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Sábado,
1/8/2015
Blog de Marcio Acselrad
Marcio Acselrad
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Viva a revolução
Historiadores e curiosos não tem do que se queixar: nossa história está cheia de peripécias e de personagens interessantes. A aventura humana sobre o planeta deu lugar a incontáveis aventuras, algumas verdadeiramente inacreditáveis. Além, é claro, daquelas que a própria imaginação da espécie produziu com sua literatura e teatro. Às vezes as duas se encontram, e temos experiências como a do romance histórico, gênero literário que se apropria da realidade para recontá-la, recriá-la. A experiência pode ser magnífica, como na leitura de "O homem que amava os cachorros", do cubano Leonardo Padura (Boitempo editorial, 2013).
Ao longo de quase seiscentas páginas de tirar o fôlego, viajamos pela história do século XX em companhia de dois indivíduos que o acaso reuniu através de uma picareta: O primeiro, Liev Davidovitch, dito Trotsky, revolucionário russo de primeira hora, banido da pátria que ajudou a criar, chamada a partir de 1917 de União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, por defender que a prática revolucionária deveria se espalhar por todo o mundo para não morrer asfixiada pela burocracia estatal e por aventar a possibilidade herética de que Stalin, o georgiano que tomou o poder de forma escusa, não fosse deus. Repetindo a saga de seu povo, mais um judeu transformou-se em nômade errante, clamando por asilo político em um mundo que se fechava cada vez mais para ele. Acompanhamos Trotsky e a esposa em seu exílio forçado pela Turquia, França, Noruega até chegarem ao turbulento México dos anos 40, onde foram recebidos por dois outros personagens que parecem inventados, mas que existiram de verdade: Diego Rivera e Frida Kahlo, com quem Trotsky viria a ter um improvável romance.
O segundo, o catalão Ramon Mercader, dito um monte de coisas, entre as quais o russo Roman Pavlovitch Lopovo, o apátrida Soldado 13 e o fotógrafo belga Jacques Mornard., Filho da ex-burguesa convertida Caridad del Río, Ramon viveu de perto a bizarra experiência de contradição histórica que foi a Guerra Civil Espanhola, onde variadas facções de esquerda e direita se digladiaram em uma guerra fratricida que quase destruiu o país e, o que é pior, conduziu Franco ao poder. A ele coube a "honrosa" missão de dar cabo da vida do "traidor" da revolução, tarefa que deveria cumprir, como todas aquelas determinadas pelo novo czar de todas as Rússias, sem um pingo de hesitação ou reflexão crítica. Para esta missão, foi treinado pelo serviço secreto russo de tal modo que, ao fim do processo, não restava nem sinal do Ramon original. Nem ele mais sabia quem era...
Em questão, as interpretações que o século XX produziu e as contradições que criou. E a enormidade de vidas que foram mutilaram e ceifadas em nome de uma das mais nobres bandeiras, quais sejam, o socialismo, o comunismo e a luta contra o fascismo. Aos muitos "ismos" que dividiram o pensamento e a vida do século XX, surge mais um, o stalinismo, o culto à personalidade que fez a história se repetir, talvez como farsa, como diria o próprio Marx (outra ironia histórica) criando, novamente, o terror. Só que esta revolução, ao contrário da francesa de cento e vinte anos antes, não gerou o terror da instabilidade política que desembocou em Napoleão, mas o terror do pensamento único, do homem-ideologia que tomou conta de Moscou e do mundo em nome, vejam só, da liberdade e do fim da luta de classes. A burocratização ia realmente matar a revolução, mas isto só iríamos descobrir na tardia década de 1980. E Trotsky, a prova viva desta verdade, teve de desaparecer pois sua própria existência, mesmo vivendo no distante México, era a denúncia da impostura que Stalin não podia suportar.
Uma leitura imprescindível para quem quer compreender a história de um sonho naufragado. Para quem é de direita, para quem é de esquerda ou simplesmente para quem adora uma boa história. Aprecie sem moderação.
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Postado por Marcio Acselrad
1/8/2015 às 13h54
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As redes sociais como ferramentas de mobilização
Ao longo da última década, vimos acontecer uma série de transformações inéditas no universo da política mundial, em que manifestações populares de insatisfação, que tiveram início com a chamada Primavera Árabe, se espalharam por todo o globo. A insatisfação de parcelas consideráveis da população levou primeiramente à queda do presidente egípcio e depois, num efeito dominó, à de vários outros ditadores que se mantinham nos cargos de mando em seus países havia décadas. O movimento não ficou restrito ao mundo árabe do norte da África, tendo se espalhado, como tudo o mais neste mundo globalizado, para os quatro cantos deste redondo planeta, de Wall Street ao Chile, do Brasil à Itália.
Eventos como estes exigem reflexão e não devemos nos furtar a elas. Em primeiro lugar, há que se considerar que manifestações populares, sublevações e rebeliões não são novidade na história política do planeta. A revolução francesa ainda surge como marco sempre que precisamos nos lembrar do poder que a insatisfação tem de mobilizar pessoas em torno de uma causa. De pouco adianta uma causa, por nobre que seja, se ela não alcança as pessoas, se não as toca de alguma maneira. E isto só pode acontecer se há algum tipo de insatisfação, um certo mal estar mobilizador que acaba canalizando as energias de um povo ou grupo em certa direção. Este aspecto é louvável, caso seja produto da conscientização, e veio junto com as transformações por que passou o ocidente no bojo das transformações advindas com a modernidade.
Sabemos também que muitas vezes, como o momento em que vivemos no Brasil de hoje, a insatisfação pode ser manipulada e a opinião pública, levada a seguir interesses meramente golpistas de setores específicos da sociedade, que geralmente não ousam dizer seus nomes, muitas vezes agem na calada da noite e costumam falar em nome de todos. Chegamos ao cúmulo de testemunhar, na última semana de julho, a um atentado a bomba ao Instituto Lula, em São Paulo, inequívoco sinal de que tais grupos estão ultrapassando os limites da ética, do bom senso e, o que é pior, da lei, ferindo as regras mínimas de convivência e, quem sabe, inaugurando um novo e mais violento momento em nossa história. Sabemos bem o que acontece quando o debate dá lugar à violência e ao ódio: a discussão e a argumentação cedem lugar à barbárie.
Barbáries, atentados e radicalismos à parte, este é o preço que se paga pela democracia: escutar as ruas, digam o que disserem. Aprendemos assim que os indivíduos podem e devem agir para aperfeiçoar as formas como são governados, quer através do voto, quer através do protesto. Mas há que se tomar cuidado com a sempre presente capacidade de manipulação que as forças conservadoras e os poderosos conglomerados midiáticos têm, e que muitas vezes rotulam como inimigas do povo as mesmas forças que transformaram para melhor suas condições de vida. Em momentos de crise, é particularmente difícil identificar o inimigo, justamente por que pode parecer muito fácil fazê-lo. Contradições da vida política...
A novidade nos casos em questão é o uso das redes sociais, que vieram para ficar, como ferramentas de mobilização política. Tal participação não pode ser ignorada, e muita tinta já foi usada para tentar compreender o papel destas novas mídias, mais participativas e colaborativas do que as tradicionais formas de comunicação massificada. No entanto é preciso tentar fugir de certo determinismo tecnológico que poderia redundar numa demasiadamente simplista interpretação de causa e efeito em que as mudanças políticas aconteceriam por causa das novas tecnologias de comunicação. É aqui, acredito, que reside o equívoco. Afinal de contas sempre que uma determinada força social surgiu e se fez ouvir, fez uso das tecnologias midiáticas disponíveis em sua época, quer se tratasse da imprensa (livros e jornais, utilizados por intelectuais de diversos matizes e classes sociais para transmitir suas ideias) quer se tratasse do rádio ou da televisão. Estes últimos, ditos meios de comunicação de massa, são geralmente pensados como formas de anestesiar a sociedade, mantendo o status quo tal como ele se apresenta em dado momento, enquanto se vê as redes sociais como plurais e democráticas, duas visões por demasiado ingênuas e simplificadoras. Não se deve esquecer que os dois principais movimentos de insatisfação popular na recente estória do Brasil (antes das manifestações de junho de 2013), o movimento pelas Diretas em 1984 e o movimento pelo impeachment de Fernando Collor em 1992, se deram durante o império destes meios de comunicação, numa época em que a internet nem sonhava em ser inventada. Por outro lado vemos que hoje, em plena era da comunicação globalizada em rede, a opinião pública muitas vezes se mostra incrivelmente alienada, repetindo como se fossem suas idéias e bordões conservadores que só produzem instabilidade e insegurança.
As redes sociais têm sua importância e a mesma não pode ser desprezada, mas daí a concluirmos que as transformações por que estamos passando dependem exclusivamente delas vai uma grande distância. As transformações acontecem por que estamos longe ainda de alcançar o sonho de uma sociedade mais justa e igualitária. As mídias são, como sempre foram, meios. Não mais que meios. Há que saber utiliza-los com sabedoria, e para isso ainda temos muito que caminhar.
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Postado por Marcio Acselrad
1/8/2015 às 13h49
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Fazer cultura, pensar cultura
São tempos estranhos estes em que vivemos. Provavelmente muitos disseram isso antes de nós. E talvez estivessem certos, como saber? Mas o fato é que nós, os do presente, compartilhamos esta estranha sensação de viver numa era complexa. Era de contrários, de paradoxos e de contradições. Uns afirmam que a cultura e a arte estão em crise, que não são mais capazes de promover um sentido para o mundo, que perderam-se em uma miríade de experiências vagas e aleatórias, competindo pela atenção de uma mídia volátil, interesseira e descuidada. Outros apostam que a cultura é, ao contrário, a única escapatória para esta situação, o único caminho que ainda nos resta para sair do buraco pós-moderno em que nos metemos. E outros ainda creem que é necessário pensar a cultura levando em conta todas estas e ainda outras variáveis.
Tendo isso em mente, aceitei com prazer o convite para ministrar a disciplina "Arte, comunicação e tecnologia" do pioneiro Curso Técnico de Produção Cultural da cidade de Fortaleza, que agora forma a sua primeira turma. Não tinha ideia do que me esperava. Sabia apenas que iria trabalhar com produtores culturais de origens e formações variadas. Essas experiências, embora sempre válidas, podem dar resultados imprevisíveis. Será que os alunos querem realmente pensar a cultura? Serão receptivos a novas propostas? Estão nessa apenas pelo certificado? São inquietações que acomente todo professor que se prepara para uma nova empreitada. Neste caso afirmo sem medo de errar que o resultado superou em muito as minhas expectativas.
Encontrei uma turma heterogêna porem bastante unida, que já vinha trabalhando junta em outros módulos, aberta ao diálogo e a novas ideias, apta a ler e discutir e sem medo de desafios. Ao serem convidados a apresentar seminários temáticos, tanto de caráter teórico quanto prático, abraçaram a ideia e os resultados foram surpreendentes. Tivemos desde verdadeiras aulas com a apresentação de textos instigantes passando por relatos de experiência com a prática da produção cultural e até mesmo intervenções estéticas de encher os olhos e ouvidos. Creio que todos saímos revigorados e de minha parte só tenho a agradecer a todos, alunos e responsáveis pelo curso pela oportunidade de compartilhar um pouco do que sei e aprender um pouco mais do que não sei sobre a mais rica e complexa das ideias produzidas pelo homem: a cultura que fazemos e que nos faz ser o que somos.
Termino mandando um afetuoso abraço a todos estes bravos que ainda acreditam que produzindo cultura e pensando cultura podemos nos tornar seres melhores do que já somos. Se acharem que posso voltar a contribuir um pouquinho com este lindo processo de formação, é só me chamar. Estou às ordens.
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Postado por Marcio Acselrad
29/4/2015 às 18h50
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Beatriz Milhazes no Espaço Cultural Unifor
Círculos, círculos e mais círculos. De todas as cores e tamanhos. Algumas retas que quebram tanta circularidade. De vez em quando, uma fruta ou flor para nos lembrar que é do mundo que se trata. Figuras geométricas perfeitamente imperfeitas. Decalques e serigrafias. Tudo isso transportado em gigantescas caixas de madeira, penduradas em paredes lisas para a apreciação de quem se deixar levar, de quem quiser apreciar. O nome disso é arte e ninguém é capaz de dizer exatamente de onde vem, para onde vai ou para que serve. O dom de Beatriz Milhazes e evidente. Gostando ou não de sua obra, é patente que ela sabe fazer o que faz. Mas de onde vem este dom? O dom é de Deus? Pode ser que sim, mas nesse caso, que divina injustiça! Por que ele abençoa alguns com tamanho talento e outros, reles mortais, precisam se contentar com o dom de apreciar? E por que outros ainda sequer são dotados deste último? Prefiro pensar que o dom de criar e o de fruir são humanos. Demasiado humanos. É o homem excessivo, que transborda de si, transmutando-se em obra e em júbilo. Esta é sua única função. É isso que faz com que Beatriz, em infinita paciência, cubra a tela de camadas e mais camadas, "vista" a tela nua com finos brocados e rendas feitas de tinta, borde na tela os finos abainhados de saias que valsam em requintados salões na nossa imaginação. Ou então que simplesmente viajemos em seu mundo de formas e cores, sem procurar nenhum destino humano, nenhuma forma reconhecível, nenhum traço do já visto. Em todo caso, é experiência mais que necessária em um mundo tão impregnado de cotidiano, de senso comum, de repetição. É o novo invadindo as retinas para que não nos cansemos nunca do mundo e que possamos ve-lo sempre novo, como a criança que, ao nascer, sentisse que nasceu deveras.
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Postado por Marcio Acselrad
18/4/2015 às 12h07
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É mentira?
A mentira
Mal vista por muitos como imoral, motivo de alertas sem fim a filhos rebeldes, a mentira é talvez o maior problema que se possa colocar à possibilidade universal de comunicação entre os homens. Habermas o sabia muito bem. Para podermos nos comunicar, é fundamental que partamos do princípio da honestidade recíproca. Afinal, como podemos saber se o outro está ou não dizendo a verdade? Neste sentido é exemplo lapidar o paradoxo de Epimênides. "Eu minto", disse ele. Com esta simples afirmação, desmonta qualquer possibilidade futura de diálogo. A partir deste momento, jamais saberemos se Epimênides é ou não digno de confiança. A frase é tão absurda que se desmente de todas as formas. Se Epimênides mente, então ao dizer que mente, está dizendo a verdade. Eu hein.
Quando falha o princípio moral da assumpção de verdade, a comunicação entra em crise e a diplomacia dá lugar à guerra. E, no entanto, quando se trata da arte em geral e das artes da narrativa em particular, a mentira não apenas não é punida como passa a ser valorizada, ansiada mesmo. Nosso desejo de sermos enganados é o que faz nossa espécie, por essência mentirosa, como veremos adiante, ter uma verdadeira compulsão universal pela narrativa. Dos mitos gregos e indígenas às páginas de Gabriel Garcia Marques e José Saramago, passando pelo teatro e pelo cinema, o que nos encanta e fascina é um mesmo desejo. Queremos ser enganados. Queremos que nos mintam.
Geralmente o mentiroso paga por sua mentira, às vezes com a própria vida. No caso de Sherazade, curiosamente, é o contrário que se dá. A personagem principal do clássico da literatura árabe faz da mentira sua forma de diplomacia, conquistando noite após noite um indulto sempre provisório. E assim termina por obter êxito, conseguindo finalmente o perdão do sultão. No meio tempo, ao longo das famosas mil e uma noites, entre uma narrativa e outra, engravida três vezes. Na milésima primeira noite Sherazade pede ao rei que não a sacrifique, utilizando inclusive a maternidade como argumento (estaria falando a verdade?). Como negar um tal pedido?
O sultão Schariar, por sua vez, representa nossa ânsia por estórias, nossa vontade interna de sermos enganados, nossa ingênua, talvez infantil, mas não inocente relação com toda forma de narrativa, de entretenimento. Tal como o sultão diante de Sherazade, também pedimos (ou exigimos) que nos entretenham, que nos ajudem a passar o tempo enquanto a morte não vem, que nos mintam que somos eternos. Pois se por um lado Sherazade precisa narrar para não morrer, o sultão também precisa da narrativa pelo mesmo motivo.
E assim acontece a cada vez que abrimos um livro ou vamos ao cinema ou teatro ou mesmo assistimos a um anúncio de televisão. "Me enganem", suplicamos. "Mintam para mim", exigimos. Pois literatura, cinema, teatro, enfim, o universo da arte é, em última instância, o universo da mentira consentida, da mentira desejada. A estética permite o que a moral condena. Neste sentido não apenas são dimensões diferentes, como lembrava Kant, mas verdadeiramente dimensões opostas da existência.
A relação entre o sultão e Sherazade também pode nos ajudar a entender melhor a relação de comunicação que estabelecemos em boa parte das situações que se nos apresentam. Trata-se da comunicação continuada, ininterrupta, possivelmente infinita (afinal mil e um é um número mágico, não é um número aleatório mas a representação mesma do infinito, do tempo do sem fim). Sherazade representa a possibilidade da comunicação plena, da perpetuação do diálogo e, conseqüentemente, da relação entre duas pessoas. Constantemente buscamos, de certo modo, reviver o mito em questão e a cada nova tentativa, um novo jogo se estabelece. Um jogo em que ganha quem consegue esticar ao máximo a conversa e a convivência, quem consegue evitar as armadilhas da rotina e do tédio e perpetuar a aventura da comunicação em narrativas inusitadas e originais.
A perspectiva evolucionista nos ensina que nada permanece por acaso. Se surge alguma novidade, qualquer que seja, em uma determinada espécie/indivíduo, imediatamente ela será posta a prova. E é uma prova de sangue, uma prova de vida ou morte. Se a novidade for benéfica, a espécie tornar-se-á mais apta a sobreviver. Caso contrário, estarão ambas, novidade e espécie, fadadas à desaparição, e delas não sobrará rastro. Não fomos nós a inventar tal regra, e muitas vezes buscamos subvertê-la. Afinal somos a espécie que inventou a consciência, esta ferramenta que, segundo Nietzsche, é o recurso dos que não dispõem de presas ou garras afiadas, não tem o pelo denso nem a pele grossa. A consciência, em suma, é a arma dos que não têm armas.
Neste sentido, é equivocada a crença generalizada de que a mente humana é apenas e tão somente uma ferramenta destinada ao auto-conhecimento e à busca da verdade. Aqui é o contrário que se dá. Como muitas vezes a verdade é prejudicial à sobrevivência do indivíduo e da espécie, ela deve ser utilizada estrategicamente, com moderação. Outras vezes deve ser simplesmente abandonada ou rejeitada. É difícil exigir de alguém que diga a verdade caso esta venha a prejudicar a si próprio ou àqueles que lhe são próximos. Sabemos bem o que seria de Sherazade se dissesse que não sabia contar estórias, que estava com dor de cabeça ou que não era mulher de se submeter aos caprichos de homem nenhum!
Nietzsche é bastante categórico a esse respeito: "No homem, a arte do disfarce chega a seu ápice; aqui o engano, o lisonjear, mentir e ludibriar, o falar por trás das costas, o representar, o viver em glória de empréstimo, o mascarar-se, a convenção dissimulante, o jogo teatral diante de outros e diante de si mesmo, em suma, o constante bater as asas em torno dessa única chama que é a vaidade, é a tal ponto a regra e a lei que quase nada é mais inconcebível do que como pôde aparecer entre os homens um honesto e puro impulso à verdade".
Juntamente com a crença de que somos feitos para encontrar e perpetuar a verdade, que reinou incólume por milênios até desmoronar em fins do século XIX, também merece menção a crença de que fomos feitos para nos auto-conhecer. Repare-se que Nietzsche diz "o jogo teatral diante de outros e diante de si mesmo". Desde a premissa do oráculo de Delfos, o célebre conhece-te a ti mesmo, encarnação do espírito socrático, até o desenvolvimento da psicologia científica, não fizemos outra coisa que tentar entender quem somos e o que estamos fazendo aqui. E uma resposta depende da outra. Não é possível conhecer o verdadeiro se antes não o encontramos em nós. Mas como fazê-lo? Filósofos, psicanalistas e angustiados em geral penam nesta busca.
Mas o professor David Livingstone Smith sugere que nem a busca e perpetuação da verdade nem o auto-conhecimento são naturais. "O engano é uma dimensão crucial de todas as associações humanas, sempre à espreita nos bastidores dos relacionamentos entre pais e filhos, maridos e esposas, empregados e empregadores, profissionais liberais e seus pacientes, governos e seus cidadãos". A verdade é opcional. A mentira, ao contrário, é obrigatória. Livingstone a define como "qualquer forma de comportamento cuja função seja fornecer aos outros informações falsas ou privá-los de informações verdadeiras." Aqui incluem-se fenômenos como o mimetismo, o silêncio, o sorriso forçado, as próteses de silicone, a maquiagem, o penteado do Alckmin e diversos tipos de falsidades verbais, escritas e virtuais.
O que queremos, portanto, não é a verdade mas tão somente suas conseqüências favoráveis, aquelas que conservam a existência. Nietzsche encontra Darwin. Dizer a verdade não é mais natural que mentir. Talvez mesmo seja menos natural, algo aprendido em nome da civilização, da confiança mútua, do espírito gregário. Se não dependêssemos tanto uns dos outros, muito provavelmente mentiríamos mais. E melhor. O problema da mentira, portanto, não é faltar com a verdade mas antes ser descoberto, ser desmascarado. Quando a máscara cái, fica evidente que somos todos egoístas, que mentimos para nos proteger e para nos perpetuar.
A revisão da questão da verdade e da mentira deve sua origem histórica dentro da filosofia ocidental ao movimento romântico que atravessou a Europa no século XVIII. A partir dos dilemas levantados pela filosofia kantiana, os românticos buscaram a compreensão dos fenômenos que a razão não era capaz de abarcar, tais como a vida, o sentimento, a natureza e a arte. Se desde seus primórdios gregos, o fundamento do pensar ocidental era considerado a busca do verdadeiro, o ser arrancado do caos sendo capaz de produzir um pensamento lógico, ao mesmo tempo o pensamento encontrava-se condenado a uma espécie de ilegalidade de todas as outras tentativas de acessar o mundo. A condição romântica buscou retirar a mística e a poesia da clandestinidade a que haviam sido lançadas pela filosofia.
A razão, diz Schiller em suas Cartas sobre a Educação Estética, tende a suprimir a natureza no homem a fim de fornecer-lhe aquilo que ele deveria possuir. É incapaz, no entanto, de substituir completamente a realidade física e social por uma realidade ideal, una e coesa. A natureza, e nesta inclui-se o homem, é múltipla e clama por multiplicidade. O homem vê-se assim dividido, tem de obedecer a dois chamados distintos e opostos, um real, físico, sensível; o outro ideal, formal, utópico. Seu objetivo será então conciliar, utilizando-se de sua liberdade, estes dois instintos contraditórios e buscar o que Schiller chama 'a beleza'.
Também exerceram influência no que dizia respeito às práticas morais do homem, discutindo a validade universal de se dizer a verdade. À proposta kantiana de que não se deve mentir jamais, responde Benjamin Constant: a verdade deve ser dita a quem merece. Para deixar claro seu ponto de vista, utiliza-se de uma situação hipotética. Suponha-se que um fugitivo acusado injustamente (por exemplo, um judeu fugindo dos nazistas) venha procurar abrigo em nossa casa e decidamos ajudá-lo. Em seguida seus perseguidores aparecem e perguntam se sabemos de seu paradeiro. Segundo a premissa kantiana, não podemos mentir e, portanto, devemos entregar o fugitivo. Constant afirma que agindo assim estaremos fazendo um mal, e que a mentira, neste caso particular, é benéfica e deve ser estimulada. Desta forma recoloca-se a ética como uma questão a ser resolvida caso a caso, e não com base em uma premissa universal, portanto válida para qualquer um em qualquer situação. Mentir ou não mentir, e mesmo a definição do que seja mentir, é algo que só pode ser decidido culturalmente. Com o romantismo, ressurge a força do particular, desta vez ancorada por um pensamento que leva em conta a individualidade.
Influenciado por tais idéias, o escritor americano Mark Twain realizou a seguinte experiência, que ele próprio trata de narrar: "Em uma ocasião me aproximei de um amigo meu, um homem dolorosamente propenso a dizer a verdade em todas as circunstâncias, incapaz de dizer uma mentira e o fiz escrever sua autobiografia, tanto para sua própria diversão quanto para a minha. Ele fez. O manuscrito poderia dar um livro soberbo, porém, ainda sendo um homem honrado em todos e cada um dos detalhes de sua vida que eu conhecia, no papel resultou ser um farsante formidável. Não podia evitá-lo. Não faz parte da natureza humana escrever a verdade sobre si mesmo". O problema levantado não é o da mentira proposital mas um, muito mais complexo, o do auto-engano. O amigo de Twain não é um trapaceiro, não mente para se dar bem na vida. Pior, mente sem saber. Mente para si mesmo. Por isso pode ser acusado de confuso ou mesmo insano.
E no entanto o mesmo ocorre conosco em grande parte das situações do convívio social. Boa parte das mentiras que contamos não seriam consideradas mentiras nem se fosse analisadas pormenorizadamente. Para as restantes diríamos: "São coisas sem importância", antes de rapidamente voltar nossa atenção para outro lado. São as chamadas "white lies", as mentirinhas inocentes tais como "seu cabelo está lindo" ou "a comida está ótima". Mas dizem muito sobre nossa essência.
Estas idéias afastam-se do ideal filosófico da busca da verdade, mas aproximam-se bastante da vida, da experiência cotidiana bem como da teoria da seleção natural. Alguém que diga a verdade não importa a que custo terá muita dificuldade de passar seus genes adiante. "Como todo sedutor sabe, honestidade e sucesso reprodutivo não são necessariamente bons amigos". Assim, curiosa e paradoxalmente, a verdade e a virtude nem sempre são a melhor escolha, apesar de tudo o que nos ensinam pais, educadores, filósofos e todos aqueles preocupados com nosso futuro. Sherazade que o diga.
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Postado por Marcio Acselrad
11/3/2015 às 16h44
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Está entrando no ar...
Alô leitores e leitoras, está entrando no ar o mais novo blog do Digestivo Cultural. Como sou novo pilotando esta plataforma, já começo pedindo certa tolerância com este blogueiro nascido no já longínquo século XX. Mas muita calma nesta hora, que tudo se ajeita. Como nosso super editor já se adiantou e mandou algumas perguntas pra gente começar a se conhecer melhor, aproveito o ensejo para publicar a "entrevista" aqui abaixo. Depois a gente conversa melhor, ok? Então lá vai 1. Qual é a sua história com o Digestivo? (Como conheceu; há quanto tempo lê; por que acredita na iniciativa do Digestivo Blogs.)
Não saberia dizer como o Digestivo entrou na minha vida. Sei que faz um bocado de tempo. Fiquei encantado a primeira lida. Que espaço é esse? Como é possível se manter uma publicação na internet com essa qualidade? Quem é esse cara? Aos poucos as coisas foram se esclarecendo. Descobri que esse cara se chama Julio e que é possível, sim, manter uma publicação virtual independente e de qualidade. Continuo não sabendo exatamente como ele consegue mas isso não tem tanta importância. Importante é saber que ele existe, que tem gente, e pelo visto muita gente, que acredita ser possível o exercício da inteligência, da liberdade e da boa escrita em ambiente virtual. O resto é silêncio...
2. Qual é o seu "background" (sua formação)? De onde vem; o que estudou; quais trabalhos seus citaria etc.
Sou graduado em Psicologia pela UFRJ e fiz mestrado e doutorado em Comunicação e Cultura na mesma instituição. Venho de lá mesmo, do Rio de Janeiro, mas há treze anos moro e trabalho em Fortaleza, Ceará, como professor universitário. Minhas publicações versam sobre os temas acadêmicos que mais me interessam: Teoria da Comunicação, Mídia e produção de subjetividade, Psicologia social e principalmente humor. Este último, acredito, é a coisa mais importante que temos para viver, mais até do que a razão. A prova disso é que a razão muitas vezes nos falta. Mas que seria de nós sem humor?
3. Sobre quais temas vai falar/tratar no seu blog?
Acredito que um blog deva ser essencialmente um espaço de liberdade. Espero poder tratar de assuntos variados, além dos citados acima. É um lugar para se falar de política, cultura, crenças e descrenças, humor, musica, literatura e o que mais pintar por aí. Espero que seja também um bom lugar para dialogar, ler opiniões semelhantes ou divergentes mas sempre que possível cordiais. Gosto de polêmicas e acredito que da discussão pode vir muita coisa positiva, desde que seja feita com sensibilidade e respeito.
4. Você já teve blog? Se sim, qual (ou quais), e com que repercussão?
Nunca tive um blog como esse. Já tive outros mas com finalidades específicas, ligadas à academia.
5. Qual é sua relação com a escrita? Já escreveu em outros veículos/sites? Já publicou? Como foi a sua experiência nesse sentido (de colaborar e/ou publicar)?
Minha relação com a escrita vem de longe. Sempre fui um apaixonado por letra escrita, leitor convulsivo. Gostava tanto de escrever que minha primeira incursão pelo mundo universitário foi no curso de Comunicação Social da UFRJ, onde descobri que, apesar do amor pela palavra, não levava jeito para jornalista profissional. Já escrevi matérias esporádicas para algumas publicações e no momento sou colunista do jornal Ser Tão, editado em Quixeramobim, Ceará.
6. Como é se interessar por cultura, ou ter uma atividade intelectual, ou simplesmente ler o Digestivo, num país como o Brasil, ou sendo brasileiro (a)? É uma profissão de fé? Ou é um desafio que te motiva (no dia a dia)?
Cultura é tudo. Absolutamente tudo que fazemos é cultura. Escrever é cultura mas também pintar, compor, pensar, discordar. Somos seres culturais, quer saibamos disso quer não. Cultura é também cultivo, e nesse sentido é algo que deve ser cuidado, preservado, cultivado mesmo. O Brasil não costuma ser visto, principalmente pelos que aqui vivem, como um país com forte tradição cultural mas isso absolutamente não é verdade. Temos grandes escritores, artistas e intelectuais, além de uma riquíssima tradição de cultura popular. Mesmo que muitas vezes esta não seja valorizada pelos órgãos oficiais, sempre há os que percebem sua importância e a valorizam. Neste momento acredito que estamos em um momento particularmente interessante quanto a isso. Como professor universitário sinto que nosso papel de formador de consciência crítica é cada vez mais presente e dele não podemos abrir mão. Desafio? Mas qual a graça de algo que não seja um desafio?
7. Você acha que, através da internet, podemos mudar esse cenário (de pouca cultura, pouco interesse pela vida intelectual, parca discussão de ideias etc.)?
A internet é um reflexo do que somos. Ao mesmo tempo um lugar propício para o debate, a troca de ideias e a discussão inteligente e um lugar inóspito, violento e agressivo. Por trás do anonimato muitos se escondem e berram opiniões preconceituosas mas muitos outros utilizam este espaço para o dialogo profícuo. Nada muito diferente do que acontece no mundo chamado real...
8. Quais foram suas maiores influências? (Não precisa, necessariamente, ser alguém conhecido ou "famoso". Pode citar obras e/ou experiências também.) Quais "modelos" pretende seguir (ou te servem de referência)?
É tanta gente que fica difícil escolher. No campo da literatura, as primeiras e ainda hoje mais fortes influências foram sem dúvida a turma do humor: Luis Fernando Veríssimo, Millor Fernandes, Aldir Blanc, o pessoal do Pasquim. Também podem ser citados José Saramago, Machado de Assis, Rubem Fonseca, Dostoievsky, Leonardo Padura, Sholem Aleichem, Groucho Marx, Schopenhauer e, claro, Carlos Acselrad. Devo ter esquecido um monte de gente...
9.10. Onde mais a gente pode te encontrar? (Links ou referências, na internet, que você quiser/puder passar...)
https://www.facebook.com/marcio.acselrad
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Postado por Marcio Acselrad
9/3/2015 às 15h55
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Julio Daio Borges
Editor
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