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Quinta-feira,
26/3/2015
Consultório Poético
Mariana Portela
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Instruções para matar um fantasma
Instruções para dar corda no relógio
Julio Cortázar
"Lá no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, pegue com dois dedos o pino da corda, puxe-o suavemente. Agora se abre outro prazo, as árvores soltam suas folhas, os barcos correm regata, o tempo como um leque vai se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar, as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão.
Que mais quer, que mais quer? Amarre-o depressa a seu pulso, deixe-o bater em liberdade, imite-o anelante. O medo enferruja as âncoras, cada coisa que pôde ser alcançada e foi esquecida começa a corroer as veias do relógio, gangrenando o frio sangue de seus pequenos rubis. E lá no fundo está a morte se não corremos, e chegamos antes e compreendemos que já não tem importância."
Instruções para matar um fantasma
O primeiro e imprescindível questionamento, quando se quer assassinar um fantasma, é certificar-se de que se deseja a nulidade verdadeira. A perda de alguns espectros pode deixá-lo vulnerável à eterna melancolia.
Imagine, se possível, as noites insones destituídas de sua presença. Reveja a si mesmo em solidão absoluta, mais inaudível que profundezas oceânicas, em escuridão de lua cheia. Fantasmas são, via de regra, ótimas companhias oníricas, devoradores de madrugadas.
Como os silêncios são penitências da maturidade, escolha-se adulto ao tomar uma decisão tão rigorosa como essa. Fuja dos charlatães que prometam o exorcismo. Nenhum corpo humano é capaz de apagar uma estrada.
Siga, passo a passo, os rituais de luto, que flutuam entre a negação e o sublime. Hospede-se em suntuosas criações, asilos para a cicatrização e desespero. Tolere a abstinência ontológica, compreendendo que, às vezes, ele psicografará por seus dedos — umas belas palavras — como gostos escondidos de infância.
Embora os relatos até hoje tenham sido promissores, pessoas ainda me confessam, à surdina: "passada a febre e a ira, é provável que você perceba: o fantasma sempre esteve ali, gestando no seu passado, acontecendo no seu agora e hibernando no infinito".
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Postado por Mariana Portela
26/3/2015 às 03h00
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Ansiedades de amanhecer
"É no ínfimo que vejo a exuberância." Manoel de Barros
A véspera da viagem sonhada; o café da manhã da criança, em primeiro dia de aula; à espera de um sábado cinzento, com a agenda repleta de nadas; uma bendita noite, digna de revelar um antigo segredo; a obviedade de um amor, por anos enclausurado em cólera; para despertar os orvalhos; dias de verão, sem nuvens para apaziguar o colorir das peles; consumar o trabalho idealizado; o almoço viciado em ópios; quando a vida é traduzida em outras línguas; será que será eterno?
Quando me foi emprestado o olhar para que a arte se manifestasse em minha íris; dia de faxina para a festa; dia de faxina depois da festa, à procura de sussurros ou embriaguezes primeiras; em busca de um olhar que sorria com a mesma intensidade de quem respira; acender uma vela em oração.
Lagartixa em comunhão com a varanda; aspirar os pensamentos da miragem; sentir-me encharcada por milagres, ainda imaculados; café com cigarro; entregar uma flor de bicicleta; ler o cartão de quem destina uma flor; pela dissonância que torna alguém artista; uma melodia subscrita na carne.
Negação do amanhecer; pela lua que se vai em sincronia com um beijo; o sol primogênito da concretude de um sonho; pela morte de um corpo já sem passado, já sem futuro; rompimento da bolsa; sublimação da dor que há séculos habitava o músculo, fatigado de excessos.
Pela imagem poética ilusória; pelo presságio que dê nome à jornada; por amigos que clamam compartilhar suas quimeras; rompimento dos ovos, em coração de árvore.
Não anoitecer a solidão; transcrever, apenas, minha renúncia à existência mesquinha; carregar o fardo dos vagalumes.
Com ansiedade de amanhecer, recebo, em ternura, a missão de desobsediar epifanias.
Ps: dedico este texto à minha irmã, Renata. Que ela tenha muitas ansiedades de amanhecer na nova vida!
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Postado por Mariana Portela
25/3/2015 à 00h37
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O perdão do amor demais
Talvez seja pouco conhecida a história de Lilith, a primeira mulher da criação. Nascida da mesma matéria— e em igual potência — a Adão, a personagem banida da Bíblia possui uma análise mitológica dificílima. Para encurtar a história, ao perceber que não poderia dominar o amante, a filha de Deus se vê em um dilema: a igualdade ou a submissão.
Sua alma, no entanto, escolhe não sucumbir à dominação masculina. E ela voa para longe do Éden, inadvertidamente. Três anjos saem à sua caça. Insubordinada, Lilith é alvo da mais cruel das maldições: seria transformada em demônio e cem de seus filhos seriam mortos a cada dia. Ela, por sua vez, retribuiria a dor: atacaria mulheres e crianças recém nascidas e roubaria o sêmen dos homens durante o sono, na tentativa desesperada de repor os descendentes assassinados.
Em termos arquetípicos, é possível comparar o mito de Lilith à anima junguiana. Adão teme o mistério e a obscuridade de sua parte feminina, a qual nega por considerá-la uma ameaça às suas forças. Sua atitude é uma recusa à interioridade, à plenitude e ao processo de individuação.
Astronomicamente, Lilith representa a Lua Negra, quando o satélite se encontra no ponto mais distante da Terra. Exilada do planeta. Em astrologia ela exprime o sacrifício ao todo, à integração cósmica. Sua influência interfere diretamente na fertilidade, na abertura ao novo, na inevitável verdade ontológica. Do útero — a escuridão suprema — nasce a vida.
A liberdade da mulher torna-se, pois, um fardo: não se pode amar demais. Não invadir o que não foi nomeado. É preferível cristalizar a ignorância do que iluminar conteúdos submersos. Proibido como o fruto da serpente (que também, em algumas leituras, é uma animalização de Lilith). A sabedoria dual luz e sombra deve ser evitada, pois não se mensura os limites do conhecimento, em profundezas.
A etimologia, contudo, desvenda os mais belos dizeres sobre o símbolo de Lilith. De origem suméria, "Lil" significa ar. Respirar, concomitantemente, em latim, remete à devolução ao espírito (re — "de novo" e spirare — espírito).
Lilith, expatriada deusa, é um presságio de nosso destino: ao nos defrontarmos com os escuros, feridas impronunciáveis de nós mesmos, preferimos a rejeição. Tememos a dispneia. Revirar os naufrágios, emergir o caos, abraçar a coletividade. Abdicar do ego em prol da igualdade nos é insuportável. Contudo, será possível atingir a clarividência, nas superfícies de nossas almas?
Este texto é uma homenagem ao meu amigo amado Bruno Padilha.
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Postado por Mariana Portela
24/3/2015 à 00h54
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Graças a mim
Nos últimos anos pude perceber, principalmente pela internet, a apropriação superficial de longínquos conhecimentos sobre o funcionamento do cérebro e seu vínculo com a busca pela felicidade. A ascensão meteórica da "autoajuda Namastê" tornou-se um fenômeno que acomete as mentes contemporâneas, com promessas de plenitude e mudanças estruturais imediatas. Há muita gente que já não se permite a utilização da palavra "obrigado", por exemplo, como forma de agradecimento. Não é de se estranhar que exista uma alienação quanto à origem da palavra, quando nos deparamos com simplificações de conceitos tão densos quanto os arquétipos. Contudo, meu incômodo pode se transformar em pesquisa. Fui, assim, encontrar-me com São Tomás de Aquino, em texto brilhante do professor Jean Lauand para resgatar as origens etimológicas, necessárias à compreensão da humanidade como signo primordial das linguagens. Agradecer é uma palavra sublime: está presente em diversas línguas, mesmo que originadas por radicais totalmente distintos. São Tomás de Aquino já testemunhava o nascimento dos arquétipos, ao proferir que: "línguas diferentes expressem a mesma realidade de modo diverso." Sua composição, em inglês, concilia os verbos to think e to thank na mesma família etimológica. Não se poderia agradecer, caso não tivéssemos a reflexão como base ancestral do conhecimento. Arigatô também possui um cordão umbilical semelhante: "a existência é difícil", "é difícil viver", "raridade", "excelência (excelência da raridade)". Toda dádiva é uma raridade. Em latim, a graça possui sentidos ainda mais complexos. Sua formulação original está atrelada a três movimentos: receber a benção de alguém, sem quaisquer merecimentos; compreender o sentido de dom, gratuitamente dado ao indivíduo, sem o buscar; retribuir, como dever, à graça que foi generosamente delegada. A expressão em português, derivada do latim obligare, "ligar por todos os lados, ligar moralmente" vincula-se, pois, à terceira e mais nobre das dimensões de São Tomás de Aquino, ou seja, eu me sinto muito obrigado em lhe retribuir esta gentileza. Quantas vezes, ao citarmos essa expressão corriqueira, damo-nos conta da sublimidade de seu poder? Se estou obrigado a retribuir ao Universo, conecto-me verdadeiramente em transferir esse presente, de forma legítima e muda, desprovida de alardes. Uma obrigação em silêncio e em confluência cósmica. Por fim, nos vagos ensinamentos da autoajuda, nunca há um fortalecimento verdadeiro, no que diz respeito à autoestima e ao amor próprio. Nunca a gratidão é oferecida à própria pessoa: deve-se ao planeta, aos outros, aos temporais, mas e a si mesmo? Não deveríamos nos focalizar em nossas virtudes, excelências dadas a nós em gratuidade? Hoje, ao trabalhar com processos e ferramentas voltados para o autoconhecimento, percebo que pouco nos colocamos em contato com os nossos dons: queremos sempre saber a inferioridade que nos habita. A mudança comportamental verdadeira, a que provoca uma alteração significativa na autoimagem, é um processo muitas vezes doloroso. Revivemos, por muito tempo, máscaras deformadas de nós mesmos, que tentam nos colocar em velhos personagens. Mudar, para o cérebro, dói. Portanto, é essencial dialogar com os dons, com as vocações ontológicas. Descobrir, uma por uma, as preferências estruturais e tirar proveito dos talentos. Estar obrigado a transcender-se. Saber-se abençoado por seus próprios contornos.
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Postado por Mariana Portela
4/3/2015 às 11h54
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Julio Daio Borges
Editor
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