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Terça-feira,
3/5/2022
Impressões Digitais
Ayrton Pereira da Silva
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THE END
Esta viagem se alonga há muito tempo.
Não tem retorno
e já é tarde para interrompê-la.
Foram muitas as cenas à janela
tantos os testemunhos a distância
que me deixaram marcas nas lapelas:
desbotaram as cores fio a fio
da superfície ao cerne do tecido.
Passou-se assim a vida feito um filme
De que não se guardou nenhuma imagem
ou fotograma sequer.
Só uma vaga lembrança.
Ó fugidias câmeras
de que películas fui um dia personagem?
Ou figurante apenas,
pois isso só a mim já contentava?
Tudo ocorreu tão rápido...
É o salão que acende.
São as figuras que apagam.
Enfim no fim nem um the end.
(Não era assim que os filmes terminavam?)
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Postado por Ayrton Pereira da Silva
3/5/2022 às 12h06
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A TETRALOGIA BUARQUEANA
Noel Rosa, cognominado "o filósofo do samba", recebeu, post mortem, o título de Comendador da Ordem do Mérito Cultural, por suas composições musicais. Chico Buarque de Holanda, a seu turno, foi o vencedor do Prêmio Camões que equivale ao Nobel, só que da literatura dos países lusófonos.
São dois gênios, um já falecido, o outro não. As composições de ambos são em verdade clássicos da música popular brasileira e os clássicos, como se sabe, não têm idade, jamais envelhecem.
Isto, porém, não sucede com os autores sobre os quais incide a ação devastadora do tempo.
Chico Buarque de Holanda, agora idoso, parece que já se encontra contaminado pela proximidade do fim. E veio construindo, pouco a pouco, em largos intervalos, quatro composições musicais que vieram a constituir o que chamei de tetralogia buarqueana.
Na primeira dessas músicas, "Hoje é dia de visita", ele visualiza a pré-morte. Trata-se de um personagem que, sofrendo de Alzheimer, pensa que todo domingo chega uma moça toda linda para vê-lo. Ele imagina que foi muitas coisas importantes na vida e há um refrão recorrente: ”veio a vida e me levou”.
E no desfecho ele murmura: hoje não tive visita, acho que não tive almoço, acho que o moço nem me lavou, acho que esqueci o meu nome, acho que tudo acabou...
Na segunda, "Nina", é a morte metafórica, ilustrada na expressão - fecho os olhos e tomo alguma vodca e vou”...
Na terceira, "Tua cantiga" ele fala expressamente na morte, ao escrever - quando o nosso tempo passar ... e eu não estiver mais aqui, lembra-te minha nega dessa cantiga que fiz pra ti.
Na quarta música "A moça dos Sonhos" é o pós-morte que Chico focaliza, escrevendo: Há de haver algum lugar num remoto casarão onde os sonhos serão verdade e a vida não...Se eu pudesse achar ali meu amor, não voltava jamais...
São todas elas músicas e letras maravilhosas, lindíssimas. Profundas, de um quase delírio de clarividência e de lucidez.
Essa, a marca matricial, com o timbre da genialidade de um Chico Buarque m plena floração como na juventude. Sob tal prisma, por assim dizer, Chico, já um senhor de idade, rejuvenesceu.
Ayrton Pereira da Silva
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Postado por Ayrton Pereira da Silva
5/3/2021 às 15h00
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ETC. E TAL
Ana
de longe
me espia
do cimo da ventania.
Suas palavras
caladas
me cortam
feito navalha.
Mora nos ventos
não fala
mas seu retrato se traça
em cada nuvem que passa.
Me recrimina
a poesia
aonde afogo
os meus dias.
Do destempo
me contempla
com seus olhos de cristal.
Pergunto qual seu mistério
zangada ela não responde
e volta a me olhar de distante
com seu olhar de vitral
— Ana etc. e tal.
Ayrton Pereira da Silva
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Postado por Ayrton Pereira da Silva
1/11/2020 às 16h32
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UMA VISÃO PRAGMÁTICA
Não sou filósofo, sou um homem da planície, ex-advogado por vocação e formação — devo dizê-lo sem laivos de vaidade — e que, por circunstâncias diversas, fiz algumas incursões no território da Filosofia, de um modo superficial. Nada, além disso.
Na vida, sempre imponderável e aleatória, somos apenas peões, as primeiras peças a ser descartadas no tabuleiro do xadrez cósmico que não é senão uma metáfora da Vida contra a Morte, como no filme gótico “O Sétimo Selo”, de Ingmar Bergman, onde um cavaleiro medieval luta até o último fôlego pela sua vida, numa batalha que sabe de antemão perdida.
Qual o cavaleiro medieval, não me resta tanto tempo.
Então, serei breve na abordagem do tema que me propus.
Do ponto de vista pragmático, a meu ver, a vida resume-se, em síntese, a intuições, trocas, escolhas e perdas. Somente.
Intuições revestem-se de caráter polissêmico. Foi graças a elas, que Fleming descobriu a penicilina, num episódio histórico que todos conhecem.
Não fosse seu alto grau de percepção intuitiva, teria jogado fora um material mofado, mas, ao revés, levou-o ao microscópio e descobriu que aonde havia bolor o estafilococo não se desenvolvia, descobrindo então a penicilina, que continua salvando até hoje muitas vidas.
Grande parte das descobertas se deve às intuições, ao empirismo, como no caso da vacina antivariólica.
Já as escolhas, que a vida inteira somos obrigados a fazer, dada a força que as circunstâncias exercem sobre nós, como ressalta Ortega y Gasset, importam, grosso modo, em renúncias. Ao se escolher alguém ou algo, renuncia-se a outrem ou a alguma coisa.
Já as trocas remontam à Roma Antiga, quando o sal era uma mercadoria de inestimável valor, porque muito raro no interior da Europa. Pois bem, essa era a forma de pagamento dos soldados das legiões romanas, donde proveio a palavra soldo. Com o sal compravam-se roupas, alimentos, armas e outras coisas.
A persistência, ao longo dos tempos, da palavra salário, é tanta que até hoje é usada como remuneração em dinheiro, ou seja, a quantia paga ao empregado pelo empregador, pelos serviços a este prestados.
Por derradeiro, falemos agora das perdas, desde as de coisas mais simples até as mais dolorosas e trágicas.
A valoração do sentido da perda, seja por furto, seja por caso fortuito, depende de cada pessoa. Perder-se algo de estimação ou uma coisa comum, quase sempre incomoda, ora mais, ora menos.
Somos todos finitos, bem o sabemos. Mas ninguém se conforma com a morte. É algo que nos contamina e nos envenena aos poucos desde que nos é dado existir e quando começamos a pensar.
Por que, nos perguntamos, o esforço de viver nos exige tanto para depois morrer? Não há resposta plausível. Apenas a falta de sentido de tudo isso.
Não ouso adentrar-me nesta vexata quaestio (perdoem-me o latinório, um velho vício de ofício).
A Filosofia não é uma ciência simples, como abrir uma porta com uma fechadura sem segredo. A Filosofia é multifária e complexa e ao abrir-nos muitos caminhos e descaminhos — sem bússola ou norte magnético, em sentido figurado, obviamente — torna-se fácil nos perdermos.
Esse caráter proteico das buscas e indagações filosóficas decorre necessariamente de sua adaptação à face mutável do tempo, sem o que a Filosofia iria perder o senso de realidade que a lastreia como ciência humana.
Para o bem ou para o mal, gosto de pensar, por tal motivo não vou botar a mão no vespeiro sem ser apicultor.
Divirjo, com o devido respeito, dos filósofos que sustentam que o empirismo e o racionalismo se contrapõem. Para mim, ambos se completam.
Na mitologia grega, por exemplo, a descoberta da figura do centauro num desenho rupestre decorreu de um ato empírico, mas a conclusão de que se tratava do simbolismo de um ser metade animal, metade homem foi fruto do uso da razão. O mesmo sucedeu nos primórdios da Filosofia: foi preciso, antes de tudo, descobrir o que existia em torno do homem pela experiência da observação, ou seja, o empirismo que foi, por assim dizer, o starter que acionou a rodagem da razão para que, a partir daí, a dinâmica filosófica se amoldasse à face do tempo naquele momento histórico do nascimento da Filosofia.
E assim persiste, até os dias de agora, o evolver da Filosofia, como uma ciência em aberto, suscetível de novos achados e descobertas, sem o mínimo intuito de angariar prosélitos, laica que é, por definição.
Isto, porém, não exclui a existência de Deus. Desde os filósofos da Antiguidade, sejam ocidentais ou orientais, sua quase generalidade acreditava na existência de um Ser Supremo, a teor de Sócrates, Platão, Aristóteles e, muito depois, Kierkegaard, que jamais nominou sua obra e vivia às turras com a igreja de seu tempo. Foi o filósofo Gabriel Marcel que batizou, por sua conta e risco, de existencialismo cristão a obra do sábio dinamarquês muito depois de sua morte. Conta-se que foi ele quem preencheu o vazio deixado pela morte de Aristóteles, sem embargo de outros tantos grandes filósofos terem surgido de permeio, como Kant, Hegel, Descartes, citados aqui a título meramente exemplificativo.
Basta dizer-se que a Suma Teológica, de S. Tomás de Aquino, o Doutor Angélico, embasou-se em Aristóteles.
A ideia da inexistência divina ressurgiu num grupo que se reunia no café de Flore, na Rive Gauche, autodenominado de existencialismo humanista, liderado por Sartre, casado com Simone de Beauvoir e por Camus, que se diziam ateus. Esse existencialismo humanista data de meados dos anos 50.
Mas a obsessão de negar sistematicamente a ideia da inexistência divina, a contrario sensu, acaba por transparecer que essa espécie de fixação era a expressão oculta de que existia mesmo um Ser Superior, criador do universo e de todo o infinito, enfim, do macrocosmo, enquanto nós, reles mortais, somos o microcosmo, os que pensamos ser senhores de nós — e não somos.
A espécie humana é regida por duas pulsões: a pulsão animal e a pulsão racional. Só que a primeira quando despertada tem prevalência sobre a outra, daí os erros, as violências, a transgressões que cometemos — e só depois nos damos conta, culpando-nos. É que a pulsão animal age a priori e a racional a posteriori. E aqui voltamos à imagem icônica do centauro, pois a história da vida é cíclica, num ir e vir sem fim.
Enfim, cabe aos filósofos o enorme desafio de desfazer o nó Górdio sem a espada de Alexandre, O Grande...
Ayrton Pereira da Silva
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Postado por Ayrton Pereira da Silva
1/8/2020 às 15h33
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PASSEIOS PELA PRÉ-HISTÓRIA
Sou do tempo em que helicóptero era chamado de autogiro e avião era aeroplano, nos arredores dos anos 45 do século passado.
Às vezes, noite velha, eu acordava com o som longínquo de um aeroplano flanando nas nuvens, e imaginava ser o Flash Gordon em sua nave futurista, concebida pelo traço genial de Alex Raymond, até que o sono me embalasse de novo para a escuridão do nada.
Os espigões que agora pululam pela minha ex-doce e amorável Nictheroy, chamavam-se, naqueles idos, arranha-céus e se contavam por alguns dedos de uma só mão. As ruas eram povoadas por casas com generosos quintais, onde floriam e frutificavam árvores e flores, com o perdão da redundância aqui empregue com o intuito único de emprestar cores fortes ao cenário recriado pela imaginação.
No mar, as barcas movidas por rodas, como as do velho rio Mississipi de antanho, batizadas como Segunda e Terceira e mais duas outras de cujos nomes não me recordo, levavam cerca de uma hora para atravessar a baía. O mundo de então era regido por outro compasso.
Levado por meu pai para comprar roupas no Pavilhão, sempre de um tamanho maior para serem aproveitadas por mais tempo, eu procurava me esquecer das calças de “fundilhos de coar café” que me aguardavam, olhando pela janela a coreografia alegre dos botos que saltitavam ao lado da embarcação, exibindo-se aos passageiros. Penso que foram eles, esses patuscos dançarinos do mar, os precursores do nado sincronizado dos jogos olímpicos de hoje.
A Praia de Icaraí, de águas límpidas como, de resto, todas as outras, ostentava o trampolim, cartão-postal e orgulho da cidade, de cuja plataforma mais alta só os ousados se aventuravam a saltar, pois, dizia-se, um desses mergulhadores morrera ao bater de cabeça na areia, já que ali o mar não era profundo. O trampolim era uma lenda urbana agora reduzida ao preto e branco das fotografias antigas.
Foi uma era de amabilidade e gentileza, substantivos que caíram em desuso. Na Praia das Flexas (grafada assim mesmo na placa oficial), as pessoas cumprimentavam-se pelos nomes. Em suas águas cristalinas, viam-se cardumes variados, desde os pequenos peixes-agulha aos baiacus, sardinhas, peixes-voadores, arraias-manteiga que descansavam preguiçosamente no fundo, ao alcance de nossos pés, e também algas, estrelas-do-mar e até, de raro em raro, uma tartaruga marinha. Depois das ressacas, com o refluxo da maré pela manhã, eu, meu irmão João José e nossa sobrinha Leda acorríamos à praia para catar conchas e caramujos vazios, que viriam a se tornar os reis, rainhas, damas da corte e cavaleiros de armadura nos nossos enredos infantis.
Recordo-me dos tempos do Colégio Bittencourt Silva, de saudosa evocação, onde cursei a admissão, o ginasial e o científico, segundo a nomenclatura de então. Morando na Rua Pereira Nunes, eu ia caminhando até o colégio, na Rua José Bonifácio, ouvindo pelas janelas abertas das casas o prefixo musical, se não me engano um trecho do concerto de Grieg, que anunciava a radionovela imperdível pelas donas de casa, naqueles idos anteriores à era da televisão.
Alguns professores deixaram lembranças marcantes, como o Serapião “larga o lápis”, o professor Gualberto e sua indefectível “platina da bomba pneumática”, que jamais vimos, o mestre de Inglês, apelidado de “Deixa que eu Chuto”, pelo seu andar arrastando uma perna como se fosse chutar uma bola e finalmente o Diretor e dono do educandário, apelidado de Sinistro, por usar ternos escuros e andar pelos corredores das salas de aula como se pisasse sobre algodão.
Naqueles tempos de vacas magras, era uma aventura o dia em que, depois das aulas, contando os níqueis, podíamos dar uma chegada até a extinta Pastelaria Imbuhy, que exibia, ao fundo, uma réplica da barca homônima, que girava em torno de si mesma, para saborear um delicioso pastel com um copo de caldo de cana moída na hora.
O tempo, irreversível e inclemente, transformou em matéria de memória os dias de nossa adolescência, que este velho de cabelos brancos armazenou no empoeirado sótão da imaginação, entre sonhos, sombras e assombros
Uma das lembranças mais remotas — que me foi repassada em segunda mão — data dos primeiros tempos de nossa chegada a Nictheroy, quando meu pai, ainda atlético, costumava remar numa baleeira do Clube de Regatas Icaraí, indo desde a Itapuca até o Canto do Rio, e retornando, são e salvo, com restante da tripulação, de que também faziam parte o já famoso jurista e tratadista Nelson Hungria, autor do Código Penal de 1940, até hoje em vigor, além do tabelião Gaspar e do futuro desembargador Vieira Ferreira Neto.
Naquela época, nossa cidade era cortada de norte a sul pelos bondes da Cantareira, que transportavam para todos os recantos os ilustres passageiros, assim tratados pelo reclame de um fortificante, à vista de todos, que apregoava em versos: “Veja ilustre passageiro/ o belo tipo faceiro/ que o senhor tem a seu lado,/ e, no entanto, acredite,/ quase morreu de bronquite:/ salvou-o o Rhum Creosotado”. Eram assim, muitos rimados, os comerciais daqueles tempos românticos, quando nosso idioma, a bela Flor do Lácio, era falado corretamente. É curiosa a etimologia da palavra bonde, aliás, intraduzível, inspirada na denominação social dos detentores originários da exploração desse transporte urbano sobre trilhos, a Bond & Share Co. Havia inúmeras linhas para servir os diversos bairros: São Francisco, Canto do Rio, Av. Sete de Setembro, Largo do Moura, Circular, Santa Rosa, Viradouro...
Lembro que, nas manhãs de inverno, quando tomava, pontualmente, às sete e trinta, o bonde que me levava até Icaraí, rumo à escola de D. Carmen Cavalière D’Oro, eu tiritava de frio, pois as cortinas de lona eram insuficientes para barrar a friagem que varria o interior da condução em todas as direções. Às vezes, eu tremia tanto que chegava a bater queixo, apesar da capa Pelerine de casimira que herdara de um irmão mais velho...
Quando me debruço na abstrata janela da memória e aguço o olhar para esses tempos longínquos, revejo as tardes mortiças de domingo, onde a melopeia dolente de um realejo bordava de tristeza ainda maior a paisagem deserta de minha rua.
Tive a ventura de muitas décadas depois, em nossa querida e inditosa Friburgo, mostrar, na companhia de minha esposa Eny, aos nossos filhos Sandra, Júnior e João Paulo, um inesperado e anacrônico realejo, que já supunha de há muito varrido pela vertigem dos anos, manejado por um homem de avançada idade, ostentando um chapéu verde de duende, enquanto um periquito amestrado pinçava com o bico cartõezinhos da sorte para quem não temesse saber o que o futuro lhes reservava.
Ainda mais recentemente, desta feita em Santiago do Chile, na rua onde morava nosso caçula, João Paulo, no elegante bairro de Vitacura, numa tarde de sol domingueiro, surgiu de repente um realejo, para deslumbramento dos filhos de nosso filho e nossos netos Rafael e Emily — em contraponto com minha indiferença, pois já não tinha mais os olhos de criança.
Pode ser que nas incontáveis voltas e reviravoltas das rotações e translações que nosso planeta dá, talvez, quem sabe, venha a ocorrer, por obra e graça de alguma misteriosa conjunção astral, o retorno de um tempo que virou pó. Mas eu duvido.
Ayrton Pereira da Silva
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Postado por Ayrton Pereira da Silva
5/1/2020 às 14h41
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MEMÓRIA
Dela ficara um retrato.
Um só.
Apenas.
E uma saudade
imensa
que dele transbordava.
Uma dor-rio
lágrima-mar
oceanotristeza
que nascendo juntos
em correnteza
daqueles olhos da foto
invadiam o quarto
e desaguavam
nos dois olhos de fora do retrato.
Ayrton Pereira da Silva
in Umbrais
Ed. 7Letras
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Postado por Ayrton Pereira da Silva
2/10/2019 às 16h58
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A MECÂNICA CELESTE
Aura dos Anjos estranhou não acordar com o canto do galo Dioscórides que invariavelmente aos primeiros albores da manhã exercia, com pontualidade, o ofício que a natureza lhe dera.
Abrindo a janela do quarto, notou que, apesar da hora, a lua continuava boiando, soberana, no alto do céu, absolutamente alheia à tirania dos relógios e às leis da mecânica celeste.
Saiu então apressada para o quintal rumo ao galinheiro, onde, empoleirado, o galo dormia a sono solto, a crista caída, as asas recolhidas.
Ora essa, murmurou com seus botões, já são oito e vinte e o sol ainda não nasceu!
Entregue às suas cismas, quase esbarrou na avó Mariquinhas que, de mortalha arrepanhada, arrancava uns pés de margaridas para fazer seu desjejum.
Vó Mariquinhas, que é que a senhora está fazendo aqui? Seu lugar é lá no cemitério, disse a menina.
Então, com muita paciência, sua avó explicou que nos dias de Lua Cheia os mortos voltavam ao mundo dos vivos para completar tarefas deixadas em meio, e coisas assim. No seu caso, por exemplo, era urgente trocar a mortalha pela roupa luto fechado dos domingos de plenilúnio, pois deixara de assistir à missa quando fora levada para o Além.
Acompanhada pela avó, Aura dos Anjos entrou em casa, acendeu o pavio da lamparina e correu a chamar os pais em seu socorro, mas nem os gritos da menina para que se levantassem; nem os tapinhas que deu nos seus rostos foram suficientes para acordá-los de seu sono de pedra.
Deus meu!, exclamou assombrada, eles estão mortos. E desatou num choro convulsivo.
Não estão não, tranqüilizou-a avó, quer dizer, estão e não estão.
Como assim?, perguntou a neta entre soluços.
É que, nos dias de Lua Plena, quando o sol não nasce cedo, os vivos entram em estado de letargia, pois, do contrário, sua convivência com os mortos acabaria por afetar-lhes a razão. Mas você, minha neta, ainda não está preparada para entender dessas coisas.
Na igreja, onde as imagens estavam cobertas de roxo, o Monsenhor Rezende, ostentado um solidéu desbotado e a estola puída, ainda retirando aos piparotes uns grãos terra da batina apodrecida, iniciara sua prédica do alto do púlpito, quando a avó entrou no templo, onde um punhado de defuntos atentos assistiam ao ofício.
Quando o relógio da torre da igreja ecoou as cinco badaladas da antemanhã do novo dia, o galo Dioscórides, abrindo freneticamente as asas, empinou a crista e soltou seu canto, anunciando o retorno da tirania dos relógios e o restabelecimento das leis da mecânica celeste.
Muito esquisito isso! Quando acordei eram oito e vinte da manhã... Será que o tempo está andando pra trás?, perguntou-se a garota.
A mãe de Aura dos Anjos acordou estremunhada com o canto do galo e apressou-se no preparo do café da manhã, lamentando a ausência da filha, que sempre a poupava daquela tarefa. Felizmente, pensou, o marido ainda dormia, porque, se levantasse com o café ainda por fazer, desataria num destampatório do tamanho do mundo, acusando a mulher de desmazelo e culpando a filha por ter morrido de nó nas tripas depois de devorar uma jaca inteira com caroço e tudo.
Levando a mão à boca para conter um grito de susto, a mãe, que ainda não se habituara a perda filha, deparou-se com o bule fumegante na trempe do fogão de lenha. Depois, firmando-se nas pernas bambas, lembrou com orgulho que a filha era assim mesmo: nunca deixava de fazer o café da manhã. E sua filha mais uma vez preparara o café para a mãe.
Para a avó Mariquinhas, católica fervorosa em vida, ou a menina era dotada de poderes desconhecidos ou estava morta mesmo e seu espírito ainda não de desprendera do lugar em que vivera. Conhecia casos assim em que os mortos agiam como se existissem, repetindo a rotina quotidiana, como rezava a tradição oral de seu povo desde tempos imemoriais.
Era esse o mistério que dava continuidade ao mistério da vida: um mistério dentro de outro mistério, igual àquelas bonecas russas, as chamadas matrioskas, umas dentro das outras e todas dentro de uma só.
Ayrton Pereira da Silva
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Postado por Ayrton Pereira da Silva
1/6/2019 às 18h01
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PROCURA-SE
Gratifica-se a quem achar
haveres meus abstratos
que cansei de procurar.
Quem viu por aí, ao acaso,
algumas tardes antigas
quando um menino escutava
um realejo longínquo
que já não se escuta mais?
Quem viu por aí, ao acaso,
um álbum de selos daqueles
de tempos bastante antigos
que transportava um menino
até distantes países
sem se mover do lugar?
Quem viu por aí, ao acaso,
estampas do sabonete Eucalol,
almanaques dos gibis
que coloriam de festa
manhãs de Natal tão modestas?
Quem por acaso sentiu
um aroma de alfazema
um cheiro etéreo e fugaz
de outras eras provindo
de um quarto de três mocinhas
as minhas irmãs meninas
que se foram sem voltar?
Quem entreviu ao acaso
as minhas musas de então,
se elas preferem agora
o exílio da escuridão?
Quem viu por aí, ao acaso,
feito um delírio acordado,
minhas rotas fantasias,
fantasmas rondando a esmo
nos corredores de outrora
da casa paterna morta?
Quem viu acaso um menino
vagando qual peregrino
que esqueceu de envelhecer?...
Ayrton Pereira da Silva
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Postado por Ayrton Pereira da Silva
1/5/2019 às 16h56
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O NAVEGANTE DO TEMPO
Tomou o bonde circular e embarcou para o século passado. O condutor com a destreza de um malabarista aproximou-se, equilibrando-se no estribo como se já tivesse nascido ali. Balançou para ele a mão direita onde as antigas moedas de níquel chacoalhavam unidas umas às outras, feito soldados numa parada militar, cobrando a passagem.
O passageiro enfiou os dedos no bolso da calça, onde só havia moedas atuais, mas o condutor que o conhecia de há muito disse não haver problema algum. Amanhã o senhor acerta tudo, doutor. E levou a mão direita à pala do quepe de seu uniforme azul-marinho num gesto de deferência.
Está tudo muito estranho neste trajeto, pensou o passageiro, vários são meus contemporâneos, mas voltaram todos ao tempo de criança e nem sequer me reconhecem...
São fantasmas do passado ou estou delirando? Não sabia responder à própria pergunta nem como embarcara naquele veículo elétrico anacrônico, cujos trilhos tinham sido removidos da cidade fazia mais de meio século.
Deteve-se então no exame minucioso do interior do coletivo, onde os longos bancos de ripas de madeira envernizada causaram-lhe a sensação de familiaridade de quem neles se sentara incontáveis vezes. No teto do veículo, os mesmos reclames de antigamente propalavam a excelência dos produtos anunciados, inclusive a propaganda de um famoso elixir cujo nome ele guardara na memória: Rum Creosotado.
Após essa inspeção interna, lançou o olhar para a paisagem urbana que se desenrolava ao longo do percurso como num filme antigo que resgatasse a arquitetura das desaparecidas casas de centro de terreno, com árvores frondosas e flores nos jardins, enquanto o velho bonde sacolejava e rangia na bitola estreita dos trilhos. Comparando-o a uma caravela em mar revolto, chegou a esboçar um arremedo de sorriso ao se considerar uma espécie de navegante do tempo. Nisso, um insólito lampejo de consciência, como se, de repente, emergisse de um sonho, sacudiu-o de cabeça aos pés -- diabos, como vim parar aqui?
Jamais deixamos de fazer este trajeto, doutor, mas só os escolhidos se apercebem disso, pareceu-lhe escutar a voz do motorneiro que, bem distante dele, movia a manivela de direção, concentrado no comando do bonde.
Daqui a duas paradas, vai subir no bonde aquele viúvo, que levava sempre consigo o seu violino para tocar no túmulo da esposa a mesma música, ele se surpreendeu pensando, com uma certeza premonitória, e, ao mesmo tempo, recriminando-se por ter, quando menino, seguido secretamente aquele homem até o cemitério, junto com uma malta de colegas do ginásio, para depois imitarem, entre risos e zombarias, numa mímica grotesca, um recital de violino.
Estava ainda às voltas com esses pensamentos terríveis quando o bonde parou para que o violinista subisse no estribo e se acomodasse no mesmo banco onde se encontrava o passageiro idoso, que, olhando-o de soslaio, surpreendeu-se ao ver que o viúvo não envelhecera como ele, era, sim, o menino de outrora, carregando o estojo do violino para aula de música. É preciso ter calma e ponderação: na verdade esse garoto que vejo é muito mais velho que eu, e pelos meus cálculos o garoto e futuro viúvo já deveria estar debaixo da terra. E esses outros passageiros também permanecem imunes à passagem das décadas, inclusive o condutor e o motorneiro, enquanto ele já velho a tudo assistia através das grossas lentes dos óculos de grau que agora usava como um apêndice indispensável. Engoliu a custo um silêncio amargo - o que fizera outrora, quando adolescente, tinha requintes de uma crueldade inominável. Sentiu-se tremendamente envergonhado. Sim, estava pagando por isso um alto preço. Teve que fazer um esforço sobre-humano para não confidenciar ao menino e futuro viúvo que não se casasse com a mulher que morreria na flor da idade. Não queria passar por maluco e nem poderia imaginar como seria a reação do estudante de violino, agora apenas uma criança. Seria certamente internado num hospício como um louco perigoso e de lá só sairia morto.
Esse dilema trágico aumentou ainda mais seu sentimento de culpa, quando voltou à realidade absurda do retrocesso no tempo, quem sabe por escapismo ou talvez por um gesto desesperado de autodefesa, como algo que ficaria dentro de si sem resposta alguma, sob a forma de uma eterna interrogação. Matar-se, cometer suicídio? Era covarde demais para isso.
Buscava febrilmente outra solução, algo pragmático, que não iria decerto aplacar suas insônias que viraram uma constante em suas noites, e quando cochilava de pura exaustão era pior ainda, acordava berrando em agonia por causa dos pesadelos persecutórios.
Preciso encontrar, preciso encontrar, está aqui dentro de minha cabeça. Dizem que quem procura, acha, embora haja controvérsias.
Mas ele achou, pois essas coisas acontecem no universo ficcional, se o personagem conseguir impressionar o autor que o criou...
E foi isso que se deu, precedido dos toques de trombetas bíblicas que só o idoso escutou.
Vou consultar urgentemente o oculista, pois essas lentes estão fracas demais. Em seguida, retirou os óculos para limpar as lentes com o lenço, pensando que, além de fracas, estavam completamente embaçadas...
Ayrton Pereira da Silva
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Postado por Ayrton Pereira da Silva
1/4/2019 às 16h38
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LONDON LONDRES
A aldraba da porta,
o grifo brônzeo.
Ao lado, o Hyde Park:
sombra e assombro.
Entre névoas errantes,
o andar a esmo.
Pelas ruas de Londres,
a mão inglesa
surpreende de súbito:
salto e susto.
Fish and chips
ginger ale, pubs.
A cidade sorri,
dama discreta.
No quarto do hotel,
uma remota lembrança
é déjà-vu
e magia algo estranha
para a menina do quadro
e suas tranças.
O desconcerto chega
e toma conta
dos pobres dísticos
e sua circunstância...
Ortega ri seu riso
onde se encontra
na margem oposta
do Ebro lá de Espanha.
Esquento o chá
e seu aroma eleva
o espírito das flores:
primavera.
Enquanto sorvo
a cálida tisana,
o tempo tece
as teias das aranhas.
Ayrton Pereira da Silva
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Postado por Ayrton Pereira da Silva
1/3/2019 às 09h59
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