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Domingo, 12/7/2015
Blog da Mirian
Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
 
Kafka em meus sonhos

Passei pelo Largo da Carioca. Que pena! O bondinho de Santa Teresa, não está funcionando? Quatro horas. Na Uruguaiana, entrei na Casa Cavé. Com o frio e o temporal da tarde, bem-vindo o chocolate entre imagens de sonhos de hoje e de antes:

Era domingo. Íamos a Santa Teresa visitar um amigo de meu pai. Sob a marquise, paramos em frente à bilheteria do Teatro Municipal ─ Sonhos de uma noite de verão, coreografia de George Balanchine. Chovia muito. Nessas horas o guarda-chuva sempre emperra.

Terno e gravata, dois homens conversavam próximo:

─ E O Processo?

─ Naquele tempo. Época da Primeira Guerra.

─ Naquele tempo. Hoje. Em muitos lugares.

Esperando que o aguaceiro estiasse, voltamos pro carro estacionado em frente ao teatro. Perto, alguém cantarolava: "Cómpreme usted este ramito / Cómpreme usted este ramito"... Antes do temporal, Kafka entregara um raminho de flores à bailarina Eduardowa. "Ah! Miosótis!". A personagem do sonho do escritor prendera as flores na gola do casaco e, apressada, saíra correndo. Ia pegar um trem na esquina da Araújo Porto Alegre.

Querendo então abrigar-se da chuva, Kafka subiu a escadaria do teatro e sentou-se no patamar sob um beiral. Na véspera, terrível insônia. Cabeça apoiada numa pilastra, ali dormiu. Ao olhar-lhe o rosto tranquilo, ninguém adivinharia pesadelos não registrados nos livros. Entre imagens recorrentes, outro assassinato. E aguda voz over repetindo: Foi ele. Foi ele. Foi ele.

─ Acusado de quê?

─ Ninguém sabe.

Continuei olhando pelo vidro. Terríveis imagens. O rosto continuava calmo, mas Kafka estremeceu ao iniciar uma carta ao pai: "Diante de mim, o tempo autoflagela invisível corpo. Sonhar se faz tempo do imprevisível enquanto a razão escava teoremas não demonstrados". Aquela voz over aguda e inquisidora no sonho de Kafka me perguntou como eu podia saber disso tudo. Ora, todo sonho se faz adivinhação.

Íamos sempre, eu e meu pai, à Casa Mattos. Depois, à Leiteria Bol. Sorvete com calda de chocolate, uma festa! Tomamos o bonde. Dormindo no patamar do Teatro Municipal, Kafka permaneceria nos meus sonhos. E, naquele dia da visita ao Dr. Carlos, eu, em carne e osso, me transformei em meu pai. Mas não foi só isso. Em simultaneidade, ele era eu ─ ainda criança: Está demorando a chegar. Eu, adulto, junto a meu pai ─ menino. Segurei-lhe a mão. Descemos em Santa Teresa.

Tudo tão familiar e estranho, meu pai ou meu filho perguntou: Está perto? Atravessamos a Almirante Alexandrino. No alto da ladeira, o chalé parecia solto no ar. Ih! Telhado amarelo! Continuava chovendo. E esse guarda-chuva que não serve pra nada! No meio de uma poça d'água, tão logo vi minha imagem desfeita pelo vento, enorme cratera se abriu. Transbordando, um alagado cheio de animais.

─ Olha só, papai, é aquele bicho do mar!

─ Polvos-gigantes.

Sem que tivéssemos tempo de dar um passo, um animal saltou em direção a nós. Podia paralisar nossos corpos. Ou podia nos estrangular. Como seria morrer numa queda? Como seria morrer? E desaparecer? Acusado de quê? De pegar o bonde? De subir a ladeira? Foi ele. Foi ele. Foi ele. Na época da Primeira Guerra? Hoje?

O animal voltara ao fosso. Entre medo e vertigem, subimos a ladeira. Portão sem trinco, chegamos à varanda do chalé. Porta da sala aberta, sentado na poltrona Dr. Carlos dormia. De perto, reconheci em seu rosto a fisionomia de Kafka. Era Franz. Cabelos escuros. Rosto pálido. Testa inquieta. Igual à imagem da gravura que papai dizia ser de Jan Hladik .

─ Papai, ele está diferente? E os óculos do vovô.

Olhei outra vez. Então reconheci a fisionomia de meu avô no rosto de Kafka. Depois, o rosto de meu pai no semblante do escritor. E meu rosto no rosto de papai. Mas os corpos eram distintos. No quarto, algo parecido com um gramofone repetia texto de Kafka: "A partir de um certo ponto, não há retorno. Este é o ponto que é preciso alcançar."

Eu, adulto. Papai, menino. Meu avô. Dr. Carlos. Kafka. Naquela sala, todos compartilhávamos a mesma existência. Kafka sonhava águas que marejavam sons de carrilhão ou de sinos marcando quatro horas. E seus pensamentos perseguiam ponteiros perdidos no ponto de partida. A mesma voz inquisidora me perguntava outra vez: "Como você sabe disso?" Dei de ombros.

No quarto, aquele som que parecia vir de um gramofone anunciava: "À urdidura do remoto, recorro às metamorfoses". Ao fundo, no espelho da sala, imagens difusas. Dentro do cristal, alguém, que eu não podia ver, nos contemplava. Se nos reconhecia, não tenho como saber.

A chuva continuava forte. Permaneci na Casa Cavé. Desejei a festa:

─ Sorvete. Calda de chocolate. Bastante creme.

Enquanto a água começava a subir o meio-fio, ouvi alguém na mesa ao lado: "O tempo, sempre o tempo. Quando a gente tem pressa, ele se debate em clausura." E a imaginação jogando cartas com o tempo:

─ Acusado de quê?

─ Ninguém sabe.

Naquele época. Hoje. Em muitos lugares.

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Postado por Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
12/7/2015 às 20h31

 
Asas de besouro

Ao filtrar luzes da noite, a janela deixava entrever o besouro pousado na vidraça e sinais do seu corpo na parede. Em movimento, sombras reproduziam e ampliavam perfil humano ─ e asas abrindo-se. Quem sabe posso voar? Eu e o inseto. Um pouquinho de luz delineava e desfocava aquela imagem. O corpo do besouro e o meu reunidos numa forma sem contorno. Outros olhares poderiam ver nossa comunhão afetiva. Ele adivinhava minhas aflições enquanto meus olhos rastreavam-lhe o andar de caminhante da transparência. Ao recolhimento da imagem, alguém, além de mim, pressentia-lhe temores. Ele próprio olhava-se parado e trêmulo na umidade noturna do vidro.

Nunca me desfaço do lendário. Não vendo relógios nem metrônomos ─ objetos da grande ilusão de tempo medido. Expectativa e incerteza ─ eu e o besouro. Do outro lado, entre intervalos do tempo em vigília, o mundo cochilava. Examinei meu rosto. Minha testa. Minhas sobrancelhas. Minha boca. Entanto, não sou possessiva. Tive medo que o vidro se fosse pelos ares. Também, ventava tanto! Minha sombra acolhia o inseto vivo e frágil.

Em ângulo frontal, projetando-me na parede, aquela imagem falava de mim. Sabia meu nome. Sem as palavras não sou nada. A partir do verbo, moldo coisas vivas. Junto à minha fronte, o corpo do pequeno inseto transformara-se em elipse movente. ─ Quando amanhecer, ainda estaremos aqui?

Num lamento delicado, as asas do besouro ansiavam a paisagem aérea que, ao nível do chão e à luz do sol, ninguém via no pequeno jardim. Depois o animalzinho caminhou pelos meus cabelos enquanto a noite se ajoelhava para penitenciar-se das lacunas do dia. Existem metamorfoses? Ante o encantamento da dúvida, me esqueci do vento. Encolhi meu corpo ao tamanho do besouro. Minhas asas abrindo-se em direção às venezianas, deslizei pela vidraça e me aninhei no teto. Alguém me via:

─ Lá no canto, parece um besouro...

Ao aninhar-me na sombra projetada na parede, avistei ao longe meus olhos. Meu quarto. Meus segredos. Do alto da janela, avistei minha casa inteira. Nada me escapava ao olhar. Dentro das gavetas da cômoda, lençóis e fronhas. Depois, avistei o porão. Espalhados e esquecidos, aqueles objetos empoeirados. Pedaços de lixa, lâmpadas queimadas, lata de tinta, martelo sem cabo, cadeiras. Tanto tempo?

─ Jogo tudo no lixo, senhora?
─ Não, a poeira consola a dor do inútil.

Entanto, às metamorfoses da vida, documentos deviam dar descanso ao arquivo. Rasguei escrituras, certidões e até comprovantes do meu curriculum vitae. O lendário ilumina-me a imaginação tremeluzindo nas asas daquele besouro.

Ainda adormecidas as luzes da casa, meu escaravelho de cristal iluminava a vitrine da sala. Na garagem, o vidro do meu carro anunciava: Vende-se. É só. Nunca descarto o ilusório. Não jogo no lixo relógios nem bússolas.

Ao contrário de Hemingway, não tenho sapatinhos de bebê, sem uso, para vender.

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Postado por Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
5/7/2015 às 13h53

 
De volta ao brechó

O tempo. Outra vez o tempo. Me disseram que só de 27 em 27 anos acontecem grandes aproximações de Marte. No telescópio, parecia uma estrela fosca. Olhei na luneta. E descobri que Marte é uma romã. Naquela noite houve uma conferência sobre viagens interplanetárias. E o protoplasma congelava sei lá a que temperatura. E tinha ainda a questão da microgravidade.

Helena e o noivo estavam no auditório. Helena? Seu nome eu nunca soube. Eu queria ser igual a ela. Ruge e batom rosa escuro. Mantô xadrez. Blusa preta. Sapatos bem altos. Naquele dia, estava de vestido azul. Livre para sair. Voltar. Ou não voltar.

A liberdade me fascinava. Sempre me atraiu a vida cigana, repito. A vida errante. Escrever é parecido. Posso ir a qualquer lugar. Voltar. Não voltar. Pisar na calçada e nas nuvens ao mesmo tempo.

Naquele dia, observamos a Lua e Saturno. Eu me lembro de tudo. Dos anéis de Saturno jorravam luzes de intenso verde-esmeralda, que se transmutava como se fosse a pele de um camaleão. Revelando ousado hibridismo de pelos e escamas, acordava do sonho esse lagarto furta-cor. Saturno cavalgando hastes, ornada crista de avencas, atravessando séculos e espelhos."Efeito de refração" ─ me disseram.Efeito de refração coisa nenhuma. O que existe é o que vejo. Ou o que sinto. Ou invento. Sobre o tempo nada sei. Mas posso inventar. No brechó, os objetos existem. Mesmo assim invento. Vitrine. Camafeu. Xícara. Óculos. Fotografia. Gravura.

De volta ao brechó, bisbilhotei a prateleira de DVDs. Amarcord e a música de Nino Rota. No cabide ao lado, o vestido vermelho que a Gradisca usava no filme. Personagem não morre. Lá está ela agora num palácio aguardando o amor, enquanto Fellini visita o tio que ainda grita: "Voglio una donna!. Que volte pro convento aquela freira que o fez descer da árvore!

O tempo. Sempre o tempo. E era dia de uma grande aproximação de Marte. Era inverno. Noite clara. Barquinha branca de jasmins, Lua Crescente. Minha imaginação não repousa. Por isso invento estórias. Às vezes, poesias. E gosto de misturar enredos. José de Lemos era amigo de meu pai. Falávamos de astronomia. Me perdi do telescópio. Saturno, verde profundo. Pedra verde faiscante de um anel movendo-se ao meu olhar. Dizem que vão morar em Saturno os objetos que se perdem de nós. Ou é no fundo do mar? Depois do Quarto Crescente a luz floresce. A Lua Cheia se transforma em crisântemo japonês. E no meio aquele pássaro pousado, olhando São Jorge montado no cavalo. Saturno, estrela verde. "Que bobagem, é um planeta!" ─ me disseram. Marte, estrela vermelha. Vênus, Estrela D'Alva.

Hoje chegaram ao brechó várias peças. Cintos. Casacos. Blusas. Não são as roupas nem os colares na vitrine que me remetem à grande aproximação de Marte, mas as xícaras. De café ou de chá. Não sei a razão. Me encantavam canetas, lupas, espelhos, portas de bronze, o prédio da Associação de Astronomia. Lauro falava de Literatura. Lia Horácio. Marte, papoula vermelha. Romã bem madura. Impulso incandescente. Sexo pronto ao amor. Eu queria ser astronauta. E Lauro me deu o número do telefone. Era professor de Latim. E eu queria mesmo era escrever estórias ─ nada que tivesse início, meio e fim.

De volta ao brechó, novos antigos objetos na vitrine. Na xicrinha branca, cheiro gostoso de cafezinho. Na xícara maior, o gosto de chocolate e menta. O que me encantava na escrita era a liberdade. Ir. Voltar. Ou não voltar. O noivo de Estela era engenheiro. Eu o imaginava usando uma caneta Parker dourada. Sempre o tempo. Do passado tudo se mistura na minha cabeça quando tento registrar com palavras. Eu achava que Teresa era estudante de Jornalismo. Dona do próprio nariz. Segura de si. Eu nunca soube o nome dela. Há pouco, na hora do cafezinho, a xícara recordou-me a imagem de Saturno.

De volta ao brechó, uma Parker 51 azul. Lauro tinha uma igual. Coleciono xícaras. Aquela, branca e marinho, agora enfeita a cristaleira da minha sala. Sobre o arquivo, antiga xicrinha de café. No teclado do computador, o dia escrevendo meu diário de bordo. Ah! o tempo. Outra vez o tempo. Folha de papel crepom. Balão de plumas. Cigarra das sete vozes. Gato das muitas vidas. Segredos dos bichos. Aos sons de antiga árvore, o camaleão rachou-lhe o tronco. Do certeiro gesto, jorraram as águas primevas, a gerar o plantio nas lendas da terra.

Diante de mim, ao início do texto escrito, encontro um anel de Saturno à espera das minhas palavras. Saturno verdesmeralda jorrando luzes dentro da tela. E me sinto livre. Ir. Voltar. Ou não voltar. O tempo. Sempre o tempo. Dizem que o tempo é o que sabemos dele. Acho que o tempo se revela nas coisas que sentimos. Saturno, cor de bala de hortelã. Diante daquele verde profundo, sinto vontade de escrever estórias.

Então me chegam palavras que vou engendrando no papel quando não sei o que dizer. Saturno, folha verde. Folha de papel A4. Não aprendi a enredar princípio, meio e fim. De vez em quando coloco o pronome oblíquo no início da frase. Voglio la poesia.

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Postado por Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
28/6/2015 às 20h45

 
A entrega das compras

O fato me lembrou "O Almocreve" de Machado de Assis. Ao ser salvo de um acidente, o personagem do conto doaria uma moeda de ouro ao seu benfeitor. Passado o susto, pensou em dar uma moeda de prata. Ao fim do caminho, entregou-lhe só uma moeda de cobre. Assim é a cidade. Assim é o mundo.

A cidade me atropela. Acontece o mesmo com o interior. O tempo se reserva ao instante. Confunde-me a idade das coisas infinitas. O cotidiano também. Eu ia até mandar uma carta para a Folha pra denunciar exploração de menores. Às vezes quero salvar o mundo. E não sei por onde começar. Às vezes sei. Por isso de vez em quando viro a mesa.

Era dia santo. Me disse o gerente do supermercado que um carregador podia fazer a entrega mediante pagamento de uma taxa. Era José o nome do rapaz. Combinei o preço. Iria eu pra casa a pé e ele de triciclo levaria as sacolas de compras. Batata. Açúcar. Café. Plantas. No conjunto, um peso enorme. Na porta do supermercado, José esperava para seguir comigo. Mas cadê o triciclo? Adolescente magrinho. Sotaque nordestino. E forças além das suas forças pelas ruas esburacadas. Com o feriado foram-se para ele as comodidades da entrega anunciada pelo gerente. Nada de triciclo. Estava lá o carrinho velho. Enferrujado. Rodas emperradas.

Eu ia do lado dele. Calçamento desnivelado. Água empoçada. Entre solavancos e tropeços, José suspendia o carrinho para subir e descer o meio-fio. Vou pagar o dobro do combinado, pensei. E vou escrever pro Ratinho pra denunciar as péssimas condições de trabalho naquele supermercado. Suando a mais não poder, José cumpria sua tarefa. Tantas ruas, meu Deus! Marquês do Paraná. Cruz Lima. Fernando Osório. As ruas iam ficando para trás. Atravessamos a Paissandu, a Barão do Flamengo. Indiferentes ao cansaço do José, as esquinas iam passando por nós.

Chegando ao calçadão da Praia do Flamengo, o carrinho rangia sobre as pedras portuguesas. Pensando bem, José merecia o triplo do que fora combinado. E vou mandar carta também pro Silvio Santos, denunciando o supermercado. Chaves na mão, ao me virar pra avisar que minha rua era a próxima, cadê o carrinho? Olhei pra trás. Em vez do José, um homem vestido de cinza empurrava uma padiola com um caixão. É o José, me disse o padioleiro. Esfreguei os olhos. O inferno? O supermercado era uma dependência dele. Dentro do esquife balançando pela calçada, caminhava José, quem sabe pro céu? Eu, que morro de medo de ir a enterro, queria fugir pra qualquer lugar. Mas minhas pernas me prendiam àquela cena. Continuei seguindo o cortejo.

Chegando ao meu prédio, o padioleiro parou. Meu medo aumentou.Vou entrar correndo na portaria e me trancar em casa. Eu queria gritar. Não consegui. O portão do edifício já estava aberto. E o porteiro ajudou o rapaz a levar as compras até o elevador. José subiu com as bolsas. E me ocorreu uma charge do Henfil, em que a Graúna, vendo o Zeferino reclamar de uma padiola com carga pesada, dizia algo mais ou menos assim: "Padioleiro não tem que reclamar das deficiências do sistema. Seu papel é padiolar".

Pensando bem, José merecia o quádruplo do combinado. E eu ia fazer denúncia e não seria anônima. Eu ia pedir ao Faustão pra contar tudo. Ia ser em audiência global.

Ao receber as compras, paguei um pouco mais pelo serviço. Mas não chegou ao dobro.

No supermercado, outra entrega esperava o José.

Guardei as compras. E fui ao Lamas tomar um café.

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Postado por Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
21/6/2015 às 18h07

 
No brechó

Casacão xadrez. Sapato bem alto. Blusa preta. Na gola, um camafeu. Augusta. Elisa. Helena. Do nome, não me lembro. Estudava Jornalismo. Segura de si. Independente. Desafiava os brilhos e convenções dos Anos Dourados. Podia ir ao cinema com o namorado e voltar pra casa depois das dez. "Existencialista / (com toda razão !), / Só faz o que manda / O seu coração", dizia antiga marchinha.

Eu morria de inveja das pessoas livres. Adolescente, nas reportagens da Manchete eu me via fantasiada de cigana nos bailes de carnaval. Cigana pode ir a qualquer lugar, pensava eu. A vida, a música e a errância dos ciganos até hoje me fascinam.

Outro dia um fragmento da adolescência intrometeu-se no meu quarto: Na gaveta da cômoda, / rendas, lenços, perfumes. / E esse camafeu. // Sobre fundo rosado, / ofegante respirar de mulher / ao repouso da festa. E me encontrei no memorial daquela noite. Vestido branco. Cinto cor-de-rosa. O broche da minha madrinha. Ela me emprestou para usar no meu baile de formatura do Curso Normal. Perfil de tátil distância, a imagem gravada no camafeu ressurge em minha vida, tal se fosse retrato de pessoa muito próxima que jamais conheci. Retrato do tempo em carne viva.

Bem antes, brincadeira de amarelinha. Ali, o céu. Eu pulava para ultrapassar a casa assinalada. Não podia pisar na linha. Se pisasse, perdia o jogo. Mas ganhava o recomeço da brincadeira. Lá pelos idos de 1970, foi assim com Elliott Gould (Harry Bailey) no filme Getting straightÀ procura da verdade ─ título traduzido. Literalmente, o personagem virou a mesa. Gostei. Já fiz isso muitas vezes.

Voltando às perdas, um dia perdeu-se de mim aquele anelzinho de monograma. Foi no Jardim de Alá. Dei uma volta. Nada. Dei meia volta. Só areia. Depois, uma concha. Dei outra volta. E encontrei o anel. Não conheço ninguém que tenha perdido anel na areia e que tenha encontrado. Foi bom ter dado a volta.

Conheço gente que, em casa, perde caneta, lapiseira, chaves. Depois, por acaso, encontra. Conheço pessoas que perdem tudo na rua. Fica pra lá. Perdi meu lenço indiano. Esqueci no táxi o livro de Lógica. Na vida, muitos objetos se afastaram de mim. Por algumas perdas, dou Graças a Deus! Por outras, até choro. Por isso não tiro da estante o leãozinho de lalique que pertenceu a meu pai.

Ontem eu e Mauro nos encontramos num brechó: "Esta peça parece com você", me disse ele. Olhei em direção à vitrine. Emoldurado em metal. Base de marfim. Delicado perfil de mulher. Traços de frágil sonolência. Igual ao camafeu da minha madrinha.

Helena. Elisa. Augusta. Flora. Pele morena, batom e ruge rosa-pêssego. Eu queria ser igual àquela moça. Mas não sei quem era ela. Eneida. Maria Clara. E a memória daquela personagem que podia sair de noite e voltar depois das dez. Era o primeiro passo para ir mais longe.

Com patas de camelo a percorrer desertos ou asas de besouro a percorrer a transparência da vidraça, a liberdade sempre me atraiu. A vida, a música e a errância dos ciganos até hoje me fascinam.

Pura invenção minha o broche na gola do casaco daquela moça. O anel que, no Jardim de Alá, perdi e encontrei, um dia se afastou de mim para sempre. Sei e não sei onde está. Ficou na memória do esquecimento. Há quem diga que "está nos anéis de Saturno". Entanto, em meus guardados, falta uma peça que vivo procurando.

Reinicio a arrumação do quarto. Mudo tudo de lugar. Nas gavetas, esse cheiro de sândalo perfumando as roupas. Arrumar gavetas é parecido com virar a mesa. Naquele filme, À procura da verdade, foi assim com o personagem. Ele só não arrumou as gavetas. Mas virou a mesa. Gostei. Já fiz isso muitas vezes.



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Postado por Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
15/6/2015 às 13h36

 
O teatro e a vida: convergências

De Biologia nada entendo. No jardim, pressinto que no enxerto das rosas amarelas e vermelhas convergem invisíveis mãos replantando as cores. Convergências acompanham o existir. O afeto. O encontro. O olhar. Primeiro ato: a sedução do olhar é uma sedução consentida. Jacob era economista e herdara do pai uma loja de roupas femininas em Copacabana. Escolhi algumas blusas. Gostei da vitrine. Imaginei bastidores. Camarim. Desejei que a loja fosse um teatro. A calça jeans precisava apertar na cintura. "Tereza, dá um jeitinho pra cliente". E as mãos mágicas da costureira iam desenhando alinhavos de alfinete.

Enquanto a moça marcava o ajuste, o olhar de Jacob iluminava a fresta aberta entre a cortina e a parede. Tereza saiu. Peguei minha roupa no cabide. Do balcão, ele continuou me olhando. Cabelos negros e anelados. Quando dobro aquela esquina, me lembro daquele dia. O jeans fica pronto de tarde, posso entregar na sua casa?

Eu morava no prédio ao lado. Na saída e na volta do trabalho, eu passava pela loja. Um dia saímos pra almoçar na Tarantella. Saia preta e blusa estampada criam convergências no vestir e no despir. Ao abraço forte, pulseiras e colares arranham a pele. Falamos de política e de teatro. O Interrogatório, tínhamos assistido naquela semana. O regime continua, dizia o ator. Não me lembro quem dirigia. Mudarás o mundo? Meu Deus, quanto tempo! Nunca mais nos encontramos. E a peça esteve em cartaz em São Paulo, em 2010.

Em 2009 Mercedes Sosa partiu. Segundo ato: Mag lhe dedicou memorável texto. Escrevi então meu Volver a los diecisiete. Retroceder no tempo, às vezes quero. Ruas calmas. Madrugada na Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Livrarias abertas. Um dia vi o Juca de Oliveira na Entrelivros. Assim como no palco, Jacob e eu caminhando na Barra. Poucos prédios. Sabíamos que Peter Weiss estava certo. O regime continuava. De vários modos, continuava camuflado. E continua. O texto de Peter Weiss transcendeu guerras e lugares.

E hoje, outras convergências. El dia que me quieras: motivo de poesia. Sobre o amor, muitos se aventuraram. Poema. Romance. E o conto escrito pelo Laércio: O que foi o encontro? O que não foi? O que poderia ter sido.

Sobre o amor, todos temos algo em comum. Deslembranças. Que fosse de outro jeito! Ou Amarcord.

O mundo mudou e não mudou. Terceiro ato: ninguém imaginava o micro. Nem retrocessos. O regime continua. Muda de cara. Usa máscara. Falsifica o cenário. Como no teatro, no poema "O grande desastre aéreo de ontem", Jorge de Lima antecipou cenas de hoje: "Chove sangue sobre as nuvens de Deus. E há poetas míopes que pensam que é o arrebol". Diante das catástrofes, há os que não enxergam a morte. Por milagre, só os cegos enxergam. E desde antes, desde muito antes, Tirésias conhecia o presente, o passado e o futuro.

Pelas ruas há inquietude. Por milagre, só o coxo caminha rápido. E o mudo cantarola. Nos supermercados, a fome se embrenha nas mercadorias de luxo. Dentro dos esgotos, a violência escorre entre odores fétidos. Aos pés das nuvens, existe guerra. A TV engole a vida. Dá cores à morte. Ao telefone, calavam-se vozes. Recoberto de plástico, o fio de metal enforcava inocentes. Entanto, ninguém mais usa telefone fixo. Tudo agora cabe no bolso ou na bolsa. E tudo se devota ao esquecimento. Basta clicar.

Eu e Jacob fomos várias vezes ao Arena. O rei da vela. Prometeu acorrentado. Antígona. No teatro, criamos nosso Universo. No palco, a vida se torna desejo. A vida é sonho. Personagens são eternos. No cenário, o amor não dobra a esquina. Cortinas abertas, os gatos atravessam tetos incandescentes. E somos radicais. Na primeira fala, libertamos o prisioneiro. Não ganhamos a guerra. Somos mais radicais: na segunda cena, extinguimos a guerra.

E do amor? No primeiro ato, a marcação do encontro. No segundo ato, a marcação do respirar. Convergências do olhar e das mãos.

Em meus escritos, convergem temas. Teatro. Música. Cinema. Imagens. O amor? Último ato: acontecimentos daquela época. E a imagem de Jacob me olhando quando eu trocava de roupa. As feministas não usavam sutiã. No espelho e no amor, convergem umbigos e púbis.

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Postado por Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
7/6/2015 às 18h21

 
Janelas indiscretas

Com estas palavras iniciarei um romance: Quem viu a janela enxergou o morador. E, aos olhos, o vento desdobrando direções do fechar e abrir. Janelas vivem e respiram. Seus caixilhos recortam cenas, histórias e sentimentos.

Das janelas do meu apartamento vejo quase tudo no prédio dos fundos. Quem chega. Quem sai. Móveis. Crianças. Gato. Cachorro. Passarinho. As janelas descortinam a alma das pessoas ─ ouvi isso de uma senhora na fila do supermercado. Na semana seguinte, esperando a vez de pagar as compras, um senhor puxou conversa comigo: "Tem dias que eu penso em parar de fumar e fazer um regime pra emagrecer. Mas, tanto sacrifício! Então, me pergunto pra quê?". Homem de meia-idade. Devia pesar uns cento e quarenta quilos. Ao sair, seguiu em direção à minha rua. Poucos metros adiante de mim, a fumaça do seu cigarro buscava meu nariz. Diminuí o passo.

Com o temporal que caiu lá pelas duas da madrugada, me levantei pra fechar a janela da sala. Eu morava nesse apartamento havia um mês. No tal prédio dos fundos, janela em frente à minha, luzes acesas, reconheci o homem gordo que de manhã se perguntara "pra quê?". Sozinho, TV ligada, sentado no sofá, devorava um pacote de biscoitos. Então, passei a bisbilhotar a vida de outros moradores daquele edifício. A tal senhora tinha razão: "As janelas descortinam a alma das pessoas".

Olhei para um dos apartamentos do primeiro andar. Ninguém lá dentro. Vazio de móveis e ruídos. Luz acessa àquela hora. Primeiro dia. Segundo. Terceiro. A lâmpada continuava ligada. Será que alguém morreu no banheiro? Vão vender o imóvel? Alugar? No fim da semana apareceu um casal. Fizeram faxina. Trouxeram guarda-roupa e caixas de papelão. Cortininha de renda. Perto da janela, uma rede estampada. Pareciam felizes. Ao engendrar sua história, afirmo que são felizes. Há dois dias não aparecem por lá. Minha imaginação vai longe. Terrível o calor desta cidade. Foram à casa dos sogros em Itaipava.

Imagino histórias sobre tudo que vejo e sobre o que não vejo. No segundo andar, a mulher de camisola verde toma vinho enquanto aguarda o marido. Ou será namorado? Ele não virá essa noite. Está resfriado. Ou foi ao dentista ─ tratamento de canal. Talvez, venha amanhã. Posso mudar a vida dos personagens. Quanto a mim, não sei se vou espirrar daqui a um segundo. Não sei se vou comer biscoitos ou frutas no lanche. Ofício solitário o de escrever.

Hoje, sentado no sofá, o vizinho que pesa cerca de cento e quarenta quilos, e fuma, continua comendo e fumando. Mãos trêmulas, taquicardia, marcou médico para amanhã.

Não fumo. Sou magra. Quando acordo, vou à cozinha preparar o café. Se trabalho muito, devoro tudo. Pão. Iogurte. Geleia. Chocolates. Não preciso parar de fumar. Nem preciso emagrecer. Preciso da imaginação. Do relógio não tenho necessidade. E as histórias ressurgem ao fundo das janelas.Antigos e mudos, os ponteiros do relógio ignoram o apartamento pleno de solidão. Alheio ao outro, o sexo adormece perdido em delicada fúria. Ainda não sei se esse trecho cabe ao homem gordo ou à mulher de camisola verde. Ou caberá a outro personagem?

Registro várias histórias ao mesmo tempo. Preciso das janelas. De alumínio. De madeira. De pano. De plástico. Janelas d'água. E de areia. Sem grades, todas. Preciso das janelas abertas. Através delas, desejos e mitos atiram-se na calçada. Minhas janelas localizam personagens enquanto a transparência do vidro inventa acontecimentos. Da janela do meu quarto caem livros, hipopótamos, jaquetas, libélulas, caixas, etc. A calçada tornou-se pequena para o que me salta janela abaixo.

. Ao entrar no escritório, também a rua desce janela abaixo. Entre a paisagem e a violência, a cidade se dilata e se contrai. Pelos bueiros escoam pensamentos e fábulas. Nas praças escreve-se o memorial do nada. Solitário, íntimo, escrever tornou-se meu ofício. Não desejo parar. Entanto, diante da tela e do tema, ou ante o texto que me antecede, me pergunto: Pra quê? E à solidão do trabalho, uma estória me arde na garganta: Pra quem?

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Postado por Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
25/5/2015 às 18h13

 
Na escola, o caminho proibido

Me lembram aquela escola estes versos de Guilherme de Almeida: "Tudo muda, tudo passa / Neste mundo de ilusão; / Vai para o céu a fumaça, / Fica na terra o carvão". Do tudo que passa, eu queria que algo mudasse rápido. Que mudasse mesmo! Ou por magia ou pelas mãos de alguém. Na escola, eu gostava era de ver o mágico. A vida surgindo por encantamento. Da hora do recreio, eu também gostava.Chicotinho queimado, um dois três.

Sob animais de nuvem, de manhã cedinho quando chegava o inverno, a neblina encobrindo a rua. Portão de ferro, lanças pro ar. Muro alto. Pequeno jardim. Florezinhas? Quase nenhuma. Três degraus e o saguão do prédio. Escadaria. Salas de aula. Biblioteca. Auditório.

Naquele caminho estreito entre o muro alto e a parede lateral do prédio, ninguém podia passar: "De castigo depois da hora da saída!". Cara-de-buldogue e bruxa-sem-vassoura, duas inspetoras a postos. Bem que me lembro do nome delas! Por que não podíamos ir lá? Nem chegar perto? Eu imaginava o mundo inteiro naquele lugar. Jardins suspensos. Cachoeira. Gato de Botas. Fosso d'água. Vendedor de biscoito. Campo de futebol. Chicletes de bolas.

Quinta-feira era dia de Redação. Começava a aula. A professora colocava no cavalete o álbum de figuras. Gansos correndo pelo quintal. Do lado da casa, aquela mangueira muito mais alta que o telhado. Duas crianças brincando. Exercício: "Descrever a gravura, em cinco frases ligadas pelo sentido". Era uma vez uma lagarta azul que tecia o cachecol do mar. O cachecol era azulzinho feito o mar. E todo pintado de barquinhos cor de coral. Dentro dos barquinhos moravam cavalos-marinhos, conchinhas e estrelas do mar. E os filhotinhos de ganso que são amarelinhos.

Com aquela estória, a professora ficava zangada. "Você não descreveu o que viu, menina! Nada disso está na gravura". Está, sim. Tudo está na gravura, Dona Elvira. A lagarta azul mora dentro das folhas da goiabeira atrás da casa. O novelo de lã pro cachecol está guardado atrás do mar. E o mar fica no porão. Ele dorme numa cama de algodão doce..

Eu até que gostava da escola quando íamos à biblioteca. Mas que pena! Não dava pra ler o livro todo. Um dia eu ainda ia escrever livros. Então, eu contava o tempo pra chegar o dia do mágico. "Quem trouxe dinheiro pro ingresso?", cara-de-buldogue perguntava. "Duas filas. Vocês pro auditório. Os outros pro pátio".

"Atenção. Atenção!". De dento da cartola do Osório, três coelhinhos de verdade emergiam cheirando o ar. Da caixa de papelão, saíam pombinhas brancas batendo asas. Ao abrir o guarda-chuva preto, Osório tirava das varetas muitos lenços. Muitos lenços coloridos: "Você, menino, vem até aqui. Atenção. Muita atenção!". E das orelhas do aprendiz de magia escorriam cascatas de moedas. Será que não dava pra pagar a entrada das crianças que ficaram lá embaixo?

Entre fumaça e carvão, naquele tempo eu não sabia por que alguns alunos não tinham dinheiro para ver o mágico. Isso aquela escola não me ensinou ─ mas acabei aprendendo em outro lugar. Até hoje não sei muitas coisas. Não sei por que a maioria das pessoas não gosta de mágica. Será que elas têm medo que o mundo mude pra sempre?

Até hoje não sei onde vai dar aquele caminho entre o muro alto e a parede da escola.Mas todo dia vou lá pra rever a lagarta azul tecendo o cachecol do mar. Ou bordando na casca das palmeiras as escamas dos cavalos-marinhos que moram nos barquinhos.

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Postado por Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
15/5/2015 às 09h34

 
Tributo ao goleiro Barbosa



Certo domingo, quando assistia um curta-metragem na TV, me lembrei das choradeiras da Copa de 50. No filme, Antonio Fagundes vive um personagem que queria mudar o curso da história, impedindo o gol do Uruguai. E lá estavam na boca do povo as malquerenças dirigidas ao goleiro Barbosa: "Esse é o homem que fez o Brasil chorar". E aí, seus memórias-de-galinha, se esqueceram do montão de títulos que ele conquistou? Se esqueceram do Sul Americano de 1948? E de todos aqueles Campeonatos Cariocas?

Em se tratando de coisas do mundo, mesmo que meu time perca, eu gosto mesmo é da solidariedade. Daquela solidariedade que podia existir no esporte e na vida. Hábito diário, diante da dor. Diante da perda. Mas, junto a Fernando Pessoa, estou delirando: "Nunca conheci quem tivesse levado porrada". E todos são vencedores. Mas em se tratando de gente como a gente, sou Maracanã. Samba. Cordel. Festa Junina. Releio as crônicas do sempre inesquecível João Saldanha. E vivo procurando as do Tostão. E os ditos e escritos do saudoso Sócrates.

E sei que devemos tributo ao Barbosa. Ele estava lá no gol porque era dos bons. A bem dizer, era o melhor. Se não fosses o melhor, quem é que ia te escalar? Mas ele perdeu. Porque ninguém é o melhor pra sempre. Porque sentimos fome e sede. Porque adoecemos. Porque até o céu está sujeito a chuvas e trovoadas. E, daquela Copa, que até hoje é tão falada quanto as que ganhamos, o Barbosa deixou um legado inestimável: aquele friozinho na espinha, lembrando que somos humanos. E isso ninguém consegue aguentar. Mas é dádiva do Barbosa.

Eis que o Barbosa nos fez lembrar, e assinou em baixo, que podemos perder o jogo. O avião. A vida. E a grana. Taí o grande problema. Porque entre cifras e cifrões novesforazero, todo mundo se lembrou dos grandes contratos e da moeda que se move feito um polvo comendo o Universo. Então, Barbosa, sem querer, você mexeu nos brios do capital. Deu-lhe um chute no traseiro. Foi demais. Perder ninguém perdeu nada. Mas muita gente deixou de ganhar muito. Pois é, Barbosa, se os donos do poder não tivessem te crucificado, o povão, que na hora ficou triste, ia te abraçar. Até mesmo porque a turma da arquibancada está sempre perdendo.

Aí, Barbosa, quem não te perdoou foi o pessoal dos camarotes, os cartolas. Era 1950. E, após a vitória, posso imaginar a seleção uruguaia encomendando dezenas de automóveis conversíveis, lavadoras, liquidificadores, geladeiras e pinguins de porcelana. E outros tantos utensílios importados. Guerra é guerra. E a TV estava entrando na América Latina.

Nunca fui a estádio em dia de jogo. Assisto na tela. Mas adoro andar pela cidade. Da rua, faço meu mar. Do chão, minha barca. Sei todas as letras do Aldir Blanc. Meu sonho é fazer letra de samba. Se alguém aceitar a parceria, estou lá. Gosto também de Proust. De John Donne. Às vezes, vou ao Chá das Cinco. Mas, em matéria de poesia, igualmente tiro o chapéu pro mestre Azulão. E pro Cartola. "Queixo-me às rosas, mas que bobagem". Tão bonito quanto a lição do Barbosa.

Depois do curta-metragem que me levou à infância, me veio esse desabafo. Tenho várias camisetas indianas. Mas às vezes visto uma camisa listrada. E saio por aí. Mas o anel de Doutor não tiro não. Eu quero mesmo é dar o que falar. Adoro Dom Quixote. Bonito bonito é futebol-arte. Bonito bonito seria ver solidariedade no campo e na vida. Por isso não choro quando meu time perde. Por isso, meu tributo a Moacir Barbosa! Por isso, outra vez, me lembro do poeta: "Arre, estou farto de semideuses! / Onde é que há gente no mundo?".

Sua bênção, meu padrinho Barbosa!


(Foto do goleiro disponível no Google)

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Postado por Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
11/5/2015 às 11h06

 
Palavras de corpo e alma

Não cultivo orquídeas. Não me apavoram porcos chafurdando a terra enlameada. Aprecio paradoxos. Posso esquecer que é verão e sair voando com asas de cera. Para viver é preciso arriscar-se. Outra não serei. Senão aquela que às vezes ri do mundo.

De vez em quando sou ácida. Não conheço a fulana que passou. Mas sua blusa de estampa de oncinha é pra lá de cafona. Aquela senhora, no lançamento do livro do Rubem Fonseca, sei bem quem é. Fina dama furando fila.

Quando mordo não assopro. Dizem que o hábito faz o monge. Com livro é diferente. Capa não faz o escritor. E me veio aquela conhecida escritora, numa reunião literária, perguntando se eu já tinha ouvido falar em Thomas Mann.

Outra jamais serei. Minha boca não se esquece do que me dilacera o corpo. Sinto as palavras nas entranhas. Elas têm peso. Leveza. Volume. Transparência. Cor. De corpo e alma, encontro-me nas palavras. Solícito. Urgente. Delicado. Brega.

Em minha pele explodem sentidos. E existem várias e infinitas formas do brega. Ser o dono da verdade. Falar pelos cotovelos. Falar de si o tempo todo. Dizer que conhece gente importante e ficar declinando nome e sobrenome dos VIPs. Ostentar peças de griffe. Alguns bregas dizem até o preço.

Mudando e não mudando de assunto, dentro de mim, algumas palavras vivas nasceram no passado. Pato. Jardim. Lago. E lembrei do pequeno lago redondo no jardim da casa da Leda.

Coisa estranha a palavra. Sozinha não quer dizer quase nada. Temperada pelo afeto ou pelo desafeto mostra-se de corpo e alma. Ao coração, a palavra animiza-se. Vira flor. Ou pedra. Ou assombração. Vira gente ou bicho. Mas, no modo de ser, ressalta-se a diferença. Certos animais são dóceis. Lugar comum, bem o sei, mas digo: na selva os bichos só matam quando estão com fome.

Em meu coração, a palavra "pato" é branca. Tem asas. Sabe nadar. Sente saudade. E pode virar gente. Pensar. Imaginar. Gostar e não gostar das coisas ao redor. Na beira do lago, aquela palavra me via com carinho, quando eu lhe jogava pedacinhos de pão e farelinhos de biscoito de Maizena. Mudando e não mudando de assunto, detesto jaquetão de linho branco.

Sem querer, voltei à infância: aniversário da Maria Inácia. Entre os convidados, um delegado de polícia. Jaquetão de linho branco; óculos Ray-Ban; cabelos pra trás, grudados de Gumex. No meio da festa, veio ele com a história de um punguista preso na sua delegacia. Então, o mocinho de terno engomado, de quem me lembro nome, sobrenome, corpo, focinho e voz, gabou-se de um episódio de espancamento. Eu tinha oito anos. Confesso que simpatizei com o ladrão.

Naquele momento, a palavra "tortura" explodiu no ar. Repercutiu longe. Ganhou corpo. Inchou. Inchou. Pisou no bolo e nos convidados. Na lixeira da casa ergueu-se um pau de arara, que foi aumentando de tamanho, avançou pelos espaços da sala. Derrubou as paredes da casa. E na rua se transformou num monstro de couraça branca e óculos Ray-Ban.

Para viver é preciso aceitar diferenças. Entanto, não aguento certas diferenças. Tenho vontade de ver palavras pulsando de renovação.

Algumas pessoas adulam as palavras ou tentam mudar significados. Outras cospem nas palavras. Mas as palavras se vingam. Grudam na cara do cuspidor. Ele então esgana as palavras. Mas não adianta matá-las. Cortantes e ensanguentadas, elas ressurgem manchando o alvor das roupas de linho.

Mas as palavras também podem renascer dóceis. Podem surgir anunciadoras. Em meus escritos, a palavra "pato" continua nadando na superfície da palavra "lago". Come pedacinhos de pão e farelinhos de biscoito de Maizena. E transforma-se em outras palavras que darão sentido e nome ao dia seguinte.

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Postado por Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
15/4/2015 às 09h10

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