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Quarta-feira, 28/8/2024
Blog de Diana Guenzburger
Diana Guenzburger
 
O jardim da maldade

Tudo começou com um convite.

“Quer ir à exposição comigo? Todo mundo está comentando, passou na televisão várias vezes. Seria ótimo ir com você. Pode me ajudar a entender um pouco!”

Gabriela, há muitos anos secretária na firma onde eu trabalhava como advogada, sabia que eu fizera uns cursos de história da arte, moderna e contemporânea. Tinha interesse e curiosidade por essas formas de arte, mas a falta de conhecimento deixava-a meio perdida. Aceitei o convite e fomos, sábado pela tarde.

A exposição, organizada em ordem cronológica, começava com modernos. Matisse, Picasso, alguns Cézanne. Nada muito chocante, as pessoas no século XXI já se acostumaram com coisas como o nariz verde da senhora Matisse, o olho torto da modelo de Picasso. Tentei transmitir meu pouco conhecimento, discursando sobre como Cézanne havia reinventado o espaço. Gabriela me olhava com desconfiança.

Continuamos a andar e chegamos à arte contemporânea. Objetos substituíam telas, outras formas de expressão tomavam lugar da pintura. Gabriela entusiasmou-se. Como um urinol poderia estar num museu?

O salão era enorme, ao terminar de percorrê-lo aleguei cansaço. Fomos para a lanchonete tomar café com pão de queijo e trocar impressões. Um rapaz alto e bonito, vestido simplesmente com camiseta de algodão e calças largas, aproximou-se de nossa mesa. Cabelos mais compridos que o usual, penugem de barba cobrindo-lhe o rosto, enfeitado por único brinco de prata na orelha direita. Pediu para sentar-se conosco (não havia mesas disponíveis) e logo entrou na conversa, apresentando-se como Felipe. Ficou claro desde o início que seu nível de conhecimento artístico era muito superior ao meu, o que indicava um profissional. Discorreu com grande erudição sobre as obras que tínhamos visto. Gabriela fitava-o com brilho nos olhos.

“Você é artista ou professor?” perguntou.

“Nem um nem outro. Ou quem sabe as duas coisas?” desconversou com uma risada.

Logo em seguida, porém, sua expressão ficou séria e desanimada.

“Trabalho há muito tempo numa obra. Mas não consigo terminar, falta alguma coisa, uma parte importante, nem eu mesmo sei o que é.”

A conversa continuou entre os dois, que pareciam ignorar minha presença. Finalmente, levantei-me.

“Gente, vamos ver o resto. O museu não demora a fechar.”

Felipe nos acompanhou. Esculturas de luz, móbiles enormes, arte povera, vídeos, fotografia, arte kitsch, ele tinha muito a dizer sobre tudo que víamos. Gabriela olhava-o em êxtase. Minha pessoa esquecida, enquanto os dois caminhavam e conversavam animados em voz baixa, fui ficando para trás.

O museu fechou. Na porta, despedimo-nos os três. Peguei um táxi sozinha, Gabriela e Felipe andaram juntos na calçada. Uma sensação desagradável incomodava-me. O que teria visto em Gabriela um homem culto e bonito como Felipe? Singela e sem requinte, pouco conhecimento das artes plásticas, era estranho que ficasse tão atraído. Logo me censurei por estes pensamentos. Seria inveja, ciúme, preconceito? Bem mais velha que minha amiga, talvez não quisesse enxergar o encanto da juventude.

Passaram-se algumas semanas. Encontrava Gabriela no trabalho, que parecia sempre muito feliz, risonha e cheia de energia. Tinha vontade de perguntar-lhe sobre Felipe, se o tinha visto depois do dia no museu, mas a discrição impedia-me de fazê-lo. Afinal, não éramos tão íntimas.

Um dia, Gabriela não veio trabalhar. Mais outro, e outro ainda. Do escritório, telefonamos para a família, com quem ela morava. Preocupados, haviam procurado em toda parte, notificado a polícia. Nada da moça aparecer.

Passadas duas semanas, resolvi visitar a família. O pai, tenso e a mãe chorosa não tinham ainda nenhuma pista. Conversei demoradamente; perguntei sobre amigos, parentes, nenhum sabia de Gabriela. Estava me despedindo, quando notei sobre o aparador na entrada um cartão com o nome Felipe, seguido de endereço no Horto Florestal.

Dia seguinte, faltei ao trabalho e fui procurar o local anotado. Segui a rua, que se embrenhava na floresta e subia o morro. Finalmente, cheguei ao número do endereço. Atrás do portão e muro, árvores altas e mato espesso impediam a visão do interior. Toquei o botão do interfone. O portão abriu-se e ingressei, deixando o carro estacionado fora.

Ao entrar, assombrei-me com o tamanho do lugar. Jardim enorme, verdadeiro parque, não se podia ver o final. Um caminho de saibro levava para o interior. Em volta, grandes árvores e arbustos cerrados tornavam o ambiente sombrio.

Ao percorrer a estrada, logo percebi tratar-se de local fora do comum. Ao longo do trajeto, no meio a plantas exuberantes, viam-se nichos contendo estranhas intervenções humanas, que se misturavam com a natureza. Esculturas enormes penduradas das árvores, teias de aranha feitas de cordas que se ligavam aos galhos, grandes placas de plástico com múltiplas cores balançando suavemente com a brisa, flores imensas de vidro colorido que formavam canteiros, ossos humanos empilhados. Continuei a andar até avistar casa antiga, um tanto decadente. A porta abriu-se de repente e Felipe apareceu.

“Doutora! Que prazer em vê-la aqui. Veio visitar meu ateliê?”

“Não propriamente”, ia respondendo, interrompida pela fala entusiasmada de meu anfitrião, que me tomou pelo braço e iniciou caminhada por trilhas na mata. A cada obra de arte avistada, parava para dar longas explicações sobre técnicas empregadas e significado do trabalho. Algumas vezes tentei esclarecer o motivo de minha visita, mas Felipe não cessava de falar. Até que bruscamente, ao consultar o relógio, parou e interrompeu o discurso.

“Desculpe, preciso continuar ...”

Olhou-me fixamente:

“Sabe aquela obra que não conseguia acabar? Sua amiga Gabriela me ajudou. Está pronta”.

Correu em direção à casa. Tentei segui-lo, mas quando cheguei já havia entrado e fechado a porta. Bati com força várias vezes, sem resposta. Iniciei o caminho de volta. Desorientada, no entanto, perdi o rumo e embrenhei-me cada vez mais pelas trilhas do bosque. A estranheza das intervenções artísticas aumentava meu desconforto. Uma imensa mão humana com três dedos cortados, de grande realismo, causou-me arrepios. Na mata, cada vez mais espessa, intestinos pendiam das árvores e confundiam-se com cipós. A certa altura, deparei-me com monstro que misturava características de animal quadrúpede com grande bico de pássaro e cabelos humanos. A perfeição técnica desta concepção dava a impressão de um ser vivo. Ao fitá-lo intensamente, pareceu-me que o monstro se movia.

Tomada pelo medo, continuei a andar, à procura da saída. De repente, atrás de um arbusto com folhagem espessa, pareceu-me avistar o rosto de Gabriela. Gritei de surpresa e entusiasmo, mas a imagem desvaneceu-se. Rodei nos calcanhares e percorri o caminho inverso nas trilhas, mas nada vi. Desanimada e exausta, sentei-me sobre um tronco caído e abaixei a cabeça, cobrindo o rosto com as mãos.

Quando olhei novamente em volta, Gabriela estava sentada a meu lado. Parecia satisfeita e fitava-me rindo.

“Gabriela! O que você está fazendo aqui? Venha pra casa, estão todos preocupados.”

Tentei segurar-lhe o braço, mas ela já desaparecera. Continuei a andar, cada vez mais confusa. Entrava por trilha que não dava em lugar nenhum, tentava penetrar no mato, tropeçava. De repente, pareceu-me ver Gabriela no alto de uma colina, coberta por uma túnica verde que brilhava fosforescente. Acenou-me e logo em seguida se dissipou.

Resolvi esquecer minha amiga e concentrar-me em sair daquele lugar. Ao deparar com uma mangueira enorme, avistei Gabriela de novo, sentada num dos galhos baixos. Desta vez, chamou-me pelo nome. Não dei atenção e continuei a andar, até que uma voz atrás de mim assustou-me. Era Felipe.

“Não é admirável, Doutora? Transformei Gabriela na obra de arte completa. Está em toda parte. Em qualquer tempo. É impossível deixar de vê-la, ou fugir dela. Também é eterna, nada a destrói. Atingi a perfeição artística, ninguém vai poder me superar.”

Olhei-o com espanto e horror.

“Quero ir embora, onde fica o portão de saída?”

Felipe pareceu não me ouvir.

Tentei me afastar, segurou-me pelo braço. Procurei desvencilhar-me, ao mesmo tempo não pude deixar de sentir seu cheiro de homem, misturado com suave e atraente perfume masculino. Aproximou-me dele e roçou meu braço levemente. Um arrepio de prazer percorreu-me o corpo. Apertou meus seios contra seu peito e deslizou a mão pelas minhas costas. Enfraquecida, suspirei, derrotada.

“Tenho um projeto pra você também,” murmurou ao meu ouvido. “Outra obra de arte. Vamos começar?”

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Postado por Diana Guenzburger
28/8/2024 às 19h41

 
A ESTAGIÁRIA

Alberto olhou para a nova estagiária por cima dos óculos. Novinha. Cabelo comprido, como era moda, castanho com listas louras. Pele bem clara e luminosa, via-se que não era muito de praia. Calça comprida clássica e camiseta simples.

Bonitinha, pensou o executivo. Tomara que ajude em alguma coisa. Abaixou a vista e continuou seu caminho em direção à sala de reuniões. No percurso, parou um instante na mesa do café e serviu-se de mais um copo, o terceiro do dia. Combustível para afastar o cansaço. Quando ia entrar na sala, foi interrompido pela voz irritada do chefe, o diretor de operações, que abrira a porta de seu escritório de repente.

“Alberto! Dá um pulo aqui. Temos um problema.”

Entrou, alarmado. O diretor de operações era conhecido por ser um grosso e não ter muita paciência com os subalternos. Problemas com ele, ninguém queria.

“Sente-se, sente-se, Alberto. Temos um cliente insatisfeito, e um dos nossos maiores. Lembra-se daquela carga que precisava chegar com urgência? Foi você quem ficou encarregado disso. Acontece que não deu certo, ocorreu um imprevisto....”

O diretor continuou a repassar, cada vez com voz mais alta, a série de reclamações ouvidas do cliente. Súbito, a porta entreabriu-se e um rosto feminino se fez ver, meio coberto por cabelos.

“Desculpe. Sou Sofia, a nova estagiária. Mandaram entregar esses documentos pro senhor. É urgente.” A voz da moça, que entrara na sala, parecia tremer de timidez.

O diretor interrompeu seu arrazoado e fitou a estagiária com certa curiosidade. Logo recompôs-se.

“Bota aí em cima da mesa. Estou muito ocupado agora”

Voltou a dirigir-se a Alberto, que, alheio, via a moça sair apressada. Tem covinhas nas faces, observou. Que sorriso bonito.

Eventualmente, o chefe acabou de falar e Alberto pode ir para casa. Ao pegar seu carro, esqueceu-se da estagiária, pensando na série de problemas que o aguardavam. Dívidas que se acumulavam, filha adolescente pega com drogas na escola, mulher insatisfeita com a vida... E por aí vai. Saio da panela para cair na frigideira, pensou. Tinha vontade de fugir para algum lugar bem longe.

Estacionou na garagem do prédio, onde notou sujeira acumulada em alguns cantos. Nem os faxineiros deste condomínio funcionam, pensou. O elevador social estava parado e teve que subir pelo de serviço. Encontrou a mulher esperando-o na porta, contrariada.

“Telefonaram da seguradora. Você não pagou o seguro do carro, e estão para cancelar. Além disso, estive no clube, e disseram que estamos devendo três mensalidades. O colégio da Anita advertiu...”

“Vamos jantar? Estou morrendo de fome”, desconversou.

“A empregada não veio hoje. Só tem pizza, e já está fria.”

Entrou no banheiro e lavou o rosto, tentando relaxar. No canto do espelho, por um instante pareceu-lhe ver o rosto da jovem estagiária, com seu sorriso de covinhas.

* * *

Fim de ano, correria danada no escritório, projetos para terminar, serviços inacabados. Alberto olhava para a papelada em cima de sua mesa, tentando não se deixar dominar pelo desânimo. Cabeça baixa, concentrava-se numa planilha complicada. Sentiu algo suave roçando seu rosto e um leve perfume agradável. Levantou a cabeça, surpreso.

“O senhor deve estar com fome, doutor Alberto. Não parou de trabalhar desde cedo. Quer meu outro sanduiche? Trouxe dois”.

Relutante, aceitou o sanduíche que a estagiária lhe oferecia, mão estendida. O gesto lhe deixou uma sensação agradável de alento, alguém preocupava-se com ele. Dias depois, veio o convite.

“Quer almoçar comigo, doutor Alberto? Tem um bistrô novo aqui do lado, comida caseira. Bem baratinho!”

Não hesitou em aceitar, e foram almoçar. A moça mostrou-se capaz de uma conversa agradável, nada muito polêmico. Voltou para o trabalho mais animado.

Os almoços no bistrô repetiram-se ocasionalmente. Perto do Natal, a empresa organizou sua tradicional festa de fim de ano, numa sala de hotel. Única ocasião em que não faziam economia, tinha coquetel, canapês, até champanhe. As conversas subiam de tom, à medida que os funcionários consumiam cada vez mais doses de uísque, vodca e outras bebidas. Pessoas que mal se falavam na faina do dia-a-dia, conversavam animadas, com muitos abraços e tapas amigáveis nas costas. Alberto participava, feliz por estar se divertindo longe da mulher.

Uma mão suave passou-lhe pelo braço. “Está gostando da festa?” perguntou Sofia, chegando-se a ele. Sem esperar resposta, queixou-se do calor abafado. “Vamos até à varanda tomar um ar?” Puxou-o pelo braço até se encostarem na balaustrada do terraço. Virou o rosto para cima, oferecendo os lábios. Alberto, meio tonto depois de quatro uísques, não se fez de rogado.

Foram para um motel. Dias depois, repetiram a experiência. O jeito inocente e infantil da moça fascinavam o executivo. Dirigia-se a ele como se fosse um deus. O sexo raro e morno que tinha em casa, relação desgastada, brigas. Com Sofia, sentia-se renascer.

Fazia malabarismos para conciliar essa nova vida com a outra. Não era fácil; na verdade, cada vez ficava mais complicado. Manter as aparências no escritório era um problema, ainda mais porque precisava dos serviços de secretária da estagiária. Sofia, no entanto, era melhor atriz e parecia muito à vontade trabalhando com ele, diante dos outros empregados. Pior que isso era a atitude dela, que estava mudando. De humilde e carinhosa como no início da relação, passou a ficar mais exigente.

“Meu amor, essa história de motel não dá mais. Não fico à vontade. Porque você não aluga um apartamento para nós. Pode ser bem pequeno, não tem importância. Vai ser nosso ninho!”

Apesar de estar sufocado com despesas, Alberto cedeu e alugou um pequeno apartamento num bairro de classe média para seus encontros com Sofia. Tudo ia bem entre eles, saia de lá feliz. Meses depois, no entanto, quando estava jantando em casa com a família, tocou o telefone. A mulher foi atender, mas desligaram.

“Deve ser propaganda, ou então é golpe.”

As ligações repetiram-se várias vezes em outros dias, até que resolveu atender. A voz doce e melodiosa de Sofia respondeu do outro lado, perguntando quando iriam se encontrar.

Alberto ficou furioso. Na próxima vez em que encontrou a moça no apartamento, repreendeu-a com rispidez.

“Onde você conseguiu meu telefone? Não se meta com a minha família!”

Para sua surpresa, Sofia desmanchou-se em lágrimas. Soluçando, queixou-se. “Você não me respeita, pra você eu sou uma puta qualquer.” Alarmado, Alberto tratou de consolar a moça, com muitos carinhos e elogios, até ver de novo em seu rosto infantil o sorriso de covinhas. Sentia-se cada vez mais culpado: na sua mente, seduzira a moça, um homem casado.

Tudo ficou sob controle, até que um dia, Sofia o interpelou.

“Você não diz que me ama? Por que não se divorcia e casa comigo?”

Alberto levou um susto. Desconhecia essa Sofia, mais madura e voluntariosa. Saiu do encontro e, depois de pensar muito dentro do carro estacionado, tomou uma decisão. Essa vida dupla tinha que acabar. Tá certo, sua vida de família não era lá essas coisas, mas desmanchar tudo que já havia construído também não ia dar. E os filhos? Iam ficar com a mulher. E o apartamento já quitado? Iam ter que vender? Deus me livre.

O próximo encontro com Sofia foi doloroso. A moça não se conformava, chorava sem parar. Sentia-se um calhorda. Devolveu o apartamento; os telefonemas misteriosos continuaram por um tempo, até irem escasseando. Finalmente, cessaram. No escritório, evitava a moça o mais possível, a ponto de virar as costas quando a via.

Passaram-se muitos meses, e tudo parecia ter voltado ao normal. Durante este tempo, a estagiária havia sido contratada como funcionária. Alberto nunca retornara ao bistrô onde costumava almoçar com Sofia, com medo de encontrar a antiga amante. Um dia, porém, sentiu saudades do talharim com costela, seu prato preferido no restaurante, e resolveu entrar. Estava por terminar o almoço, quando a porta se abriu e para sua surpresa, entrou Sofia, acompanhada pelo seu chefe, o diretor de operações. Mudou de lado da mesa para não ser visto, terminou o almoço rapidamente e saiu ocultando o rosto com uma pasta.

Passou a observar com mais atenção o vai-e-vem da moça na firma. Parecia-lhe que o número de vezes que ela entrava e saía na sala do seu chefe havia aumentado. Levava pessoalmente com frequência pastas, correspondência e café, apesar do homem ter sua própria secretária. Sentiu-se confuso, sem saber o que concluir.

Um dia corria ofegante, tentando terminar um trabalho importante que era para ontem, quando foi surpreendido pelo diretor de operações, que abriu a porta do escritório subitamente.

“Alberto! Entra aqui. Quero falar com você.”

Entrou, apreensivo. Tentava elaborar mentalmente uma desculpa para o atraso no trabalho, esperando uma descompostura.

“Sente-se, sente-se, Alberto. Você e eu trabalhamos juntos há muito tempo; considero você meu amigo. Tenho uma novidade para lhe comunicar. Você sabe que sou casado.”

Fez uma pausa de efeito. O executivo, confuso, tentava imaginar onde o chefe queria chegar.

“Pois estou me divorciando. Sofia e eu vamos nos casar. Estamos apaixonados, paixão irresistível. Claro, ela vai ter que sair da firma e procurar outro emprego. Ou talvez nem precise, o que eu ganho vai dar de sobra pra nós dois.”

“É uma pena a firma perder uma funcionária tão dedicada. Por outro lado, agora sou um homem feliz. Estou me sentindo vinte anos mais moço!”

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Postado por Diana Guenzburger
27/5/2024 às 15h51

 
AUSÊNCIA

Relutante, entrou na sala. Eugênia estava esperando, chaveiro na mão.

“Estou de saída, tia Dani. Vou encontrar um cliente em Campinas, durmo por lá. Fica à vontade, quando sair, deixa a chave com o porteiro.”

Após passar pelo banheiro para ajeitar o cabelo mais uma vez, a moça saiu de casa apressada, batendo a porta de entrada com força.

Surpresa com a recepção pouco calorosa, tia Dani olhou em volta lentamente e tentou se recompor. É verdade que não poderia esperar nenhuma atenção especial por parte da sobrinha. O drama terrível em que estava imersa era somente seu, e o relacionamento com a moça, no máximo, superficial. A verdade, porém, é que nunca sentira tanta necessidade de um aconchego, um ombro amigo para se encostar. Esperava que a sobrinha lhe fizesse companhia naquela noite, que ficasse interessada em seus desabafos. Enfrentava sozinha uma dura realidade e esperava encontrar em Eugênia uma solidariedade que lhe desse algum alívio.

Sentou-se numa das cadeiras em volta da mesa de jantar, os pensamentos confusos. Após uns quinze minutos, deu-se conta de como eram fantasiosas suas expectativas com Eugênia. Esperar amparo de alguém que nem conhecia direito... A moça tinha sua vida, suas lutas, seus próprios dramas. Levantou-se e começou a examinar o lugar onde iria passar a noite. O apartamento era bom, arejado e bem iluminado. Sala de tamanho médio, dois quartos. Entrou na cozinha, que se abria diretamente na sala, à procura de um copo d’água. A geladeira era grande e moderna; depois de beber água gelada, devolveu a garrafa. Um detalhe chamou a atenção: duas fotos estavam coladas na porta.

Na penumbra da cozinha, pouco podia ver. Curiosa, foi pegar os óculos na bolsa e acendeu a luz. Duas moças abraçavam-se risonhas, uma delas sua sobrinha. As cabeças se tocavam e cabelos misturavam-se, uns louros, outros castanhos.

Parecem felizes, meditou tia Dani. Antes assim. Voltou a concentrar-se em seus problemas. Filhos desempregados. Problemas financeiros. E o drama final, que quase a derrubara.

Viera para esta cidade atrás de um advogado que lhe fora recomendado. Chato ficar na casa dos outros, ainda mais sendo recebida claramente de má vontade. Não é que não podia pagar hotel: pedira para hospedar-se no apartamento da sobrinha mais pela esperança de encontrar uma aliada. Alguém que ouvisse seus problemas, mostrasse piedade, solidariedade. Iludira-se.

Voltou para a sala e continuou a explorar o apartamento. Foi logo ver o quarto de dormir; dia seguinte, tinha que se levantar bem cedo por causa da reunião agendada para as oito horas. Viu que era amplo e confortável, com uma cama de casal larga. E o outro quarto? Descobriu que fora transformado em escritório, onde Eugênia devia trabalhar. Mesa grande, computador, dois monitores, impressora... A cadeira era daquelas anunciadas para executivos importantes, modernas, leves e caras. Sentou-se por curiosidade: a cadeira balançava e movia-se ágil sobre rodinhas.

Preciso de uma dessas para mim, pensou ao levantar-se. Porém sabia que não tinha coragem de pagar o preço. Passou os olhos em volta; fora uma estante com poucos livros, não havia mais nada.

Ao sair do escritório, uma pilha de fotos ao lado do computador chamou-lhe a atenção. Sentindo-se um pouco culpada, pegou-as nas mãos, olhando uma por uma. As mesmas duas moças das fotos da geladeira protagonizavam as imagens, que mostravam paisagens variadas. Em algumas, o vento do mar desmanchava os cabelos das mulheres e dobrava as folhas das palmeiras. Em outras, viam-se montanhas ao longe. Notavam-se grandes demonstrações de afetividade entre as duas, o que lhe causou certa estranheza.

Antes de ir dormir, foi até à sala ver televisão. Sonolenta, assistia com pouca atenção a um noticiário, quando o telefone tocou. Uma voz feminina indagou:

“Eugênia?”

“Eugênia saiu. Sou a tia dela. Quer deixar um recado?”

A voz do outro lado da linha parecia ansiosa. “Mas que transtorno. Preciso falar com ela. O celular não atende, parece desligado.”

Sem saber o que dizer, Dani ficou em silêncio. A voz continuou.

“Quem está falando é a terapeuta da Laura. Por favor, diga a Eugênia que preciso falar com ela, urgente.”

Desligou. Tia Dani ficou sentada, um pouco confusa. Quem seria Laura? Pelas palavras da mulher ao telefone, devia haver bastante intimidade entre essa Laura e sua sobrinha. Seria a moça das fotografias? Começou a ter a impressão de estar puxando o fio de uma meada que não lhe dizia respeito.

Lembrou-se do pouco que sabia sobre Eugênia, quase tudo a partir de relatos da mãe dela, sua irmã. Moça bela e inteligente, depois de formada criara sua própria empresa de Marketing. Era mesmo o orgulho da família. Após muitos namorados, ficara noiva de um advogado jovem, morador de outra cidade, com brilhante futuro numa firma renomada. O casamento, marcado para setembro. Tudo preparado para um final feliz.

Escreveu um bilhete com o recado da terapeuta, colocou sobre a mesa e foi até o banheiro. Lavou o rosto e vestiu a camisola, preparando-se para dormir. Programou o despertador para bem cedo, não queria chegar atrasada. Logo que apagou a luz, o telefone voltou a tocar. Atendeu, bocejando.

“Sou eu de novo”, anunciou a terapeuta. “Eugênia já voltou?”

“Não, ainda não.”

Ouviu um suspiro do outro lado da linha.

“Não sei o que fazer. Laura teve uma crise grave. Está no hospital, tomou muitos comprimidos. A notícia do casamento marcado derrubou ela.”

Diante do silêncio da interlocutora, acabou desligando. Dani tentou dormir, só conseguiu depois de rolar muito tempo na cama, os pensamentos confusos. O dia amanheceu e apressou-se, louca para ir embora.

Quando ia abrir a porta para sair, Eugênia entrou.

“Ainda está aqui, tia Dani? Pensei que ia sair cedo”

A mulher mais velha parou, tentando achar palavras para expressar-se. Sem querer, fora cair no meio de um drama, que no momento parecia até pior do que os seus. A sobrinha notou a hesitação e viu o bilhete sobre a mesa.

“Telefonaram pra você. Laura...”

Eugênia sentou-se e escondeu o rosto entre as mãos.

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Postado por Diana Guenzburger
16/4/2024 às 19h45

 
HORA MARCADA

Dezoito horas. Horário ruim. Será que não havia outro? A secretária dissera que não, todos estavam preenchidos. Bem na hora do rush. Bom, paciência. Era até sorte ter conseguido a consulta, uma médica tão requisitada... Especialista de renome. Entrou no carro e ajustou o celular em frente, para ver o aplicativo do GPS. Saía uma hora e meia antes, tempo mais que suficiente, pensava, para chegar na hora marcada. Motor ligado, iniciou a jornada em direção ao Centro, com um suspiro de resignação. Parecia os doze trabalhos de Hércules. O primeiro deles era chegar na Marginal Pinheiros. Classificada como “via expressa”, era tudo menos isso. Constantes engarrafamentos tornavam seu percurso lento e arrastado, testando a paciência dos motoristas ao limite.

Atravessou a ponte e fez a curva, indo emergir numa das pistas da larga avenida, junto com outros automóveis chegados de várias direções. Lentas e arrastadas, filas de veículos moviam-se monótonas, como serpentes rastejando no mato. De vez em quando, uma freada brusca: ora uma motocicleta atravessava em frente, ora um ônibus mudava de direção, obrigando-o a dar passagem. Ligou o rádio para se distrair. Música clássica era o que preferia, porém nem sempre encontrava. Só achou noticiário sobre a guerra; acabou por desistir, e desligou.

O GPS indicava como próxima etapa a avenida Juscelino Kubitschek. Após muitas voltas e freadas, conseguiu entrar nela. Ônibus, caminhões e automóveis disputavam espaço, causando retenções. O tempo passava e começou a escurecer. No inverno, a noite chega cedo, pensou. Começou a sentir sede, não trouxera água nem outra bebida. De repente, a linha do trânsito na tela do celular deu uma guinada para a direita, e a voz feminina do aplicativo indicou que deveria entrar por uma transversal. Aquiesceu, embrenhando-se por uma série de vias estreitas, sempre orientado pelo guia digital. Ruas subiam e desciam, e nada de chegar mais perto do seu destino. Pelo contrário, o aplicativo que previra uma hora de viagem ao sair de casa, agora anunciava hora e quinze minutos. Sabia que isso poderia ocorrer, conforme as condições do trânsito, mas mesmo assim era irritante. Começou a ficar apreensivo, pensando na consulta marcada.

A sede apertou, e resolveu dar uma paradinha em frente a botequim modesto, para comprar água mineral. Uma interrupção rápida não iria atrapalhar o percurso. Estacionou em frente a uma garagem, deixando ligado o pisca-alerta, e dirigiu-se ao balcão. Ao voltar com a água, um susto: alguém batera na traseira de seu carro. Amassara o para-choque e quebrara um farol. Ficou atônito. Como poderia ser? Não ouvira nenhum ruído de batida. Olhou em volta, não viu veículos próximos. Sem saber o que fazer, perdeu alguns minutos parado. Afinal, resolveu continuar.

Entrou numa avenida mais larga, bordeada por árvores frondosas e cercada de casas e mansões. Estamos nos Jardins, conjecturou. Não sabia que precisava passar por aqui. De repente, porém, uma encruzilhada: fez uma curva de noventa graus e entrou por rua estreita e congestionada. Rodou bastante, e começou a notar que mudara de bairro, deixando para trás a região abastada. O calçamento encontrava-se em péssimo estado e buracos no asfalto sucediam-se, impiedosos. Notou lixo no meio-fio em sacos rasgados, casas pobres com pintura ausente ou descascada, roupa pendurada no varal nas janelas. Onde estou, indagou a si mesmo. O consultório não pode ser por aqui, é numa clínica chique pra gente que pode pagar. Começou a desconfiar do aplicativo e resolveu trocar, parando o carro para digitar o endereço da médica em outro. Continuou, mais confiante. Após muitas curvas, subidas e descidas, parou num sinal. De repente, ouviu um estrondo ao lado: o vidro de sua janela fora quebrado. Um braço coberto com manga de couro preto forçou sua entrada em frente ao volante e mão enluvada arrancou o celular do suporte. Não teve nem tempo de reagir: o ladrão subiu rápido numa moto e arrancou em alta velocidade.

Agora mesmo é que estou perdido, com GPS já estava ruim, imagina sem. Pensou que a solução ia ser parar toda hora para pedir instruções, à moda antiga. Melhor em postos de gasolina, os frentistas conhecem a região e gostam de ajudar.

Após duas paradas, entrou numa rua mais larga e bem asfaltada. Faltavam quinze minutos para a consulta, se tivesse sorte ainda dava tempo de chegar na hora marcada. Não devia estar longe da clínica. Acelerou o quanto pode, trocando de pista e passando à frente dos carros vizinhos. De súbito, porém, uma pancada forte de chuva. Estrondos de trovoada e clarões de relâmpagos acompanhavam os pingos grossos de água que, de tão abundantes, lhe tapavam a visão. As luzes dos postes de iluminação apagaram-se. Vagarosamente, e com muito cuidado para não bater nos automóveis ao lado, conseguiu acostar-se ao meio fio, numa reentrância da rua. Desligou o motor e aguardou.

Não demorou muito, um ruído de vozes e gritos, cada vez mais altos e estridentes, o fez ficar em alerta. Tentou enxergar através do para-brisa, onde a água da chuva descia como cachoeira, e acendeu uma lanterna que tirou do porta-luvas. Olhou em frente pela janela: viu carros parados, pessoas que corriam. De repente, ouviu tiros, seguidos de mais gritos.

Não havia dúvidas: um assalto. Bandidos se aproveitavam da chuva forte e da escuridão para roubar motoristas, presos no trânsito pelas circunstâncias. Com os faróis desligados, avançou vagarosamente sobre a calçada, até conseguir virar à direita em rua transversal. Dirigiu desorientado em baixo da chuva, espadanando água das poças, cada vez mais fundas.

Não sabia quanto tempo se passara. Resignado, virava em rua após rua, sem reconhecer nomes. De súbito, porém, a placa que leu avivou sua memória: era a rua da médica!

Sem questionar que circunstâncias o haviam levado até ali, estacionou, aliviado. A chuva amainara. Tocou a campainha da luxuosa clínica e foi recebido pela secretária. A moça fitou-o meio triste, como se olhasse para um cachorro faminto.

“A dra. Suzana acabou de sair. Ela esperou tanto... O senhor não veio na hora marcada.”

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Postado por Diana Guenzburger
18/12/2023 às 11h52

 
CHUVA

Eduardo abriu a porta de casa, esfregou a sola dos sapatos no tapete da soleira, sacudiu o guarda-chuva do lado de fora e entrou. Depois de pousar o guarda-chuva aberto no chão para secar, suspirou aliviado. Que bom ter conseguido chegar sem maiores incidentes, pensou. Chuva desse porte no Rio de Janeiro é sempre sinal de perigo. Não é à toa que a prefeitura colocou a cidade em alerta. Dirigiu-se à cozinha da pequena casa de vila e procurou a garrafa de cachaça, aberta na véspera. Estou bem necessitado de uns goles, depois dessa viagem de ônibus de duas horas, espadanando água das poças. Motorista bom, podia não ter chegado até aqui, com as ruas esburacadas desse subúrbio. Mas chegou.

A bebida forte esquentou-o por dentro e trouxe uma sensação de alento. Sentou no sofá e ligou a televisão, preparando-se para assistir o jogo decisivo para o título do campeonato carioca. Depois dos habituais comerciais, porém, o locutor anunciou: jogo cancelado. A chuva havia deixado o gramado impraticável.

Eduardo tentou afogar a decepção com mais meio copo de cachaça. Remoeu a crescente irritação desfilando na mente as inúmeras desculpas e explicações para o excesso de chuvas ocorrido nos últimos meses. Meteorologistas e outros cientistas das mais variadas especialidades eram chamados aos canais de TV para oferecerem suas versões para o fenômeno. La Niña, dizia um deles. Errado, dizia outro, trata-se com certeza de El Niño. Aquecimento global, afirmava um terceiro. Efeito estufa. A água do mar esquentara e isso criava muito mais nuvens, pela evaporação. O fato é que não se entendiam e a chuva continuava.

Telefonou para o celular da namorada Sueli, que atendeu mal-humorada. Estava presa numa estação do BRT, o ônibus não chegava e a água continuava a subir. Combinaram um encontro no dia seguinte, se o tempo melhorasse. Com mais nada para fazer, foi dormir, ouvindo o pingar monótono pela janela.

Acordou tarde no dia seguinte, era sábado. A chuva amainara, e algumas nesgas de céu azul podiam ser vistas entre nuvens cinzentas. Mais animado, programou-se para uma ida ao supermercado. Na semana anterior fora impedido de ir devido à forte chuva. Havia inclusive rumores de desabastecimento, estradas danificadas pelas enxurradas impediam a chegada de mercadorias. Paciência, compraria o que encontrasse.

A empreitada revelou-se quase heroica, horas de espera pelo ônibus, passagem por ruas alagadas com água até os joelhos. Afinal, conseguiu voltar para casa com alguns poucos produtos essenciais, café, arroz, macarrão, nada de perecíveis. Não encontrara tampouco cachaça, que pena, a sua estava no fim. A chuva havia recomeçado com força, e ele chegou em casa encharcado.

Depois de um banho quente, ligou a televisão. O noticiário estava cheio de imagens de deslizamentos de morros, casas construídas em locais de risco desabando. Bombeiros cavavam a lama à procura de mortos. Deprimido, desligou e tentou falar com Sueli. Atendeu a secretária eletrônica. Foi para a cozinha, preparou macarrão, e comeu com uma lata de sardinhas que ainda encontrou no armário.

O barulho da chuva forte continuava pela tarde. Tentou passar o tempo relendo um livro policial de sua coleção; no entanto, não conseguiu concentrar-se. Lá pelas cinco horas, ouviu a campainha tocar. Depois de espiar pelo olho mágico, abriu a porta: era Sueli. Encharcada, o cabelo e as roupas pingavam água. O vento carregou meu guarda-chuva, explicou. Abraçaram-se forte, um aperto prolongado. Estavam ficando com medo.

Não havia muito a fazer a não ser olhar a chuva pela janela ou ver televisão. A programação normal dos canais era constantemente interrompida por notícias das enchentes. Não só as comunidades carentes estavam sendo prejudicadas: bairros abastados da cidade também sofriam as consequências das chuvas. A lagoa transbordara e inundara as ruas vizinhas; garagens de prédios de luxo ficaram alagadas, carros flutuavam dentro. A ressaca avançara pelas avenidas da orla marítima, que se encheram de espuma do mar.

Eduardo e Sueli ficaram em casa, não havia como sair mais. Cozinhavam os poucos alimentos que ainda restavam, ouviam o barulho da água caindo e das trovoadas. Sueli, religiosa, colocou uma pequena imagem de Nossa Senhora de Aparecida, que trazia sempre na bolsa, numa prateleira da estante. Postava-se em frente e orava, as mãos em prece. Vem rezar também, Dudu, chamava. Agora, só se Deus ajudar. O namorado, cético, resistia.

Passaram assim o fim de semana. Segunda feira, desistiram de ir trabalhar, não havia ônibus mesmo. A TV transmitia também notícias de canais internacionais. Parece que o mundo todo estava sendo afetado pelas chuvas. As ruas de Nova York estavam inundadas; o rio Mississipi transbordara e alagara as cidades e planície ao redor. Na Europa, rios transbordavam, morros desabavam. Em lugar algum havia sinais de estiagem, a chuva só engrossava. As autoridades pediam calma, mas não conseguiam atender aos milhões de desabrigados.

Lá pelo meio da semana, quando assistiam televisão no começo da noite, ouviram um estrondo e todas as luzes se apagaram. Deve ser a subestação de eletricidade que explodiu, calculou Eduardo. A vizinhança toda ficou no escuro, e agora, também, sem informação.

Pouco depois, ouviram um barulho forte de correnteza, parecia que a rua tinha virado um rio caudaloso. Perceberam que a água começava a entrar por debaixo da porta.

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Postado por Diana Guenzburger
19/9/2023 às 17h51

 
DECISÃO

Camila sentou no banco da praça e ficou abanando-se com a revista que carregava. O calor era intenso. Isso não impedia que as crianças brincassem entusiasmadas nos balanços, gangorras e pula-pula, junto com outros meninos e meninas de idades semelhantes. Impressionante a energia, pensou, nada os faz se cansarem. Frequentemente encontrava outras mães, ou mesmo babás, com quem podia conversar e passar o tempo, enquanto acompanhava os filhos. Hoje, no entanto, não havia ninguém conhecido. Aproveitou a solidão para mergulhar nos pensamentos, tentando colocar alguma ordem no caos que reinava em sua mente.

Casou-se cedo, com festa em clube, damas de honra e bolo enorme enfeitado. Conhecera o noivo numa reunião de trabalho. Muito mais velho do que ela, era gerente da empresa, e pareceu encantado em conversar com a jovem ingênua, bonitinha mas simples, que parecia pedir proteção. Convidou-a para jantar num restaurante da moda e daí saíram mais vezes. Apresentou-a à família.

Numa noite de verão, no bar da varanda de um hotel à beira-mar, abriu-se com ela. Era divorciado e não tivera filhos. Sentia-se só e a solidão lhe pesava. Sua maior felicidade, confessou, seria tê-la como esposa. Esperava que a diferença de idades, e seus cabelos já grisalhos nas têmporas, não impedissem sua união.

Camila, um pouco confusa com a rapidez dos acontecimentos, não respondeu logo. Mas tudo conspirava para que aceitasse. Os pais dele, radiantes com a possibilidade de terem uma jovem nora e, talvez, netos; sua família, encantados em vê-la ao lado de um homem maduro com bela carreira, que poderia oferecer-lhe segurança e tranquilidade. As amigas e colegas, que declaravam morrer de inveja da sorte que ela tinha. Afinal, acabou aceitando e o casamento realizou-se.

No começo, tudo aconteceu como previsto. Camila gostou muito de ter a própria casa e sentia-se feliz. O marido insistiu para que abandonasse o emprego, não precisavam do dinheiro. Mas ela foi firme e continuou trabalhando. Logo ficou grávida e vieram dois filhos lindos, menino e menina, um atrás do outro. Descobriu que trabalhar fora e criar filhos ao mesmo tempo era duro; mas as avós ajudavam, e a vida corria tranquila. A moça, no entanto, nos poucos momentos em que se encontrava sozinha, sentia um vazio, falta de alguma coisa que ela mesma não sabia o que era.

Resolveu fazer um curso, isso iria fazê-la ganhar conhecimentos e, ao mesmo tempo, distraí-la dos pensamentos negativos. Escolheu História da Arte, assunto que a fascinava, e matriculou-se na Escola do Parque Lage. Lugar cheio de artistas trabalhando, que expunham suas obras nos corredores; o próprio casarão antigo de pedras cinzentas emanava uma atmosfera mágica, onde parecia que tudo poderia acontecer. O professor de Arte Contemporânea era jovem como ela. Mais baixo que a média dos homens, tinha cabelos bem pretos encaracolados e charme de artista pobre. Ainda por cima, grande talento de comunicador, o que tornava suas aulas fascinantes. Camila chegava cedo e não faltava nunca.

No intervalo de uma exposição, encontraram-se no café da Escola. Tímida, Camila ousou aproximar-se e fazer perguntas sobre o expressionismo abstrato, que a intrigava. Estabeleceu-se um diálogo animado. Os encontros no café tornaram-se uma rotina, e revelaram grande afinidade de gostos e valores. Além disso, a atração física que sentiam um pelo outro era visível, quase palpável. Um braço que tocava o outro, olhares que se cruzavam, tudo era óbvio, mas nada era dito.

A Escola organizou uma grande excursão a Inhotim, museu fantástico de arte contemporânea a céu aberto, em Minas Gerais. Camila conseguiu ir, apesar dos protestos do marido. Quem cuidaria das crianças? Eram só cinco dias, ele podia fazer isso, junto com a babá. Por que ela queria viajar sem o marido? O que a família iria dizer? Não seja antiquado, os tempos mudaram, não tinha nada de mais, outras senhoras também iam.

Chegando em Belo Horizonte, o grupo foi para um hotel, combinando de encontrarem-se cedo para a primeira visita ao parque. O local era deslumbrante, as obras de arte espalhadas entre palmeiras enormes e vegetação exuberante. O grupo acompanhava o guia, outro professor da Escola; a certa altura, Camila distraiu-se com uma instalação de acrílico vermelho e foi ficando para trás. Percebendo, tentava apressar o passo para juntar-se aos outros, quando notou a presença ao lado de seu jovem professor. Pegou-a pelo braço; uma touceira de bambu ao longo do caminho fez o resto. Seus corpos se tocaram com sofreguidão. De volta ao hotel, encontraram-se num quarto, onde o desejo mútuo se consumiu. A paixão avassaladora dominou aluna e professor durante todo o resto da viagem.

* * *

De volta à realidade do cotidiano, os pensamentos de Camila oscilavam entre a nova e avassaladora felicidade alcançada e seus deveres de mãe e esposa. Nunca havia sentido uma paixão dessas por um homem, e parecia perdida. Na cama com o marido, comparava o sexo burocrático e rotineiro com as horas de paixão que passara com o amante, em que cada experiência fora um êxtase. Mais tarde, recriminava-se por ser uma esposa infiel.

O marido parecia intuir alguma coisa, e observava-a de longe, intrigado. Pensava que não poderia jamais viver sem a mulher e os filhos, que conseguira tão tarde na vida. Tentou agradá-la, com presentes e elogios. Um dia, anunciou.

“Camila, vi como você gostou de viajar e conhecer coisas novas. Por isso, resolvi que vamos a Paris, cidade cheia de arte e outras maravilhas.”

Mostrou-lhe as passagens, classe executiva. Mas Camila não se entusiasmou.

“Vamos deixar pra mais tarde, está bem? Daqui a uns anos... Por enquanto, as crianças são muito pequenas. Não tenho vontade de deixar elas sozinhas.”

Enquanto isso, os encontros furtivos com o professor de arte continuavam. Encontravam-se depois das aulas no bosque do Parque Lage, no lusco-fusco, e seguiam para o pequeno apartamento conjugado do jovem. A paixão e o desejo aumentavam, mas junto com isso, também o remorso.

Um dia, o namorado anunciou uma novidade.

“Vou para São Paulo. Fui convidado para dar cursos no museu de Arte Moderna. Emprego mesmo! Uma oportunidade incrível.”

Parou de falar, e fixou o olhar nos olhos de Camila. Após alguns minutos imóvel, disse:

“Vem comigo.”

“E meus filhos?”

“Traz eles também.”

A moça ficou atônita, e foi-se embora sem responder. Em casa, abriu a janela do quarto e apoiou os cotovelos no parapeito, pensando, pensando. Religiosa, pediu ajuda ao Senhor para dar-lhe sabedoria e tomar a decisão correta. Era jovem, ainda. Teria direito de ser feliz? Mas abandonar o marido, que era tão bom com ela....

As horas passavam, não decidia o que fazer. Largar tudo e seguir o amante? Ou ficar com o homem bom que a acolhera como esposa?



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Postado por Diana Guenzburger
30/8/2023 às 14h06

 
AMULETO

Waldir morava em um prédio velho de Botafogo, que dava para morro coberto por árvores frondosas. Essa vista para a natureza exuberante fora um dos principais motivos para a escolha do imóvel, quando finalmente teve condições financeiras favoráveis para comprar casa própria. A princípio, ele e sua mulher Durvalina ficaram extasiados com o que viam. Além de micos e macacos-prego, pássaros variados habitavam a mata, incluindo tucanos de bico preto e peito laranja. Entre as várias espécies, os bem-te-vis eram os favoritos do idoso casal. Amarelos e pretos, eram os primeiros a acordá-los pela manhã, com seus gritos estridentes desde o nascer do sol. Rolinhas, sabiás, pardais, andorinhas, maritacas e até ocasionais jacutingas, pretas e pesadonas, alegravam a paisagem. Muitos construíam ninhos nos galhos das árvores em frente, ouvindo-se os piados dos filhotes, saudando a aproximação dos pais trazendo alimento.

Recentemente, porém, as coisas começaram a mudar. Já não havia tantos pássaros e os ninhos escassearam. Em compensação, um novo habitante da floresta começou a surgir: o urubu. A princípio, eram poucos e voavam alto, em círculo, por cima do morro. Durvalina olhava pela janela, intrigada e apreensiva. O que será que atraía estas aves agourentas? Não gostava deles, e não entendia sua aproximação. Que soubesse, não havia lixo nem carniça naquele local. Chegou a imaginar teorias tenebrosas sobre corpos de pessoas assassinadas, jogados no alto do morro pelos bandidos que habitavam a favela próxima. Isso certamente atrairia as aves de rapina, que gostam de carniça. Mas, não: se fosse isso, o fato já teria sido descoberto pela polícia.

E o mistério continuava. O número de urubus foi aumentando, voando cada vez mais baixo. O casal morava no quinto andar, e as aves tiravam rasantes pela altura das janelas do apartamento. Pousavam em galhos próximos e abriam as grandes asas, para secar ao sol. Eram inteiramente negros, com exceção das beiras das asas, onde se viam penas brancas.

Durvalina começou a sentir-se inquieta, e ultimamente evitava olhar pela janela. O que era antes um grande prazer, agora estava assustando-a. Mostrou as aves para o marido, que deu de ombros. “É um pássaro como outro qualquer. Você anda vendo fantasmas.” Mas a velha senhora não acreditava. Desde criança, sua mãe lhe havia dito que urubu era uma ave de mau agouro. Quando apareciam perto, nada de bom poderia acontecer.

Insistiu com o marido sobre o assunto, mas Waldir rebateu, desta vez irritado. Pois não sabia ela que o urubu era considerado um benfeitor da natureza? Era um pássaro-lixeiro, que limpava o mundo do lixo e da carniça espalhados pelos humanos, principalmente nas grandes cidades. Li isso na internet, declarou ele, com certo desprezo pela ignorância da mulher. Mas ela não se convenceu.

Um domingo, Durvalina estava lendo o jornal numa poltrona da sala, de fronte para a janela. Ao olhar para a frente, viu que um grande urubu pousara em galho curvo de uma árvore próxima. Estava quieto, com as asas arriadas, e parecia olhar para ela. A mulher sentiu um arrepio pelo corpo, mas tentou continuar a leitura. No entanto, não conseguiu concentrar-se e olhou em frente outra vez. O animal não se movera e continuava a encará-la.

Levantou-se, interrompendo a leitura. Dias depois, a mesma cena repetiu-se, quando estava lendo um livro. Depois da terceira ou quarta vez, resolveu-se.

“Preciso tomar uma providência”, raciocinou Durvalina. “Ou vou esperar acontecer uma desgraça? Não, isso nunca.”

Foi para o quarto, e começou a abrir gavetas do seu guarda-roupas. Não era uma pessoa organizada, e anos de negligência haviam resultado em uma grande bagunça, papéis velhos acumulados, roupas gastas amarfanhadas misturadas com novas. Levou várias horas vasculhando as gavetas, até encontrar o que procurava.

Levantou-se, segurando nos dedos o cordão de ouro, com a cruz de pequenos brilhantes pendurada. Tinha pertencido à sua mãe, e, antes disso, à avó e à bisavó. A mãe lhe dera de presente quando fez quinze anos, com a recomendação:

“Guarde isso com cuidado, viu, minha filha? Vai lhe proteger, como protegeu a mim, sua avó, bisavó, e todas antes delas. Na verdade, ninguém sabe quem foi a primeira dona, nem quando foi fabricado. Toda vez que você se sentir ameaçada, use esse cordão. Ele vai te resguardar!”

Durvalina prendeu o cordão em volta do pescoço, e logo sentiu-se melhor. Quero ver o que o urubu vai fazer agora, pensou. De fato, quando se punha a ler na poltrona de frente à janela, não viu mais a ave agourenta. Além disso, parecia-lhe que, agora, havia menos desses pássaros rondando o prédio.

Suspirou aliviada, e voltou a olhar pela janela, admirando a mata. Pouca gente, nesta cidade poluída e congestionada, tem o privilégio que nós temos de viver tão próximos à natureza, ponderava. Quando tinha esses pensamentos, porém, lembrava-se dos urubus e automaticamente levava a mão ao pescoço, apertando a pequena cruz de brilhantes.

O tempo foi passando e nada de notável aconteceu. Os urubus haviam ficado cada vez mais escassos, e somente de vez em quando um ou outro aparecia em volta do morro. Durvalina podia ler tranquilamente em sua poltrona predileta em frente à janela, que nenhuma ave esdrúxula aparecia para espiá-la.

Um sábado, a velha senhora, como de hábito, foi à feira do bairro comprar peixe e verduras. Arrastava atrás de si o carrinho de lona colorido, que estava leve, mas ficaria bem mais pesado quando cheio com as compras. Era um dia bonito de sol, sem nuvens, e Durvalina sentia-se alegre e satisfeita. Percorreu vagarosamente toda a feira, que afinal não era muito grande, e decidiu-se por um robalo fresquinho, bananas e algumas folhagens para salada, como alface e agrião. Estava voltando para casa, abrindo caminho entre a multidão que a essas alturas bloqueava a rua das barracas, quando sentiu um empurrão de alguém, que batera com força em seu ombro. Virou-se para trás indignada e viu um adolescente, a cabeça coberta por um capuz que lhe escondia também boa parte do rosto. Pediu desculpas em voz baixa, parecendo envergonhado.

Continuou a caminhada para casa, esforçando-se para não dar maior importância ao incidente. Quando chegou, logo esqueceu-se do ocorrido, na faina de guardar as compras feitas. Tudo arrumado na geladeira, voltou-se para a área de serviço, onde a aguardava uma cesta cheia de roupa suja, para lavar na máquina. Ao olhar para a janela, porém, levou um tremendo susto e seu coração disparou.

Um grande urubu encontrava-se pousado no parapeito, as asas meio abertas mostrando as penas brancas nas pontas. Olhava para ela, balançando a cabeça de um lado para outro.

Apavorada, Durvalina levou automaticamente a mão ao pescoço, em busca do amuleto protetor. O cordão havia se rompido e a pequena cruz de brilhantes desaparecera.



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Postado por Diana Guenzburger
30/8/2023 às 13h35

Julio Daio Borges
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