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Domingo,
7/2/2016
Blog da Mirian
Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
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Na solidão dos objetos (Objetos)
Antes da noite, o porão adormece
no leito de outro tempo escondido em antigos armários.
Nesse lugar, poucas descobertas me falam.
Mas, em todas elas, o passado
que pressinto meu.
A escada me convida à ascese. Dos filetes da lâmpada,
doces tentáculos chegam ao jardim de transparências,
atravessando a vida virtual e bela das rosas do vitral.
Vermelho nas corolas, o ímpeto da vida
derrama-se na sala, ignorando os sentidos
da véspera.
Sobre o chão, nada é perda ou desencontro.
Na solidão dos objetos, a poeira tinge de cinza
a dor do inútil.
(Do livro 50 poemas escolhidos pelo autor)
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7/2/2016 às 09h47
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Entre as vasilhas e as chamas - (Objetos)
Farinha, leite, água...
Já sei de cor o livro de receitas.
O que procuro não está escrito: a gestação
da vida no ventre de ferro das panelas.
Nas flores de mosaico, meus pensamentos
colhem a parte viva que faz jorrar da terra
estórias escritas pelo fogo.
Sempre atual e diferente
o fogo brilha e me atrai:
ave dançante na trempe do meu fogão
a libertar-se rubra em línguas verticais.
Meu estômago habita esses lugares do desejo
entre as vasilhas e as chamas,
onde os deuses preparam o alimento
e os sonhos.
Todos os dias meus dentes
compartilham com eles
as nozes e o pão.
(Do livro: 50 poemas escolhidos pelo autor)
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31/1/2016 às 08h45
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A mesa posta — (Objetos)
Branca a toalha, a noite encena a mesa posta.
A louça da casa brilha por obrigação
no encontro familiar.
Desejo mais. Quero o que se esconde
na memória e no tato dos talheres quando
pressentem o toque dos dedos e da boca.
Dia comum, desejo a festa.
Do convidado sentado à cabeceira,
das mãos entrelaçadas, eu sei, pensam comigo
o sentimento e a origem das coisas:
incenso da Índia
papoulas da China,
hortelã do meu quintal.
Junto ao visitante me apego aos sentidos
daquilo que vive. Em nossas mãos
o cálice aguarda o gosto dos lábios.
E da menta.
(Do livro: 50 poemas escolhidos pelo autor)
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22/1/2016 às 09h06
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Casablanca - Filmes
Tenho carta de trânsito aos meus sentimentos.
Dicções modulando a palavra liberta de armas.
Tenho ouvidos atentos à frase não dita:
─ Play it again, Sam!
Inda aguardo o convite que não veio:
─ Te encontro hoje no Bar do Rick?
O filme terminou.
A trama continua.
Aquela guerra terminou.
Muitas não terminaram.
Assim, também, no amor,
as time goes by.
Toque de recolher? Nada disso.
Só as luzes que se apagaram na bilheteria.
A cortina continua aberta, a tela iluminada.
E meu fôlego insiste no enredo feliz
seja no Marrocos, na China ou no Havaí.
Desbravando desertos, algo me falta:
o passe livre ao desejo do outro.
Nos intervalos da tua ausência, a canção me completa.
Tenho carta de trânsito para atravessar continentes,
assinar tratados de paz. E te aguardar nos bares.
─ Play it again, Sam!
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3/1/2016 às 10h26
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Ensina-me a viver - Filmes
Meu corpo está na terra.
Minha cabeça nas estrelas.
E meus pés descalços desejam aventuras
ao alcance das mãos.
─ Lindo anel, Harold. Guardarei no fundo do mar.
Com esse filme, não sei se aprendi a viver,
mas aprendi muitas coisas. Esta, a mais importante:
se jogar no mar o anel que tu me deste,
sempre saberei onde está.
Dessa valiosa lição, tento enredar outras
que me facilitem a vida:
esfriar café quente no freezer
segurar panelas com luvas não inflamáveis
água morna para desgrudar esparadrapo
tesoura para abrir embalagem de biscoito
na bolsa, não pode faltar uma caneta
soprar a ferida pra não arder.
Não reler mensagens de despedida.
Daquele aprendizado, tento ir além.
Do ir além, essa ilusória crença de saber
onde vivem as coisas amadas.
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31/12/2015 às 18h30
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A torneira - Objetos
Minhas mãos tocam antigas fontes
jorrando da torneira novinha em folha.
Antes da invenção desse objeto moderno,
capaz de controlar a força das águas fortes,
o dia a dia me lembra da velha peça de encaixe
conduzindo nascentes longínquas
às antigas casas romanas.
Em uso no apartamento da cidade,
essa torneira ─ design atual - nasceu
daquele primeiro cilindro escoando fontes e chuvas.
Antigamente, águas do rio lavavam os vivos e os mortos.
Por isso, imerso no flúmen secular, o passado sempre represa,
no tempo de hoje, vestígios do que se foi.
E do que se quer intenso:
Águas acesas. Águas mansas. Águas em êxtase.
E a vida ─ não por um fio de lã ou de seda.
A vida irrompendo de si mesma.
Na soleira da porta. No alimento.
Nos copos. Nos pratos e talheres.
Em paz com as águas, o apartamento dorme.
E desperta entre fantasmas benfazejos.
A cada manhã, os objetos se lançam ao cotidiano.
Lá fora, escolhendo os vivos e os mortos,
sem rodeios o mundo me espera.
Lavando a louça do café,
fontes primevas me lembram
águas murmurando o dúbio sentido
do ato de lavar as mãos.
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19/12/2015 às 13h38
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A eternidade e um dia II - Filmes
Ao visitar o passado, encontro-me
criança a recompor a corrosão da vida.
Então, me ponho a demolir alicerces
de uma Babel construída entre sons inaudíveis.
Aos antigos címbalos, encomendo vozes e cabelos ao vento.
E visitando a soleira desta manhã, a poesia se desloca
em errância à passagem dos séculos.
Amores vividos me olham à distância.
E ao chegar à praia, minhas palavras dedilham
profundezas, continentes e versos, para abrigar
o que se foi.
Por isso, peço aos notívagos
que me vendam palavras para dizer do sentimento
adormecido e vivo nas minhas entranhas.
Se morrerei hoje ou amanhã,
isto a poesia não diz.
À beira dos abismos, estrangeiros
somos todos nós em busca da terra prometida.
A eternidade num dia?
Um dia ou a eternidade?
Escrevendo memorial de bonança ou desalento,
o tempo se faz eterno mote aguardando
glosa que o faça resistir aos saltos mortais
da luz em desespero.
Sem escolher chão ou céu onde pousar,
a eternidade se inicia na colher de açúcar
amenizando o café da manhã.
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12/12/2015 às 14h28
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Chocolate - Filmes
Escorrendo da fonte de sementes,
o amargo se mistura ao açúcar adoçando
lábios e desejos que me arrepiam a pele.
E as coisas do dia a dia comemoram
a metamorfose do fruto ao calor da cozinha.
Em minha aldeia de cacau, amoroso cheiro
entranha-se no coração e no gosto do confeito.
Aos ritos natureza, à língua do visitante
dissolvem-se peixes de amêndoas
aninhados em rendas de açúcar.
E, animizando bonequinhas de bombom,
o licor dos Mamilos de Vênus amamenta
o namoro dos deuses e humanos.
Fechadas ou abertas,
as asas do fogo iluminam-me olhos e púbis
enquanto as cinzas das avós
enternecem o Vento Norte
aquecendo-se ao fogão.
Em minha aldeia de cacau, a cada visitante
o sabor exato ao tempo do amor.
Em minha aldeia de lendas, o passado
dissolve-se na panela adoçando a vida.
(Poema do livro VAZADOURO. São Paulo: Escrituras, 2011)
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5/12/2015 às 09h43
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Gabbeh: a voz das mulheres sem voz - Filmes
Não falarás de ti nem do mundo.
E a pesada voz do silêncio calou todas mulheres
daquela aldeia. Então, as tecelãs deram voz a si mesmas
urdindo o encantamento dos tapetes falantes.
Eu, tecelã das minhas origens,
aprendi a narrar mitos e fatos.
Ao tempo do filme, espalhei minha história
no chão que aguardaria meus passos à hora da saída.
Ao tempo do filme, entrelacei pontos e malhas
nos desenhos do meu tapete de palavras de lã.
Ao desfiar a matéria e as voltas dos novelos
todos me fazem perguntas que me despertam a fala:
─ Quem és?
─ Filha dos nós e pontos de areia.
─ Como te chamas?
─ Tecelã da Espera.
Eu, origem das minhas histórias,
rastreio o movimento dos teares e dos planetas.
Em busca do tempo evadido de si mesmo
minha tribo nômade atravessa desertos,
ruas, cidades. E não chega a lugar nenhum.
Irreverente, ante outras vozes dirigidas a mim,
misturo caprichos à minha fala dúbia:
─ Que ofício te completa as horas?
─ Burilar palavras.
─ Pra que servem as palavras que esmerilhas?
─ Para amansar a alma dos pés.
Nas cores desenhadas, apascento o clima dos desertos.
A cada dia, lavo o amor com tintas do cuidado.
─ Não sentes fome?
─ Me alimento de desejos.
Eu, tecelã do sol, aprendi a conduzir
as horas do plantio e do alimento.
Em tempos de penúria, meus cavalos e sonhos
carregam peso e leveza do vazio. Nas miragens
dos espelhos, colho provisões de água e frutos.
Ao tempo do filme,
avistei meu clã em nômade travessia
conduzindo pelas ruas carros e dúvidas.
Ao seu rastro, me fiz tecelã das lendas
que espero viver.
Hoje e sempre.
Depois do filme.
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28/11/2015 às 10h50
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A cristaleira ─ série: Objetos
Para Raul Almeida
Amarelas, com miosótis em azul,
essas xicrinhas de café acolheram as mãos dos meus avós.
O bule de faiança era da minha tia.
É só isto que posso saber.
Em São Paulo, comprei aqueles cálices coloridos
e adornados com folhas de videira. No licor de anis . . .
Ou seria de ameixa? Lábios amorosos? Ou amuados?
Circundando a louça antiga,
pulsam angústias, esperanças e afetos ancestrais.
E o entorno de cristal empareda tramas
que jamais poderei decifrar.
Na trave de madeira, pequena chave de bronze sela antigos pactos
de abrir e fechar o coração aos dias de festa ou de tédio.
Diante da transparência do móvel,
minha memória sofre de vazios por não poder alcançar
a alma daquelas peças amoráveis.
Hoje, no café da tarde, iluminaram-se glicínias no bojo das xícaras.
A quem pertenceram? A alguém triste? Alegre? Ou indiferente
às coisas da vida? Que mãos tingiram o lilás da floração em campo bege?
No café da tarde de hoje, mais uma vez se confirmaram
certa lonjura e o fôlego nas coisas que nos cercam.
Escondendo cenas jamais vistas por mim,
espelhos multiplicam formas e cores.
Do que se foi ─ é só isto que posso contemplar.
Conforta-me sentir que, entre distância e esquecimento,
quem ─ no passado ─ preservou tais objetos
partilha comigo o mesmo desejo de convivência
com o mistério do cotidiano.
O mesmo desejo.
Pressinto.
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Postado por Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
25/11/2015 às 19h37
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