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Sábado,
19/9/2015
Blog da Mirian
Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
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Santo Antônio num bar da rua da Carioca
Ele não é só casamenteiro. Por isso volto aos milagres de Santo Antônio. No Rio, quando chove, tudo vira um desastre. Engarrafamento, bueiro entupido, poça d'água na calçada etc., e muito mais. A caminho do almoço, passando perto do Convento de Santo Antônio, me lembrei desse santo milagroso: ─ Meu Santo Antônio, onze e meia, será que o tempo não vai melhorar?
No antigo bar da rua da Carioca, me sentei de costas pra porta. Do alto, presa à parede do fundo, direcionou-se aos meus olhos curiosa travessa de louça. No centro, uma estatueta de Santo Antônio rodeado de dizeres: Prato da Casa, Prata da Casa e Santo de Casa fazem milagre. Era verdade. E no plural. Que milagres!
Entre as surpresas do dia, Santo Antônio, ele mesmo, vestido de garçom me entregou o cardápio:
─ E pra beber?
─ Guaraná sem gelo.
A seguir, outra grande bênção! Na cozinha, chapéu de Mestre Cuca, Santo Antônio, em pessoa, preparou a comida. Depois, trouxe à mesa maionese de batatas com mostarda e rosbife no ponto certo.
Ao sair, a chuva cessara. Táxi à minha espera. Identificação do motorista: Antônio dos Anjos. E aconteceram outros milagres. Do Centro ao Flamengo, nenhuma freada brusca. Nem avanço de sinal. Nem engarrafamento. Nem bueiro entupido.
Santo de casa faz milagre mesmo. Sem esquecer que, naquele bar da rua da Carioca, provei a melhor maionese do Rio de Janeiro.
A Santo Antônio, que é vizinho, pois mora no Largo da Carioca e frequenta aquele bar da rua da Carioca, essa rua pede um grande milagre: que a proteja da especulação imobiliária e salve ─ para sempre ─ o casario antigo que habita suas calçadas históricas.
No Rio acontecem coisas que só os santos podem dar jeito. Mas o povo bem que faz a sua parte.
(Imagens localizadas no Google, sem indicação do nome do fotógrafo)
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19/9/2015 às 15h24
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Lamartine Babo: Isto é lá com Santo Antônio!
Santo Antônio entra na dança. Nenhuma heresia! No Rio de Janeiro e, a bem dizer, no Brasil, nas festas do povo, motivos religiosos carnavalizam-se pela fusão de simbologias diversas. Nas festas do povo mesclam-se, quase sempre, o sagrado e o profano. E, assim, a animada marchinha de Lamartine Babo, composta em 1934, ressalta de modo brincalhão, a tarefa de Santo Antônio:
"Eu pedi numa oração
Ao querido São João
Que me desse um matrimônio
São João disse que não!
São João disse que não!
Isso é lá com Santo Antônio! (...)."
Um dos santos mais populares no Rio de Janeiro, a Santo Antônio orações não lhe faltam. Em todo 13 de junho, no pátio do convento ─ no Largo da Carioca ─, verdadeira festa de largo: barracas; bandeirinhas; música. Inspirado no fervor religioso, Lamartine Babo confirma o trabalho do santo. Casamento? São João até se zanga com o pedido. Ele é o santo dos batizados. Matrimônio? "Isso é lá com Santo Antônio!":
"(...)
Implorei a São João
Desse ao menos um cartão
Que eu levava a Santo Antônio
São João ficou zangado
São João só dá cartão
Com direito a batizado (...)
Matrimônio! Matrimônio!
Isso é lá com Santo Antônio!"
Pra cada solicitação tem um determinado santo. Pra casamento, também não adianta fazer pedido a São Pedro. Ele protege a casa e, de quebra, faz outros milagres. São Pedro abençoa chaves e remédios. Mas casamento ─ "Isso é lá com Santo Antônio!" ─ confirma a marchinha:
"A São Pedro fui correndo
Nos portões do paraíso,
Disse o velho num sorriso:
Minha gente, eu sou chaveiro!
Nunca fui casamenteiro! (...)
Matrimônio! Matrimônio!
Isso é lá com Santo Antônio!".
Entanto, no dia de Santo Antônio, chovem as mais diversas súplicas. Saúde. Viagem. Mudança. Emprego. E não faltam orações: Rogai por nós, Santo Antônio! Alguns vão no pedido exato: casamento. Bem que ele ajuda! E é preciso agradecer! Mas, com o passar do tempo, os agradecimentos surpreendem. Será que mudaram os pedidos? Na festa deste ano, com ares de alegria, a moça de vestido estampado comprou uma medalha numa barraquinha. A repórter da TV foi até lá:
─ Você veio agradecer pelo namorado?
─ Nada disso. Vim agradecer porque me separei de uma peste de marido!
Com a entrevistada que se livrou da "peste de marido", aprendemos: Santo Antônio também dá jeito nos casamentos que não deram certo. Aí é preciso agradecer em dobro!!!!!!!!!!
A marchinha de Lamartine Babo tornou-se um clássico nos festejos de junho. Na composição, os santos e o ritmo ocupam o mesmo lugar ─ o lugar da festa. Essa marchinha reúne diversidades que dialogam na linguagem, na religiosidade e nos costumes do povo, numa inesquecível e bem-humorada ode a Santo Antônio.
"Matrimônio! Matrimônio!
Isso é lá com Santo Antônio!"
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13/9/2015 às 10h10
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Noël Rosa e a fábrica de tecidos
Voltei a Vila Isabel para visitar a fábrica de tecidos cantada por Noël Rosa. O prédio? Agora, centro de comércio. À entrada me esperava Seo Armindo, que sabe tudo sobre o bairro: "Ora, pois, cá estamos na fábrica dos Três apitos. Chamava-se Confiança. Ficava na Aldeia Campista ─ sítio hoje integrado à Vila".
Com o crescimento da cidade, a mulher na Vila de Noël inseria-se na força de trabalho. E o poeta encontrou motivos para sua canção falando à ex-namorada. Quando entramos, Seo Armindo então cantarolou:
"Quando o apito da fábrica de tecidos
Vem ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de você (...)."
Rememorei histórias vividas e criadas por Noël. "Queixumes de amor" ─ como diz Seo Armindo. E cenas de trabalho ─ e horários ─ interferindo nos sentimentos e controlando a espontaneidade das ações humanas. Novamente, o apito da fábrica:
"Você que atende ao apito
De uma chaminé de barro
Porque não atende ao grito tão aflito
Da buzina do meu carro?"
Com olhar aguçado, Noël, em 1933, registrou cenário decorrente da Revolução Industrial, que Chaplin, em 1936, satirizaria no filme Tempos Modernos, ao enfocar a desumanização do homem pela máquina. Sempre brincalhão, observou Seo Armindo: "Ora, pois, que acabamos de passar pelo gerente impertinente!". E, como no filme, não escapara a Noël a figura do gerente autoritário que fiscalizava o trabalho.
"Nos meus olhos você lê
Que eu sofro cruelmente
Com ciúmes do gerente impertinente
Que dá ordens a você (...)".
Dizem os estudiosos que a ex-namorada de Noël trabalhava numa fábrica de botões. Sejam tecidos, botões ou tamancos, Noël captou perfil da produção contrapondo-se ao afeto. E a poesia realiza sua verdade. Poesia revisitada, aonde vais? Minhas mãos te perseguem. À escuta da canção de Noël, meus olhos enxergam o amor, meio tonto, entre teares e fios de algodão:
"Mas você não sabe
Que enquanto você faz pano
Faço junto do piano
Estes versos pra você."
Transformada a fábrica em centro comercial, o apito tocava como atração turística. Pude ouvi-lo na década de 1990, numa das minhas idas àquele lugar. No ano passado, em 2014, não mais o apito. Mas, em meus ouvidos, a canção de Noël. E meu pensamento indo longe, vendo braços em movimentos tensos lutando contra o cansaço. E o dia muito frio. Do outro lado da rua, era de carne e osso a moça que passava sem agasalho, à imagem da jovem da canção:
"Você no inverno
Sem meias vai pro trabalho (...)".
Dentro da antiga fábrica, imagens a emergir das cinzas! Nos arredores do quarteirão, meus ouvidos atentos à nostalgia ouvem a buzina do carro de Noël querendo abafar o som que lhe feria os ouvidos.
A poesia não escreve panfletos. De modo sutil, vai longe. E tem coragem de ir aonde não é chamada.
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6/9/2015 às 10h14
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Monumento a Noël Rosa
Ainda em 2014, no primeiro sábado de novembro, voltei a Vila Isabel para conhecer o Monumento a Noël Rosa. Passei pelo Maracanã e cheguei ao destino. Pequena praça, ambiência de bar. Noël sentado. E uma cadeira vazia. De pé, o garçom ─ querendo limpar a mesa ─ me lembrou o humor de Noël retrucando naquela Conversa de botequim:
"Se você ficar limpando a mesa
Não me levanto nem pago a despesa (...)."
Em Vila Isabel, o encantamento norteia os passos do visitante. E ora repito: em Vila Isabel a fábula desenha o dia a dia. E a tal conversa de Noël começara assim:
"Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça
Um guardanapo e um copo d'água bem gelada (...)".
Na Vila de Noël, a poesia rege o enleio do visitante. A poesia conduz a memória a lugares e tempos de antes e atualiza o passado. Antigos saraus. Poetas. Amorável encantamento, de onde vens? Eu, visitante desse lugar, te recebo em festa, lembrando o Feitiço da Vila versejado por Noël, com melodia de Vadico:
Quem nasce lá na Vila,
Nem sequer vacila
Ao abraçar o samba (...).
De há muito o samba abraçara a Vila. Egresso do conjunto Flor do Tempo, surgiu o Bando de Tangarás:. Dele faziam parte Noël, Braguinha, Almirante, Alvinho e Henrique Brito. Primeiro eles trouxeram ao bairro o Brasil regionalista. Depois, acolheram valsas e marchas. E logo caíram no samba, como está dito no Dicionário do Ricardo Cravo Albin. Por isso, dá pra sentir, a Vila não é território neutro. Sabe o que quer. Sabe sambar. Por isso Martinho da Vila sonhou bonito:
"Esta noite eu sonhei com uma roda de samba no céu
Com Pixinguinha, Donga, Almirante, Sinhô, Ismael...
Noel Rosa versava (...)".
No centro dessa roda, dá pra imaginar ─ não podia ser outro ─ Noël respondendo a Wilson Baptista:
"Fazer poema lá na Vila é um brinquedo (...)".
Da Vila de hoje, muito mais poderia ser dito. O coração conduz o afeto. Escola de Samba. Compositores. Praças. Comes e bebes. O estômago carrega o corpo. Vamos à Rua dos Artistas? Que tal ir ao Siri? Vamos ao Boulevard? Um chopinho no Petisco?
Andei pelas ruas. De volta, ao passar pelo Monumento a Noël Rosa, dei uma paradinha pra mais uma foto. Em cena, Noël e o garçom. E alguém ocupava a cadeira ao lado:
─ "Um cafezinho?"
Ah! Ia me esquecendo de dizer. Acompanhava-me, então, Seo Armindo, o gentil senhorzinho português, que conheci numa padaria, quando eu buscava informações sobre antigas casas da Vila, na minha primeira ida ao bairro. Ele entrou no meu blog na Homenagem a Orestes Barbosa.
Sempre brincalhão, Seo Armindo lembrou:
─ "Na semana próxima vamos à antiga fábrica de tecidos. É só ligar pro meu escritório: 34 43 33".
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30/8/2015 às 09h38
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Cartola e a cor das rosas que não falam
Para cantar o ilusório, o coração do poeta Cartola bateu forte. A seguir, confirmou-se a melancolia do amor não correspondido. Ante a esperança dissipando-se, ele ritmou lamentoso solilóquio ao tempo de um fim de verão:
"Bate outra vez
Com esperanças o meu coração
Pois já vai terminando o verão
Enfim
Volto ao jardim
Com a certeza que devo chorar
Pois bem sei que não queres voltar
Para mim".
Nesse jardim do Cartola, cabe o mundo inteiro. E, sorrindo ou chorando ─ ou fazendo-nos corar ─, no mundo afloram não ditos e, em mangas de camisa, entram eles no nosso corpo, explodindo de erotismo ou saudade, antes do avanço dos lábios ou depois do beijo. Ao fecho da canção, à desesperança esperançosa dirigida à amada, a súplica do poeta desejoso de sonhos realizados:
"Devias vir
Para ver os meus olhos tristonhos
E, quem sabe, sonhavas meus sonhos
Por fim".
Porém, antes de falar à amada, amorosos sentimentos rastrearam os cálices das rosas no jardim, quando nas pétalas sentimos umidade. Quando nas pétalas ouvimos a canção a pulsar. Na poesia, o jardim se fez acolhimento das mágoas do coração queixando-se às rosas. Das queixas do poeta, a resposta se perfumou em etéreo mar de flores ─ volúvel bálsamo ─ a envolver chamados do corpo:
"Queixo-me às rosas
Mas que bobagem
As rosas não falam
Simplesmente as rosas exalam
O perfume que roubam de ti, ai".
Decifrando silêncios do jardim, eu quis colorir essas rosas, porque o amor inventa brilhos para fantasiar encontros. A poesia nos leva a colorir o Universo e os objetos. Tingimos de afeto grãos de arroz, a colcha da cama, a asa da abelha. Ouvindo a canção do Cartola, me perguntei: Que tonalidade lhe perfumaram as rosas?
Então, ao desejar isto que o poeta desejou ─ decifrar a linguagem das flores ─, a semente ungiu-se no sangue de antiga placenta. Ao desejar isto que o poeta desejou ─ o encontro ─, volto ao meu jardim de silêncio, para escutar meu coração afeito às mágoas do poeta.
Vivente, o amor se revela carmim. Faz enrubescer o corpo. À colheita, a romã se veste de pele púrpura.
Vermelhas, pressinto. Não podem ter outra cor as rosas dos versos do Cartola.
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24/8/2015 às 09h30
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Orestes Barbosa e a dúvida de Manuel Bandeira
Orestes Barbosa caminhava pelo Rio de Janeiro. Arranha-céus. Morros. Lua acesa. Estrelas no chão. Samba, valsa e fox pelos bares musicais do Centro. Nos idos de 1956, sobre Orestes diria Manuel Bandeira: "Se se fizesse aqui um concurso para apurar qual o verso mais bonito de nossa língua, talvez eu votasse naquele de Orestes: Tu pisavas os astros distraída". Talvez eu votasse? Talvez?
Entanto, posso imaginar a indecisão do poeta. Como escolher o mais belo verso de Orestes em meio a uma obra poética irretocável? Difícil, não é? No meu tempo de estudante, assisti a conferências de Manuel Bandeira. E sua dúvida aumentou quando, num pequeno texto, lhe lembrei outros belos versos de Orestes: "Lua ─ freira do céu, irmã das dores ─ (...)"; "Um vestido ligeiro que passou"; "Na serpente de seda dos teus braços (...)"; "Dorme, fecha este olhar entardescente, (...)"; "E, à noite, és Lua em flor despetalada, (...)."
E a mais bela estrofe de Orestes? Mais difícil ainda! Lembro como se fosse hoje, Bandeira ficou pensativo ante o terceto:
"Porque a canção mais aflita
É a forma que há mais bonita
Da gente poder chorar...".
Das sextilhas registradas por mim, ora transcrevo duas. A primeira, da canção Dona da minha vontade:
"Coração ─ ninho de penas ─,
No arminho das almas serenas,
Tem perfume e tem calor...
Pobre de mim, ave tonta...
A Lua, triste, desponta,
E eu vou ficar sem amor (...)."
A segunda, da canção Torturante ironia:
"Ó coração, chama oculta,
Que a iluminar, mais avulta,
No altar da minha paixão,
A santa dos meus amores ─
Nossa Senhora das Dores
Da minha desilusão!"
A indecisão permanecia. Bandeira continuava pensativo quanto ao mais belo verso. Tentando amenizar sua dúvida, lembrei-lhe aquela charge do Nássara: "Noël, eu te dou esse verso Tu pisavas os astros distraída em troca do é brasileiro já passou de português. Tá?". E então me ocorreu o famoso soneto de Camões:
"Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer. (...)".
Naquele momento me lancei a um paralelo entre o amor na poesia de Orestes e na de Camões nos meandros da ansiedade amorosa. E, inspirada em Nássara, transcrevo imaginária fala que eu atribuiria a Orestes: Olá, Camões, te dou esta estrofe:
"Amor é ânsia incontida,
É sonho, é sol, é luar,
É o claro-escuro da vida.
É borboleta a voar.
É beija-flor que não sabe
Quantas traições tem a flor,
É beija-flor da saudade,
Pensa que beija o amor! (...)".
Ante o inefável capturado pela voz de Orestes na Valsa do amor, posso afirmar que, jubiloso, Camões aceitaria o presente. E posso imaginar a alegria de Bandeira se recebesse um bilhetinho de Orestes: "Agradecido pelo "talvez" à escolha do mais belo verso da nossa língua, venho te ofertar este mimo:E, hoje, quando me vejo, no espelho, / Contemplo a minha face e não sou eu...".
Certamente, Manuel Bandeira se orgulharia de ter agregado esses dois versos à sua obra poética.
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16/8/2015 às 09h47
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Homenagem a Orestes Barbosa
"Tu pisavas os astros, distraída". Não há quem não conheça este verso de Orestes Barbosa. Orestes nasceu na Aldeia Campista ─ região que hoje faz parte de Vila Isabel. Quem nasceu na Aldeia Campista, renasceu na Vila. É cidadão da Vila. E eu queria saber da casa onde nasceu Orestes.
Em Vila Isabel, a fábula desenha o dia a dia. Da Vila, muito mais pode ser dito. E, de Orestes Barbosa, muito mais deveria ser dito. Em Vila Isabel, todo poeta fala de amor. Ao visitar o bairro, relembrei o tema do amor saudoso nos versos de Orestes:
"E, hoje, quando do Sol a claridade
Forra meu barracão, sinto saudade
Da mulher ─ pomba-rola que voou..."
Entre poesia, fato e curiosidade, eu queria saber do berço de Orestes na Pereira Nunes. Fui à Prefeitura. Voltei ao bairro. Andei pelas ruas. Perguntei. Bem recebida por gente que nada sabia, outros não me quiseram ver nem por telefone. A casa? Um chalé, confirmaria Carlos Didier.
Por fim, cheguei a certo prédio construído no lugar do antigo 47 ─ da Rua Pereira Nunes ─, onde nasceu Orestes Barbosa. "A verdade, meu amor, mora num poço (...)", já dizia Orestes numa parceria com Noël. Entre arquivos e documentos, sonhar é preciso. E, num cafezinho, gentil senhor: ─ "Ora, pois, que não morais na Vila?"
Das andanças ao imaginário, dei crédito à poesia. E, assim, recordações se tornaram imagens na voz que me falava das pipas e papagaios, do futebol e das casas d'antanho. Em 1939, com oito anos, chegara ao bairro Seo Armindo, que, num cafezinho, me emprestou oitenta décadas de memória:
"De Orestes Barbosa? Conheço bem o Chão de Estrelas, musicado pelo Sylvio Caldas. Chalés? Muitos havia na região. Ora, pá, claro que me lembro do antigo 47 da Pereira Nunes. Era marrom. Depois, pintaram de verde. No telhado, branquinhos os pináculos." E em tom lusitano: "Minha vida era um palco iluminado."
Em frente ao edifício da década de 1960, saltei aos idos de 1993 ─ e eu defronte ao chalé onde nasceu Orestes. No alpendre, Dona Maria Angélica, numa cadeira de balanço. No colo, o menino olhando o tempo a vazar a renda de madeira branca que enfeitava os beirais. Do telhado, pináculos branquinhos saltavam em direção às nuvens.
Despertando da imaginação, cheguei à Avenida 28 de Setembro. Entre partituras transcritas nas calçadas por ocasião do Quarto Centenário do Rio, cintilavam versos de Chão de estrelas:
"A porta do barraco era sem trinco,
Mas a Lua, furando o nosso zinco,
Salpicava de estrelas nosso chão..."
Naquele chão, uma estrelinha brincando de esconde-esconde. Poesia, poesia, aonde vais? Abre agora, chave-mestra, abre a gaveta do arquivo. Lá estão meus versos em memória de Orestes Barbosa:
Ave noturna ao sono da fadiga,
distraída, voei tão longeperto,
indo pousar no amorável deserto
aos pés da noite que sempre me abriga.
Do amor, desejo que me bendiga!
Eu, mulher noturna e amante do incerto,
em meu ninho na lua e a céu aberto,
da luz e da paixão me fiz cantiga.
Se de mim te restou esta saudade,
de corpo inteiro ainda nos invade
uma alegria que nos faz chorar.
Cabelos e roupas em desalinho,
nas estrelas e em teus braços aninho
pluma e carícia do meu caminhar.
Distraída, pisando notas musicais, acenei pro Seo Armindo. Na bolsa, o endereço da outra casa de Orestes Barbosa, em Paquetá, que visitei no dia seguinte.
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9/8/2015 às 08h58
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O samba de Donga na Festa da Penha
Ruas e bairros do Rio me contam estórias. Às comemorações de eterna festa de largo ─ festas de pátio de igreja ─, camelôs a mais não poder no Largo da Carioca. Bebidas. Comidas. Pulseiras. Colares. Roupas. Música. Do alto, no Convento, Santo Antônio vê tudo. Deve ter visto o homem de camisa marrom fazendo sua fezinha ─ R$ 10,00 no porco. Dobrei a esquina. Avestruz? Cobra? Leão? E logo me veio o samba de Donga: "Que lá na Carioca tem uma roleta para se jogar".
Dei uma lida em vários historiadores e cronistas que sabem tudo do Rio de Janeiro. "Pelo telefone" ─ considerado por quase todos o primeiro samba. Dizem que Donga cantou numa festa da Igreja da Penha: "O chefe da folia pelo telefone"... Sinhô também estava lá. Na primeira metade do século XX, muitos compositores e cantores se divertiam e se apresentavam na Festa da Penha ─ grande festejo que só perdia pro carnaval em número de participantes e animação. E até padre comemorava com o povo. Que Deus o tenha, Padre Ricardo Silva!
No século XVII ─ pequena ermida de Nossa Senhora do Rosário ─, a Igrejinha atual ganhou forma no começo do século passado. Dizem que aquela região abrigou um quilombo. Nos idos do século XVIII, os festejos eram à moda portuguesa. Depois, foram conduzidos pela tradição africana e o samba chegou à Festa da Penha. Quitutes e bebidas rolando. Da pinga, um pouquinho pro santo. Mas proibiram o álcool e as rodas de samba. Nem no festejo sagrado davam descanso ao samba?. Era demais! Pandeiro, violão, cavaquinho ─ tudo pro xadrez.
Sobre o samba de Donga e Mauro de Almeida, entre depoimentos de ambos, a autoria remete a vários relatos e questões levantadas pelos pesquisadores. Sobre a letra, entre as muitas transformações feitas por foliões e intérpretes, são conhecidas duas versões marcantes da primeira estrofe: "O chefe da folia / Pelo telefone manda lhe avisar / Que com alegria / Não se questione para se brincar." Mas o povo é criativo. Irreverente. Tem olho aguçado. E ficou mais conhecida a versão do humor carioca: "O Chefe da Polícia / Pelo telefone manda me avisar / Que lá na Carioca tem uma roleta para se jogar". E o samba de Donga está vivo.
Bastante mudada, a Festa da Penha continua existindo. O samba se prosterna aos pés de Nossa Senhora e do Rio de Janeiro. A Santa e a cidade reverenciam o samba. No ano passado fui à Penha. E esse celular que apaga as fotos...
Nossa Senhora da Penha espia a gente, vendo do alto o que corre e estanca no tempo. O que passa e não passa. Passatempo. Passaraio. E o samba de Donga continua novo.
Lá em baixo, ergueram casas, prédios, shoppings. Um dia chegou o Parque Shangai. E o brinquedo a esmerar-se em enredos felizes. Passarinho voando. Estrela cadente.
Seguindo a montanha-russa, cabelos e pensamentos sobem e descem, pra sentir perto o céu e a rua. O Parque Shangai diverte criança e gente grande. E o samba de Donga continua tocando.
Girando girando girando ao redor de si, a roda-gigante acompanha o carrossel.
Crinas ao vento. Ploc ploc ploc. Doze cavalinhos trotando.
Pelagem branca. Ploc ploc ploc. Valsa das Flores. Doze cavalinhos rodando.
E o samba de Donga dançando no ar.
Mas, entre o carrossel e o chão, nem tudo são voltas perfeitas. Dentro do trem fantasma, tanto medo se assombrando. Cidade afora, terror descarrilando.
Perto, bem perto, o morro se incendeia pra ver se acorda a cidade anestesiada. Perto, bem perto, nas enfermarias, acotovelam-se o ferido e o asmático. Perto, bem perto. E, do chefe da folia, nem é bom falar.
Plo ploc ploc. A rocha dos séculos se apercebe delicado coração do tempo vivo. E o tempo vivo espera muito de si mesmo.
De noite, balãozinho pousado na pedra, a igrejinha abençoa bairros, carnaval e capoeira.
Na Festa da Penha, a memória do samba de Donga. Quem não conhece o samba de Donga?
Ó, outubro! Outubro da Festa da Penha. Antigos outubros, bem antes do Parque Shangai. E o samba de Donga também ritmando o amor: "Olha a rolinha, Sinhô, Sinhô / Se embaraçou, Sinhô, Sinhô / Caiu no laço, Sinhô, Sinhô / Do nosso amor, Sinhô, Sinhô" ...
Mauro de Almeida fez a letra? Só ordenou os versos? Donga pegou passarinho no ar? Não é preciso saber ao certo. Tocando tocando, "Pelo Telefone" fala de amor, de samba, de intriga. E narra maliciosa crônica do Rio. Um passeio pela cidade confirma: "Que lá na Carioca tem uma roleta para se jogar". E, do chefe da folia, nem é bom falar.
E o Rio atravessa o largo e a rua da Carioca. Sonhou com quê?
Sonhou com jóquei, vai dar cavalo.
Todo dia uma multidão atravessa o largo e a rua da Carioca. Do alto, no Convento, Santo Antônio vê tudo:
"Ai, ai, ai, / Deixa as mágoas para trás, ó rapaz."
Ah! Outubro. E o dia se espicha na Festa da Penha. Longo e contrito, o dia visita barraquinhas. Primeiro, quer saber sua sorte. E vai logo dizendo: "Eu não sou cachorro não".
E o dia sobe os 365 os degraus da Igreja da Penha. Depois, come, bebe, dança, pra se manter inteiro. E pra rodar: "Porque este samba, Sinhô, Sinhô / De arrepiar, Sinhô, Sinhô / Põe perna bamba, Sinhô, Sinhô / Mas faz rodar, Sinhô, Sinhô".
E a letra do samba fotografa a cidade e muito além.
Jabá. Propina. Peixada (outro dia alguém usou esse termo antigo).
Na letra do samba, palavra puxa palavra.
E o samba de Donga continua tocando.
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2/8/2015 às 18h54
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João Nogueira e o espelho da poesia
Fortes chuvas de um dia quente. Acho que foi em março de 2000. Do trabalho na Ilha do Fundão tive carona até o Santos Dumont. Carregador, tia? Tem bagagem? Entre o carro e o saguão do aeroporto ─ livros, pasta, bolsa, embrulho. Cadê os lenços de papel? Comecei a enxugar os braços. Já sentada em frente ao Café, sequei os livros. E os óculos que sempre ficam molhados! Tirei da bolsa meu fiel espelhinho pra retocar o cabelo. Ao incliná-lo para a direita, não acreditei ─ João Nogueira. Ele mesmo. Sentado ao meu lado no banco. De perfil, no meu espelho. Pediria autógrafo?
Chapéu. Pasta. Parecia aguardar alguém. Quem sabe esperava o momento de se dirigir à sala de embarque? Acho que ia para São Paulo. Talvez, sem saber, aguardasse viagem bem maior que faria em junho do mesmo ano. Ao reconhecê-lo, pensei na magia daquele "Espelho" de João Nogueira e Paulo César Pinheiro. E me lembrei da voz do cantor. Sua vida e seus medos acalentados naquela canção. Entre tantas agruras ─ destino marcado nas surpresas da poesia. Entre perdas e danos ─ coisas da vida na musicalidade dos versos. Tempos de antes. Meninice. Dias felizes. Adolescência. Aspirações. Companheirismo do pai. Solitude. Tornar-se adulto. Revelações do amor. E tornar-se poeta.
Sei que numa verdadeira parceria há realmente entrosamento. O compositor às vezes colabora numa estrofe ou num verso. Mas aqui o que importa é o espelho ─ o encantamento do objeto surpreendido em tom poético. E ora me entrego a uma interpretação. Espelho, espelho meu, que sabeis de mim e do outro? Quem ouve uma canção se faz intérprete. Esse espelho? Será a vida? O tempo? Por certo, nem a vida nem o tempo. Mas algo que se enraíza na imaginação do poeta. E do compositor. Na voz do cantor essas ambiguidades e segredos falam de nós e do outro. Meu espelho não pertence só a mim.
Nos entremeios da poesia ─ aos sentidos atentos ─ os objetos vivem. À pele receptiva, as coisas nos tocam. Sentem. Pensam. Se a admiram. Sofrem. Pulsam. Choram. Amam. Ganham cores. Sabores. Cheiros. E muito mais. Trabalho misterioso esse, o do poeta. E o do compositor. E o do cantor. No universo ritmado pela canção é também assim. A canção detém o tempo do mundo e desengrena o tempo do relógio. A canção vive seu próprio momento.
Naquele instante João Nogueira entrou no meu espelhinho, lembram? Eu estava retocando o cabelo. A partir daí percebi que meu pequeno espelho passou a me olhar de modo diferente. Espelhos compartilham imagens. Decifram olhares. Identificam medos, apreensões, afetos, intenções. Na superfície dos espelhos moram águas endurecidas. Quando através do olhar entramos nessas águas, elas voltam ao estado líquido. Então o fôlego do dia se entranha em algum momento do passado. Este vem à tona. Tece direções. Emite luzes. E guarda o rosto que ali se reflete ou se refletiu. Mas é tudo muito rápido.
Na voz de João Nogueira, entre tropeços e desencantos do mundo, que dádiva os versos! Que dádiva cantar essa imagem do espelho! O olhar do espelho não mente. Não camufla. Não mascara. A um só tempo, superfície, luminosidade, profundidade, caverna, sumidouro, vazadouro, os espelhos olham o mundo. Feitos de sol e gelo, eles têm fascinado escritores e artistas das mais variadas expressões. Quem não se lembra daquele espelho falante dizendo verdades à bruxa na história da Branca de Neve?. Cada um ao seu modo, Jorge Luis Borges, Cecília Meireles e Machado de Assis foram intensamente olhados pelos espelhos. Eles entraram nos segredos e transformações das águas endurecidas e liquefeitas.
Tive vontade de indagar: João, como é entrar na magia do espelho?
Continuei sentada ao seu lado no banco do aeroporto. De novo tirei da bolsa o espelhinho oval. A pretexto de retocar o batom, inclinei mais um pouco meu minúsculo laguinho de águas endurecidas. Contornado pelo friso amarelo da moldura, João Nogueira continuava dento do meu espelho. Em carne, osso e inspiração. Pasta sobre os joelhos. Paletó. Chapéu. Lá estava ele, como se fosse um cristal que eu não tinha coragem de olhar de frente para pedir autógrafo.
Continuei fingindo que retocava o batom. A luz refletida em seu rosto iluminava meu espelhinho. Com voz e jeito sentido de cantar, João Nogueira ─ personagem do seu próprio "Espelho" ─ se tornou personagem do meu espelho. Aquela letra ─ poema pra valer ─ continua navegando versos nas águas profundas do meu laguinho de bolsa, repercutindo a voz de João Nogueira: "Mas tão habituado com o adverso / Eu temo se um dia me machuca o verso". Forte e apropriada essa imagem! Acostumados com o pega-pesado-da-vida, o autor e o compositor temem que algo possa ferir a poesia.
Pouco depois, João Nogueira se foi. Deve ter encontrado Alice, aquela menina que, ao sair do País das Maravilhas, foi visitar o País do Espelho.
Dos ancestrais não herdei terras. Não herdei ouro. Nem pérolas. Deles, recebi imagens que perfuram a resistência das águas endurecidas sob a máscara do dia. Até que novo dia se faça leito e superfície de outro espelho a gerar outros olhares. Outras águas. Outras nascentes.
No aeroporto ou na imaginação, volto àquele dia. Quando chove, penso num grande espelho dissolvendo-se em águas memoráveis. E vejo o "Espelho" de João Nogueira no meu espelhinho e em tantos outros que pela vida encontrei. Virou relíquia o pequeno objeto das águas mutantes.
Desportista nunca desejei ser. Um dia tentei jogar vôlei ─ Que desastre! Me ajeito melhor com a poesia. Pessoas, coisas, palavras, tudo me toca através do sentimento. Mas quando arrisco alguns versos meus ou quando termino livro, a voz do João Nogueira vem à tona. Diante da poesia, sinto também esse medo maior: que o espelho possa se partir. Meu espelhinho de moldura amarela, guardo bem guardado. E ainda hoje a grande apreensão na voz de João Nogueira se reflete igualmente em mim: "E o meu medo maior é o espelho se quebrar".
Quem ouve, aqui repito, sempre se intromete. Que espelho é esse? A existência? O tempo? O amor? A poesia? A inspiração? Quem escreve costuma também ser meio intrometido. Então, começa a fazer perguntas que não têm resposta. Que espelho é esse? A poesia não traz respostas. Mas seu ânimo transcende o tempo. Conforta saber que, se um espelho se partir, cada fragmento se fará completude.
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Postado por Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
26/7/2015 às 19h17
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Confesso que invejo Mário Quintana
Para escrever posfácio ao livro Eu queria ser, que apresenta trabalhos da fotógrafa paulista Priscila Prade, entrei no jogo das imagens do quer ser. A partir de declaração explícita ─ eu queria ser ─, atores imaginaram-se na pele de algum ídolo e foram caracterizados e fotografados em ambiente cenográfico. Tais fotos ─ reunindo o eu e o duplo ─ integram série de retratos que compõem lendas urbanas. Super-Homem, Che Guevara, Marilyn Monroe, Santos Dumont, Chico Xavier, Mulher-Gato, Dom Quixote, entre muitos outros personagens, fizeram parte do imaginário dos atores. E da fotógrafa.
Ao revisitar fotos reproduzidas no livro, me envolvi por completo no jogo do querer ser. Meu texto alongou-se. Era preciso terminá-lo. Mas não sabia como. Então, através do onirismo, me incluí no rol dos atores. Em meio a atuações alheias, entrei no jogo do desejo: eu queria ser... E não me faltaram aspirações. Patinadora. Astronauta. Cosmóloga. La belle de jour. Ascensorista. Por fim, me defini: eu queria ser poeta. E se eu fosse poeta, eu queria ser Mário Quintana, pra dizer tudo bonito e profundo, como numa conversa que a gente deseja que não termine nunca. E diria que o fotógrafo é um mago que descobre olhares na pele do mundo.
Mas não sou Mário Quintana. E não tem nada de original o que eu disse. Assim, confesso que invejo Mário Quintana, porque sabe preencher de onirismo as coisas do dia a dia. Ele conhece tudo que, por meio do sentir, habita o tempo e tangencia a vida. São "quintanares" os cantos de Quintana, como bem o definiu Manuel Bandeira: "São cantigas sem esgares / Onde as lágrimas são mares / De amor, os teus quintanares." É assim, Quintana, para ir ao fundo desses mares, teus pés caminham pelas ruas enquanto teu olhar desbrava horizontes na mesa de trabalho. E, por vezes, teu corpo se desloca por outros continentes escondidos no travesseiro.
Entre as mãos e a máquina de escrever, recrias em nós universos íntimos. Experiências do viver. Objetos da casa. Meandros da paixão. Do esquecimento. Da amizade. E todos conhecem aquela "Velha História" do afeto entre o homem e o peixinho azul ─ pura poesia que se transformou em desenho animado.
Ao contrário de Quintana, eu me atropelo toda quando quero falar de afetividade. Por isso, repito: invejo Mário Quintana. Mas essa inveja não tem nada de ferino nem de destrutivo. Minha inveja é carinhosa.
Conheço pessoas que falam mal da poesia de Quintana. Acho que aí tem o dedo da inveja. E encontro todo dia uma série de pessoas raivosas, apontando metralhadora giratória para muitos autores. Um dia ainda vou escrever sobre isso. Sei que há vários modos de invejar. E existe aquele invejoso que detesta alguém porque gosta das coisas que esse alguém sabe fazer ─ eis a completa incoerência desse tipo de inveja.
Esse invejoso quer ver o invejado no quinto dos infernos. Mas isso por baixo dos panos. Inventa, por exemplo, que você não sabe cozinhar. E, quando te encontra, dá até beijinhos: ─ "Adoro a carne assada que você faz!. Certamente ele até gosta muito desse seu prato. E, vai invejá-lo ainda mais, caso seja você tão bom quanto o Bocuse na cozinha. Pior ainda: ai de você se for agraciado com o primeiro lugar num Concurso de Culinária! Nosso amigo nem desconfia que isso é inveja. E se o invejoso fizer parte do júri, não farás jus sequer ao título de "Pior cozinheiro do certame".
Sobre esse Pecado Capital, dizem ser do Marquês de Maricá certo pensamento que me agrada pela ambiguidade: "A inveja é tão vil que ninguém ousa confessá-la". Mas, querido Quintana, ouso confessar publicamente minha inveja por ti. E sei que estás me ouvindo, porque poeta é personagem. Não morre. Invejo mais que tudo essa tua benevolência com os humanos quando dizes sem rancor: "Todos estes que aí estão / Atravancando o meu caminho, / Eles passarão... / Eu passarinho!".
Invejo, meu poeta, esse teu modo delicado e teu jeito desprendido de tratar os inimigos. Invejo teus versos de beija-flor espalhando pólen até mesmo no jardim alheio. Tua resposta sempre se faz poesia. Diante do terrível, consegues extrair luz: "Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada! / Pois dessa mão avaramente adunca / Não haverão de arrancar a luz sagrada!".
Para seres ouvido, Quintana, não precisaste alardear teu canto. "É que poeta nasce poeta / E poeta é o Mário Quintana". Quem diz isso, festejando teus 80 anos ─ e aqui reafirmo o verbo no presente ─ é o grande payador Jayme Caetano Braun. ─ Isso é que é homenagem de fazer mais inveja a todos os invejosos!
Ora, que esquecimento! Me enganei. Homenagem aos teus 80 anos, Quintana? Neste mês de julho, no dia 30, completarás 30 anos. Em teus versos o tempo não passa.
Quem fala mal da tua poesia, Quintana, só pode ser de inveja. E assim registro esta máxima atribuída a Niceto Zamora: "Os ataques da inveja são os únicos em que o agressor, se pudesse, preferia fazer o papel da vítima". É isso mesmo. Mas fazer teu papel de poeta-mestre na intensa delicadeza dos sentimentos, prezado Quintana, isso ninguém conseguiria.
Esse papel é só teu.
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Postado por Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
19/7/2015 às 14h08
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Julio Daio Borges
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