e precursor do existencialismo. Aprecio justamente por ele escrever como existencialista, não como filósofo. Para Unamuno, a existência não era uma categoria, nem um conceito ou um sistema abstrato, mas um questionamento sincero sobre aquilo que o fazia sentir-se vivo: seus medos, angústias, aflições. Sua escrita incide sobre questões que lhe interessavam vitalmente, sem reduzi-las a uma dedicação meramente intelectual. Era uma forma de enfrentar seus demônios interiores — se possível superá-los –, mas de maneira nenhuma esquivar-se deles.

Ao concluir, minha interlocutora responde: “Ah… eu não acho que a gente deva ficar pensando muito…”. Ela era psicóloga. E sua resposta ecoava em minha mente enquanto lia Evasivas admiráveis, de Theodore Dalrymple. Pois aquela resposta era uma evasiva admirável.

Em várias ocasiões Dalrymple mencionou que um dos seus principais temas de interesse é a respeito da natureza do mal. De fato, o autor discute o assunto em seus vários livros, mas não em termos filosóficos, nem apoiando-se exclusivamente em sistemas abstratos, mas constrói seu raciocínio a partir de sua experiência como psiquiatra e de costumes morais; isto é, de como o fator moral (e sua ausência) influencia comportamentos perigosos, narcisistas e socialmente deletérios.

Contudo, em Evasivas admiráveis foge-se um pouco desse quadro, pois Dalrymple constrói sua reflexão a partir de teorias — teorias psicológicas –, para demonstrar como elas podem, sob o verniz conceitual da ciência, eximir o indivíduo de certas responsabilidades. Noutras palavras, Dalrymple discorre sobre como algumas teorias delegam a fatores externos a responsabilidade dos malefícios individuais, ou incentivam um egocentrismo desonesto, trajado em conceitos como autoaceitação (amar-se acima de qualquer coisa, inclusive os seus demônios interiores), autoperdão (suas ações são culpa de maus pensamentos inculcados pela sociedade opressora, ou de um desequilíbrio químico dos neurotransmissores), Eu-verdadeiro (herança rousseauniana: no âmago, você é bom; são seus demônios interiores — com vida própria — que te atrapalham). São as condutas que dão nome ao livro.

Existe uma diferença entre infelicidade e depressão. Infelicidade está associada a uma capacidade de compreensão; isto é, pressupõe um exercício honesto de identificar e assumir certas responsabilidades sobre decisões erradas, condutas equivocadas, relacionamentos ruins, que trouxeram algum tipo de sofrimento. Dessa forma, infelicidade é um estado de espírito. Depressão, por outro lado, é um quadro clínico, geralmente associado a alguma disfunção neurológica, e o indivíduo não tem controle sobre si ou sobre seus pensamentos. Quando transposto esse quadro àqueles com transtornos psicológicos, há uma confusão entre infelicidade e depressão. “Eles nunca serão responsabilizados pelo seu estado ou situação; são vítimas de algo exterior a elas (nesta circunstância as disfunções do cérebro são consideradas exteriores, e não o eu verdadeiro dessas pessoas)” (p. 42).

Isso explica o fetiche pelos antidepressivos. A promessa de felicidade fácil e rápida, mesmo que os efeitos dos comprimidos não sejam tão eficazes conforme informações divulgadas na mídia. Trata-se, portanto, de uma evasiva admirável.

“Excetuando instâncias específicas, a psicologia não contribui em nada para o autoconhecimento humano, e fez até o oposto; pois ao se meter entre o ser humano e o que Samuel Johnson chamou de ‘movimentos de sua própria mete’, ela atua como um obstáculo ao genuíno (ainda que muitas vezes doloroso) exame de si mesmo” (p. 94).

Em resumo, o autoconhecimento não é sinônimo, nem garantia, de felicidade, pois requer um olhar honesto para si mesmo; requer o reconhecimento das próprias limitações, assim como assumir a responsabilidade sobre os próprios infortúnios e o enfrentamento de suas causas e consequências. O Eu-verdadeiro não é tão bonito quanto se pinta; a autoaceitação, o autoperdão, sem uma responsabilidade moral, legitima um egoísmo narcisista.

A publicação de Evasivas admiráveis, pela editora É Realizações, é um gesto de considerável importância, pois apresenta numa linguagem acessível e elegante, um olhar crítico sobre determinado comportamento marcado por uma “insatisfação, um descontentamento com a vida” (p. 17), em que e a felicidade é concebida como um direito inalienável.

Em síntese, a busca pela felicidade não é uma busca sincera se associada exclusivamente ao autoconhecimento.

Evasivas admiráveis, de Theodore Dalrymple. Editora É Realizações, 2017

[Comente este Post]

Postado por Ricardo Gessner
2/9/2018 às 12h00

 
Os livros sem nome

Depois de tempos através das estantes decidi, não sem dificuldade, qual livro levar. A moça colocou-o numa sacola e, assim, voltei pra casa preparado para os desafios da nova leitura. Acomodado em minha poltrona, retirei o livro da sacola e percebi que não era o mesmo. Passei os olhos pela nota de registro e, de fato, ali constava o título correto. Numa tentativa de consolar-me, abri o livro, li algumas linhas. Não era sobre o mesmo assunto, nem de algum outro que me interessava. Voltei à biblioteca reclamando engano, mostrei a nota e, ao retirar o livro da sacola, era o mesmo que havia levado, o mesmo que constava no registro. Não pude evitar um gesto de irritação – tanto pelo fato, pois detesto quando acontece, como pela obrigação em pedir desculpas. Vi novamente nos olhos da moça aquele fundo de graça e escárnio. Voltei pra casa e, ao retirar o livro da sacola, o já esperado – não era o mesmo título. Com isso, sou obrigado a concluir a leitura sob as mais variadas intempéries. E, no final das contas, o que mais me constrange é que tenho uma biblioteca inteira com vários livros sem nome.

[Comente este Post]

Postado por Ricardo Gessner
31/8/2018 às 19h54

Julio Daio Borges
Editor

Digestivo Cultural
Histórico
Quem faz

Conteúdo
Quer publicar no site?
Quer sugerir uma pauta?

Comercial
Quer anunciar no site?
Quer vender pelo site?

Newsletter | Disparo
* Twitter e Facebook
LIVROS




O Homen Elefante e Outros Homens
Accacio de Oliveira Santos
Arantes
(2006)



Itzhak - o Menino Que Amava o Violino
Abigail Halpin e Outro
Abrams Books
(2020)



Santorini
Alistair MacLean
Best Seller



Mania De Matematica: Diversao E Jogos De Logica E
Ian Stewart
Zahar
(2005)



Teoria Geral Da Ação Civil Pública
Pedro Lenza
Revista dos Tribunais
(2003)



A Aveleira e A Madressilva - A Paixão De Tristão E Isolda -Infanto
Lia Neiva
Globo Livros
(2014)



Los Libros de Utilísima- Galletitas
Emi Pechar
Atlantida
(2000)



A Saude da Pele
Rona M Mackie
Experimento
(1996)



Livro de Bolso Literatura Estrangeira A História de Fernão Capelo Gaivota
Richard Bach
Nórdica
(1970)



Pavarotti Meu Mundo
Luciano Pavarotti
Rocco
(1996)




>>> Abrindo a Lata por Helena Seger
>>> A Lanterna Mágica
>>> Blog belohorizontina
>>> Blog da Mirian
>>> Blog da Monipin
>>> Blog de Aden Leonardo Camargos
>>> Blog de Alex Caldas
>>> Blog de Ana Lucia Vasconcelos
>>> Blog de Anchieta Rocha
>>> Blog de ANDRÉ LUIZ ALVEZ
>>> Blog de Angélica Amâncio
>>> Blog de Antonio Carlos de A. Bueno
>>> Blog de Arislane Straioto
>>> Blog de CaKo Machini
>>> Blog de Camila Oliveira Santos
>>> Blog de Carla Lopes
>>> Blog de Carlos Armando Benedusi Luca
>>> Blog de Cassionei Niches Petry
>>> Blog de Cind Mendes Canuto da Silva
>>> Blog de Cláudia Aparecida Franco de Oliveira
>>> Blog de Claudio Spiguel
>>> Blog de Diana Guenzburger
>>> Blog de Dinah dos Santos Monteiro
>>> Blog de Eduardo Pereira
>>> Blog de Ely Lopes Fernandes
>>> Blog de Expedito Aníbal de Castro
>>> Blog de Fabiano Leal
>>> Blog de Fernanda Barbosa
>>> Blog de Geraldo Generoso
>>> Blog de Gilberto Antunes Godoi
>>> Blog de Hector Angelo - Arte Virtual
>>> Blog de Humberto Alitto
>>> Blog de João Luiz Peçanha Couto
>>> Blog de JOÃO MONTEIRO NETO
>>> Blog de João Werner
>>> Blog de Joaquim Pontes Brito
>>> Blog de José Carlos Camargo
>>> Blog de José Carlos Moutinho
>>> Blog de Kamilla Correa Barcelos
>>> Blog de Lúcia Maria Ribeiro Alves
>>> Blog de Luís Fernando Amâncio
>>> Blog de Marcio Acselrad
>>> Blog de Marco Garcia
>>> Blog de Maria da Graça Almeida
>>> Blog de Nathalie Bernardo da Câmara
>>> Blog de onivaldo carlos de paiva
>>> Blog de Paulo de Tarso Cheida Sans
>>> Blog de Raimundo Santos de Castro
>>> Blog de Renato Alessandro dos Santos
>>> Blog de Rita de Cássia Oliveira
>>> Blog de Rodolfo Felipe Neder
>>> Blog de Sonia Regina Rocha Rodrigues
>>> Blog de Sophia Parente
>>> Blog de suzana lucia andres caram
>>> Blog de TAIS KERCHE
>>> Blog de Thereza Simoes
>>> Blog de Valdeck Almeida de Jesus
>>> Blog de Vera Carvalho Assumpção
>>> Blog de vera schettino
>>> Blog de Vinícius Ferreira de Oliveira
>>> Blog de Vininha F. Carvalho
>>> Blog de Wilson Giglio
>>> Blog do Carvalhal
>>> BLOG DO EZEQUIEL SENA
>>> Blog Ophicina de Arte & Prosa
>>> Cinema Independente na Estrada
>>> Consultório Poético
>>> Contubérnio Ideocrático, o Blog de Raul Almeida
>>> Cultura Transversal em Tempo de Mutação, blog de Edvaldo Pereira Lima
>>> Escrita & Escritos
>>> Eugênio Christi Celebrante de Casamentos
>>> Flávio Sanso
>>> Fotografia e afins por Everton Onofre
>>> Githo Martim
>>> Impressões Digitais
>>> Me avise quando for a hora...
>>> Metáforas do Zé
>>> O Blog do Pait
>>> O Equilibrista
>>> Relivaldo Pinho
>>> Ricardo Gessner
>>> Sobre as Artes, por Mauro Henrique
>>> Voz de Leigo

busca | avançada
52329 visitas/dia
1,9 milhão/mês