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Terça-feira, 9/2/2016
Impressões Digitais
Ayrton Pereira da Silva
 
ARQUITETURA ONÍRICA

Sou engenheiro do nada

a construir no silêncio

lanço mil pontes no vento

construo contos de fada.

Não edifico no espaço

trabalho no vão do tempo

a obra feita de sonho

concreto de pensamento.


Meu labor é organizado

nos moldes tecnicistas

da moderna engenharia.

O bate-estacas martela

em seu compasso pausado

os alicerces da terra

dos sonhos jamais sonhados.

Construo assim meus castelos

de fantasmas povoados

com blocos de fantasia

da pedreira do passado.


A casa de minha infância

perdida de muitos anos

reconstruí na lembrança.

Sou artesão sem enganos.

Ergui a sua estrutura

com artes de arquitetura

de quem refaz raro quadro.

Atento a todo detalhe

fiz-me pintor e pedreiro

e carapina de entalhe.

Edifiquei na memória

fronteira cá dos meus pagos

moldando matéria-prima

das jazidas do passado.


Plantei no meio da sala

um girassol matizado

que marca o tempo sem horas

de um calendário parado.

O cuco é um pardal morto

por estilingue mirim.

Hoje ele guarda em seu posto

O girassol sem jardim.


Na casa de meu segredo

o arvoredo ensombrado

revive na terra o enredo

de seus troncos decepados.

Na casa de minha infância

tudo agora é floração.

Lá outrora fiz meu mundo

para o qual ainda hoje fujo

clandestino no porão.

Então revivo o menino

mago santo peregrino

nos caminhos sem destino

de um reino sem dimensão.


Que importa se na verdade

não mais ela exista não

se foi vendida e ferida

de morte e destruição

mais vale tê-la intangida

no solo da evocação.


Não edifico no espaço

trabalho no vão do tempo

a obra feita de sonho

concreto de pensamento.


Ayrton Pereira da Silva

in Corpo de delito & prosipoemas

Livraria José Olympio Editora, 1982



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
9/2/2016 às 11h07

 
CHARADA FINGIDA

É um mistério aberto,

um falso enigma.

É um mosaico talvez ou coletânea,

antologia para o bem ou mal.

Os longos dedos de tocar piano,

cor de sonata, orvalho, serenata.

Pelos do púbis das cores mais raras:

Verde sereno de nobre esmeralda,

vermelho-sangue de rubi flamante.

Voz de soprano, eco ao longe, uivo.

Face marmórea de fatal beleza,

ao mesmo tempo etérea borboleta.

Bocas secretas que guardam tesouros

e numa delas um pote de ouro.

Sorriso arcano qual de Monalisa,

imprevisível raio em céu de azul total.

Onipresente em domicílio incerto,

roda-gigante do azar e sorte.

Quem sabe um sonho de alguém desperto,

talvez delírio ou algo de concreto,

leva consigo sabendo ou sem saber

o inefável aroma de ser e de não ser.

Ayrton Pereira da Silva



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
26/1/2016 às 15h33

 
PARÁBOLA

Assim, desassistido de tudo, pus-me a caminho. Os deuses haviam morrido na antevéspera. Carregava comigo, como sempre, a inseparável provisão de sombras e augúrios que tinha colhido em sonhos e presságios, mas que agora de pouco ou nada serviria, já que andava por um mundo órfão de crenças.

As catedrais vazias viraram mausoléus de divindades mortas, para quem os raros fiéis, que insistiam em sua fé, entoavam réquiens que rebatiam nas paredes altas das imensas naves e se perdiam, através dos vitrais, pelos espaços infindos de um céu desabitado de potestades.

Era um tempo à deriva, um fim de era ou talvez um princípio de outra, onde cansados peregrinos vagueavam em busca de novos signos. E os rumores e boatos fervilhavam em surdina, sussurrados a medo, num mundo em que os humanos indefesos não tinham a quem pedir em preces proteção contra os azares da fortuna e os perigos do caminho.

Tempo de profetas e arúspices que, pela boca e nas entranhas dos pássaros, prediziam o advento de uma noite eterna. Tempo de estranhezas e de bizarros cultos.

Em sua solidão, filósofos pensavam talvez um novo mundo, a que faltava a esperança da iluminação. E a só lógica da razão afigurava-se a uma lamparina a que faltasse a chama.

Nada, além disso, o homem produzia. E pela paisagem esmaecida, aqui e ali um canto esparso, talvez de alguma ave desgarrada, talvez a voz de um vento póstumo entre galhos desnudos de espectros de árvores desfolhadas.

Assim caminho eu agora neste vale de sombras, imerso em pensamentos sobre a extinta civilização, morta anteontem. E como a sombra talvez de minha sombra, levo a certeza jamais expressa e nunca confessada dos peregrinos que transitam em busca de um horizonte inalcançável.

Ayrton Pereira da Silva



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
26/1/2016 às 15h17

 
ANTES DO ANTES

...queria um poema avesso ao poema nascido das tripas do nó das entranhas o sujo do mundo mais do que imundo calando as estrelas e as luas diuréticas de noites patéticas queria um poema sem ser um poema tatuado nas ruas nas travessas nuas nos becos sombrios xingando nos muros tão mudo profético que no seu silêncio gritado e histérico pregasse ao deserto ecoando nos ermos a língua dos camelos dos grãos das areias da terra primal bem antes do sol bem antes da vida bem antes da morte do azar e da sorte do bem e do mal bem antes do nada do menos do mais do sim e do não bem antes do antes bem antes bem antes...

Ayrton Pereira da Silva



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
26/1/2016 às 15h08

 

O SÉCULO QUE ME VIU NASCER



Não me considero melhor nem pior do que ninguém: sou um homem da planície. Tive catapora, sarampo, coqueluche, caxumba, e tenho pensamentos sinistros. Um superego tirânico me mantém sob seu tacão até hoje - o que faz de mim um perfeccionista obsessivo e doentio.

Se acaso tiver algum crédito em minha deficitária contabilidade emocional (coisa de que até duvido), só posso atribuí-lo à circunstância fortuita de haver nascido na terceira década do século XX, quando a Alemanha, debaixo do nariz das nações executoras do Tratado de Versailles, ostensivamente gestava a formidável máquina de guerra que aterrorizou o mundo. Época de extremas contradições, o século XX espelha com precisão e fidelidade o que todos somos, animais divididos entre instinto e razão.

Mas, como dizia, ter nascido no século passado ensejou-me a oportunidade de uma visada em perspectiva que o distanciamento no tempo proporciona. Não sei se essa espécie de cosmovisão representa algo de vantajoso. Tenho sérias dúvidas.

Assim, cheguei ao mundo ainda num tempo em que predominava a cultura europeia, a língua francesa era o idioma universal com todo o seu acervo intelectual e artístico, representado por personalidades de magnitude estelar nos múltiplos campos do fazer humano. Época do cultivo do espírito, anterior à civilização pela imagem, era da cultura humanística, herdada da Grécia Antiga, a Magna Hélade, rejuvenescida pelas conquistas do Renascimento e da Democracia Moderna.

Nada mais natural que minha formação fosse forjada nos moldes da educação formal então em voga: o estudo do idioma merecia especial ênfase, pela óbvia razão de que vivemos num mundo de relação e o conhecimento do vernáculo constituía o primeiro passo no domínio da linguagem que, além de ser a ferramenta de comunicação por excelência, representa sobretudo o cimento que consolida a unidade de um povo como nação.

Sob a orientação de meu pai, que me abriu as portas do universo mágico da literatura, iniciei-me na leitura de entretenimento devorando os números do Tico-Tico, revista em quadrinhos precursora das modernas HQs, tornando-me cúmplice das trapalhadas do trio Reco-Reco, Bolão e Azeitona, personagens genuinamente brasileiros concebidos pelo traço burlesco de Luiz Sá. Daí para o acesso aos gibis com seus heróis tipo Flash Gordon, Fantasma, Príncipe Submarino, Tocha Humana, Capitão América, Batman e tantos outros foi um pulo. Viajei, ainda na infância, pelos livros do genial Monteiro Lobato - e vieram então O Saci, As caçadas de Pedrinho, Reinações de Narizinho, O Picapau Amarelo, até as versões infantojuvenis dos temas mitológicos como O Minotauro, Os doze trabalhos de Hércules e O D. Quixote das crianças. Seguiram-se as leituras de escritores estrangeiros, sobretudo franceses, como Victor Hugo, Jules Verne, os Dumas, pai e filho, com breves digressões pelos os autores de dicção inglesa e italiana, devidamente traduzidos, como Sir Walter Scott, Rudyard Kipling, Mark Twain, Emilio Salgari, entre outros. Ah, claro, e o indefectível Sherlock Holmes, de Conan Doyle...

Aprendi com meu pai a amar os livros, que, mais do que simples objetos, se afiguravam aos meus olhos como uma espécie de seres reveladores das rotas da imaginação nas tramas que armazenavam. E foi então que ao prazer físico do folheá-los, agregou-se o misto de respeito e cumplicidade que me tornava também um personagem de carona nas estórias que narravam. Hoje, os linguistas aludem à denominada teoria da recepção segundo a qual o leitor, ao aderir ao texto pela leitura, torna-se, por assim dizer, seu coautor, emprestando vida à letra morta.

Meu rito de passagem para a idade adulta coincidiu com o batismo de fogo na literatura portuguesa, arrostando a "selva selvaggia" da tríade romântica llusitana, formada por Alexandre Herculano, Almeida Garrett e Antonio Feliciano de Castilho, somente capaz de ser desbravada com o Caldas Aulete a tiracolo. Tornei-me, à custa de tentar decodificar aqueles textos, um quase especialista em sinonímia, atributo que se esmaeceu com o passar dos anos de desuso.

De lá para cá, o mundo sofreu uma revolução, caracterizada, sobretudo, pelo sequestro do idioma, avassalado pela invasão de barbarismos. Aos que não sabem que palavra é essa, recomendo que consultem um dicionário; perdão, senhores, pelo ato falho, que recorram ao doutor Google...

A passos largos, vamos perdendo o domínio do vernáculo e junto com ele nossa identidade nacional.

Vivemos a era da extinção dos livros impressos, substituídos pelos e-books e outros veículos de comunicação virtual. Pois é, essa a nossa realidade.

Metaforicamente, poderíamos figurar essa transição como a passagem da borboleta para a crisálida, ou seja, uma metamorfose às avessas?

Mas você está, propositalmente, ignorando o notável progresso técnico-cientifico que atingimos, a ponto de se cogitar, através das células-tronco e da decodificação do genoma, na possibilidade até de alcançarmos a juventude eterna, isso sem falar no inimaginável progresso da eletrônica que não conhece limites. Vive-se agora uma era em que a mais ousada das fantasias vai se tornando realidade.

Não sei se devo responder à provocação de um demiurgo que cavilosamente se disfarça em otimista de plantão, descortinando um mundo de sonhos hedonísticos, em que tanto a ciência quanto a tecnologia detêm o condão de transformar a vida numa fruição sem fim. Não sei se devo mandá-lo ler o Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, mas, diante do risco concreto e imediato de vê-lo navegando num texto virtual, engulo o que ia dizer.

Não sei se devo teorizar sobre o tema mais que batido do eterno descompasso entre o progresso material e o retrocesso moral que pontua nossa trajetória existencial. Penso que não, pois, na verdade, esse demiurgo não passa de uma invenção minha ou do meu próprio alter ego.

E assim caminha a humanidade, oscilando perigosamente entre dois extremos, num movimento pendular. Não sei o que mais - além da ameaça do apocalipse nuclear, dos homens-bomba, da espionagem virtual, da degeneração dos costumes, da abolição da ética e da impunidade - ainda nos aguarda neste planeta estuprado a cada minuto pelo bicho-homem cuja criminosa irresponsabilidade não tem mais fronteiras.

Não sei o que será de um mundo em que seus habitantes se tornaram imunes ao horror das tragédias a que assistem comodamente instalados em suas casas, como se as reportagens transmitidas pela televisão em tempo real fossem apenas cenas de um filme. Francamente, não sei como pessoas adoram ver sangue jorrando nos octógonos dos UFCs e MMAs da vida podem ter algum futuro como civilização.

É por isso que, apesar de todos os contrastes e confrontos, dos altos e baixos, prós e contras, me considero afortunado por ter nascido no século passado e, por falta exclusiva de tempo vital, não ter muito mais a testemunhar.

Mas tudo isso que foi dito aí em cima, cai fragorosamente por terra, diante de meu olhar perplexo, quando o próprio autor destas linhas se socorre do milagre da virtualidade para transmiti-las a hipotéticos leitores por meio de um post.

Essa, a meu ver, a grande magia da vida, essa roda-gigante que nos põe a girar...girar...girar... passando do êxtase ao assombro, da alegria à tristeza, da grandeza à pequenez, porque para isso nascemos e assim prosseguiremos até as cortinas se fecharem.

Ayrton Pereira da Silva



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
2/1/2016 às 10h47

 
ALTERIDADE

Quando me for daqui

um outro tomará o meu lugar.

Importa pouco o que eu haja feito

ou o que o outro fará.


Diante das ruínas de Atenas

ou das lembranças da poderosa Roma

tirar clássicas fotos ou venerar o passado

de nada a mim ou ao outro valerá.


Erguem os arquitetos monumentos

e os escultores estátuas e os artistas obras plásticas

que desafiam o tempo

e algum êxtase em mim ou no outro despertará.


E que dizer das tecnologias

que facilitam a vida dia a dia

pois longe vão os tempos espartanos

nestes tempos de agora hedonísticos?


Ou mesmo até dos edifícios de papel

que os escribas projetam com palavras

a transmitir aos pósteros estesias

transcendentes de forma cor e massa?


Importa pouco afinal a mim ou ao outro

o voo dessa ou aquela borboleta

que a vida fez alegremente efêmera.


E não importo eu e nem o outro

mas tão somente o que cegos cumpriremos

dando sequência à sucessão dos fatos

que torna eterno o voo passageiro

da borboleta e também o anonimato

do ser humano que a contempla apenas

com o mesmo olhar que viu talvez

ou nem sequer verá

as ruínas de Roma ou de Atenas.


Ayrton Pereira da Silva

in Umbrais 7Letras, 1997



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
12/12/2015 às 16h26

 
INDAGAÇÕES À SOMBRA

Era somente um homem e sua sombra

e mais um dia inteiro de permeio.


Bem que se pode dividi-lo ao meio

como uma faca parte em dois um queijo.


Era somente um homem e sua sombra

os dois em um feito na propaganda


quando se paga um só levando ambos

com o olhar sagaz de quem barganha.


É uma sombra só para um só homem

e ao sol a pino os dois quase se somam.


À noite a sombra sai subterrânea

quando o homem se deita sobre a cama.


Lá se vai ele: o homem e sua sombra.

Lá se vai ela: a sombra com o homem.


Se alguém soubesse o que pensa a sombra

do mesmo modo como pensa o homem...


Mas nem parece que o homem pensa a sombra

que o persegue assim sequela mansa


e é quase uma cadela que o alcança

se o homem bruscamente o passo estanca


para espiar a vitrina distraído

sem ter a sombra repetida pelo vidro.


Será que o homem sobrevive à sombra

ou vai largá-la como um cão sem dono?


Será que partem solidários ambos

como partem conosco os nossos sonhos?


Por que será que o homem foi-se enfim sozinho?

Será que a sombra perdeu-se no caminho?


Ayrton Pereira da Silva

(in Destempo 7Letras, 2004)



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
1/10/2015 às 17h50

 
Reflexões Abissais

O Sanatório Geral informa: o esdrúxulo texto abaixo, fruto das lucubrações delirantes de um cérebro demente, é expressamente contraindicado para os portadores de hipersensibilidade, os impressionáveis, os hipocondríacos, os hipertensos, os depressivos, os cardiopatas e apenas, a rigor, permissível aos padecentes de extrema lucidez, aos nefelibatas, aos sem-futuro e aos loucos de todo gênero.

***

Não lembro onde nem quando Saramago disse que ninguém, em sã consciência, poderia ser otimista. Em outras palavras, quis ele dizer que nenhum ser humano carrega consigo impunemente o fardo do conhecimento de que começa a morrer no exato instante de sua própria concepção.

Seria um pensamento autodestrutivo? Julgo que não, embora saiba das contestações que certamente me oporiam os que se consideram, por formação acadêmica, possuidores da chave mestra dos segredos da psique, além dos representantes da new generation dos futuristas que já projetam para meados deste século XXI a conquista da juventude eterna. Talvez não fosse justo tachá-los de alquimistas pós-modernos, nem referir-me a essa anacrônica ressurgência da procura da pedra filosofal. Não, definitivamente não seria digno de minha parte fazer tal afirmação...

A vida se me afigura uma espécie de jogo à vera de esconde-esconde, ao curso do qual fingimos ignorar a sombria realidade que a todos, sem exceção, espreita. E assim, após o breve interlúdio da infância e talvez até, vá lá, da pré-adolescência, entramos na raia onde se travará a corrida contra o tempo. E construiremos então a nossa história, não importa se de grandes ou pequenos feitos, porque, ao cabo das contas, a contabilização de tudo não nos caberá.

Claro que somos o que pensamos, e neste jogo que se chama vida todos jogamos por conta própria, sendo livre a estratégia adotada por cada qual. Há, por exemplo, os que consideram o jogo como um brinquedo, mesmo que só para uso externo, fazendo questão de ostentar o seu modo de viver, uns mediante a exibição de riqueza, outros alardeando seu descompromisso, ou ainda os que tornam a vida uma espécie de passarela para o desfile de fatuidades e vaidades vãs.

Existem, por outro lado, os que se apegam à crença na transcendência do destino humano, cujo desfecho estaria além da cruel realidade da extinção física. E tentam ou conseguem até jogar o jogo como um rito de passagem, ao fim do qual passariam, por assim dizer, de lagarta a borboleta. Trata-se de uma estratégia salvífica, buscando assegurar um paraquedas para o salto no escuro. A estes, salvos sejam!

Aos que, em contrapartida, pensam estar diante de um jogo de antemão perdido, restaria, ao que parece, a danação. Mas não sejamos tão trágicos assim. A vida, meus caros, é para ser vivida, ou mal ou bem vivida, mas vivida em toda a sua plenitude. Claro que se você, por exemplo, fosse um rato (sem conotações rebarbativas, por favor), repito, se fosse um reles rato, ou, se preferir, um cachorro ou um gato, quero dizer, um ser irracional, seria eterno, pois estaria longe das cogitações de seu limitado psiquismo a perspectiva da morte, apenas episodicamente sinalizada se, diante de uma ameaça concreta, seu instinto de autopreservação fosse acionado.

Mas não somos irracionais, embora, a rigor, até nem pareça. Por essa só e simples razão, fomos aquinhoados com a presciência da própria finitude, o que nos condena, quando menos, a cumprir pena perpétua na solitária metafísica de nós mesmos. A menos que você brinque de ser deus — e esta é mais uma das estratégias possíveis neste jogo sem regras que é a vida — à semelhança desses novos magos da cibernética com suas invenções maravilhosas, que acenam para um verdadeiro paraíso terreal. Ou que persiga a fórmula de um mundo novo de inesgotável fruição, como apregoam, com pompa e circunstância, os monopolistas de um venturoso porvir, apostando nas futuras descobertas das ciências e da tecnologia, em crescente e assustadora evolução.

Tudo são placebos, meros pretextos que revestimos para nos distanciar da dura verdade finalística. Existe também o trabalho com o qual ganhamos o pão, as roupas, a diversão e tudo mais que deve compor nossa paisagem pessoal, que se alicerça na segurança da rotina a cuja sombra amamos e procriamos. É na esteira do labor de cada dia que florescem os viciados no trabalho, os workaholics, com o perdão do estrangeirismo de péssimo gosto, que perseguem, como os drogados de qualquer genero, a rota escapista de um simulacro de nirvana artificial — o que também, forçoso é convir, não deixa de ser outro tipo de estratégia, tão "válido" quanto os demais.

Porém — e há sempre um porém — quando chegada a temida hora da perda gradual da vitalidade, a hora da doença grave, da velhice, ou da falência, do desgosto, ou simplesmente a hora h, porque esta sempre chegará, quem terá jogado melhor?

Esta a pergunta que me faço desde que me entendo por gente, e que agora, gentilmente, transfiro para vocês.

Ayrton Pereira da Silva



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Postado por Ayrton Pereira da Silva
3/9/2015 às 16h20

 
APENAS UM POEMA

É apenas um poema, nada mais,
e como tal só feito de palavras.
Asa de anjo, ninho de andorinha,
cor de ventura, furta-cor da morte...
É um poema que fala de amor,
do lado escuro e amargo do rancor.
Cheiro de lenha no fogão antigo
que acordava a luz do sol raiado.
Um riso franco da perdida infância
na eternidade falsa de um retrato.
É um poema armado até os dentes
sem arma alguma de explosão ou corte
nem peso algum na face do papel.
Este poema tateia no escuro,
batendo sem defesa contra o muro.
É um poema de silêncio e nada,
e por não existir, sua leitura
talvez seja um engano dos sentidos,
uma ilusão de ótica, um delírio.
Este poema vazado de assombros,
de sentimentos vagos como os sonhos,
fez-se somente da matéria etérea
de que se tece o ar que respiramos.

Ayrton Pereira da Silva


Ayrton na Isla Negra, antiga casa de Neruda


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Postado por Ayrton Pereira da Silva
12/8/2015 às 21h09

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