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Sexta-feira,
24/4/2015
Flávio Sanso
Flávio Sanso
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A descrição piegas de um modo especial de andar
O ponto de ônibus é movimentado, o que não quer dizer que não seja monótono. Todos os ônibus são amarelos. Ao parar, todos produzem o mesmo som estridente. E todos se sucedem após a mesma arrancada impetuosa. No alto, o sinal alterna suas cores de sempre. Ali nunca haverá azul, ou cor-de-abóbora, ou roxo.
Mas alto lá. É preciso estar atento às brechas da rotina. Pela calçada se aproxima um casal de jovens. Bem jovens. Quase ainda crianças. Não os notaria com interesse se estivessem de mãos dadas. Caminham de um jeito singular. Ele a envolve em um abraço por trás. Estão grudados. Friccionam-se. Mas não há nisso qualquer traço de erotismo. Muito pelo contrário: exalam inocência. As pernas se movimentam em sincronia, provocando o efeito de parecerem sustentar um só corpo. As dele seguem as dela como se puxadas por um barbante imaginário. Há quem possa menosprezar a perícia do casal, mas aos implicantes recomendo que tentem fazer igual. Rapidamente perceberão que caminhar dessa forma, mais do que compatibilidade anatômica, requer a sintonia fina atinente aos mais afortunados casais... Meu olhar os acompanha até que eles desapareçam na longitude da noite fria.
Embarco em um dos ônibus amarelos. Junto à janela percebo que alcancei o casal. É a última oportunidade de observar a cena, mesmo que por míseros segundos. Ele é alto. Em relação a ela, é muito alto. Os olhos dela, moldurados por óculos de aros vermelhos, projetam-se para cima. Não procuram as estrelas, nem a lua brilhante. Sorrindo, só o que querem é encontrar os olhos dele.
Texto originalmente publicado no site reticencia.com
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Postado por Flávio Sanso
24/4/2015 às 08h32
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Van Gogh não pintou seu fim
No dia 27 de julho de 1890, um domingo, após almoçar na Estalagem Ravoux, Vincent van Gogh, munido de tintas, cavalete e pincéis, envereda pelos campos de Auvers para mais uma sessão de pintura. Anoitece quando o pintor desponta com andar trôpego. Retorna sem cavalete, tintas e pincéis, trazendo um pequeno orifício sob as costelas. O que aconteceu de fato naquela tarde é um mistério, e as explicações para tal lacuna socorrem-se apenas de versões.
Muito por causa da personalidade depressiva e transloucada do pintor, que inclusive em outros tempos já havia decepado parte de uma das orelhas, a versão que ganhou corpo ao longo dos anos é a que Van Gogh teria cometido uma espécie de suicídio desastrado. Durante a sessão de pintura e enquanto usava a arma para espantar corvos, teria cometido o ato de atirar contra si. Mas a monumental obra biográfica "Van Gogh - a vida", de Steven Naifeh e Gregory White Smith (Companhia das Letras) pretende confrontar veementemente a tão propalada versão de suicídio.
Como se não bastasse a excelência do trabalho de pesquisa que percorre toda a vida do gênio holandês ao longo de mais de mil páginas, o livro já valeria a pena apenas pelo final, em que são esmiuçados todos os detalhes relacionados à tragédia, de modo a esclarecer, por exemplo, que o ferimento causado pelo tiro tinha pequenas dimensões e pouco sangramento, o que, associado ao fato de que a bala tenha ficado alojada no corpo, indica que o tiro foi disparado à distância, e não à queima-roupa como seria típico de um suicídio. Além disso, merece destaque a figura de René Secrétan, jovem de dezesseis anos que passava as férias em Auvers e que costumava se vestir com trajes de cowboy, incluindo o porte de uma pequena arma. Nesse contexto, levando-se em conta que René Secrétan tinha por hábito perturbar o pintor de modos extravagantes e que sumiu após o episódio (assim como também sumiram a arma e o material de pintura), é bem provável que Van Gogh tenha assumido a culpa e encoberto algum tipo de disparo provocado por brincadeira, acidente ou outro motivo qualquer que não estaria ligado à vontade do pintor, sobretudo diante de uma frase quase elucidativa dita em seu leito de morte: "não acusem ninguém."
Enfim, após a leitura de "Van Gogh - a vida" é mesmo difícil abraçar a ideia de que Van Gogh tenha tirado deliberadamente a própria vida. Sua conturbada condição psíquica, ainda que parecesse invencível, não suplantou a obsessão em construir as bases de uma nova arte que dava sentido à sua vida. Quando morreu aos trinta e sete anos, estava no auge de sua produção, não parecendo justo que a Vincent van Gogh seja atribuída a responsabilidade incontestável de ter provocado a interrupção de um dos mais significativos patrimônios artísticos da humanidade
Texto originalmente publicado no site reticencia.com
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Postado por Flávio Sanso
2/3/2015 às 20h26
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Julio Daio Borges
Editor
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