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Sábado,
23/4/2016
Blog da Mirian
Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
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Blow up: depois daquele beijo
Não houve beijo.
E se, naquele lugar, crime aconteceu,
não o registrou o fotógrafo de jardim.
Sobre o tripé, alteava-se a quieta lembrança
da caixa mágica.
Dela fazia parte o pano preto
que escondia o lambe-lambe.
Dela fazia parte o pano preto
que eu imaginava cartola mágica
de onde sairiam pássaros.
E chocolates.
Esta era eu.
Rosto redondo.
Vestidinho e meias brancas.
À expectativa do retrato, transformava-se
a câmera em realejo, palco e cinema.
Depois, ante a simplicidade solene do passeio,
emergia no papel o passado vivo.
Esta era eu.
Fita no cabelo.
Sapatos pretos de verniz.
Não houve beijo. E da paisagem surgiu o tempo
que ora sustenta no colo o coreto e o gradil
servindo de fundo à minha imagem.
Não houve beijo. O beijo a lente
não presenciou. Entanto seu cristal transcendeu
os limites do possível. E a escrita da luz gravou-se
em passageira eternidade.
Coladas na caixa de madeira, outras imagens.
O sorriso do homem do chapéu de palhinha.
O olhar triste da mulher do broche de abelha.
A brilhantina no cabelo do senhor de jaquetão.
Entre o passeio e a volta,
ninguém se perdeu no tempo.
Esta sou eu.
No andamento da vida, minha face
diluiu-se nas águas do lago.
Esta sou eu.
Memória que repousa
neste pedaço de papel.
(Do livro 50 poemas escolhidos pelo autor)
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Postado por Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
23/4/2016 às 16h37
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Relógios
Sentindo a quietude das horas, antigos
relógios transformavam o passado.
Na filigrana do remoto, a mutação
das horas ao alcance das mãos.
Grãos de tempo
vazavam desertos de areia.
O jorro das fontes alimentando
relógios d’água.
Ao amparo das sombras, as viagens
ao sol cadenciando as estações.
Meus pensamentos agora perseguem
ponteiros que se perdem no ponto de partida.
O passar se recolhe em seu casulo
de metal.
Diante de mim, o instante
dizima invisível corpo.
Diante de mim, o tempo
debate-se em clausura.
Da monotonia à dor do cárcere,
esqueço-lhe a existência, na impermeável
passagem de mim aos enigmas
do outro.
À urdidura do remoto,
creio nas metamorfoses.
Também habito
o casulo do tempo.
Em busca das crisálidas,
não me faço resistência.
(Do livro 50 poemas escolhidos pelo autor)
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17/4/2016 às 09h12
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Pássaros, limo e seres imaginários
Junto aos camelos e cogumelos de nuvem
nascidos no telhado, o vermelho de pulsante coração
cobre minha casa, esmaece em sombras,
e com o ritmo das horas se refaz.
Sobre caibros e lendas guardo minha coleção
de pássaros, limo e seres imaginários.
(Uma parte dela já se perdeu
nas hachuras legadas pelo tempo).
Nesses meandros de carmim
e nervos, agoniza a vida do barro
em cada peça que se foi.
(Do livro 50 poemas escolhidos pelo autor)
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9/4/2016 às 12h03
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De volta ao porão
Sem sobressalto, exígua luz entrevê
na poltrona o couro de antiga sela
cavalgando dilemas do desgaste
das horas.
Esgotada a vida nessa relva
de algodão e lassas molas,
não sei aonde me levará o dia
ao rastro do cavaleiro.
Que rumo seguir meu cavalo sem corpo?
Que rumo tomar entre cupins
e a indiferença do esquecimento?
Enquanto imagino rotas de seda,
a malha do tecido morre uma vez mais.
Cão sem dono ante a preguiça da vida,
meu cavalo corre atrás da cauda
para fugir da “ameaça de eternidade”.
Para fugir do tempo neutro.
Para fugir desse tempo,
não sei que direção seguir.
Salva-me do engano
a desrazão do incerto.
(Do livro 50 poemas escolhidos pelo autor)
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3/4/2016 às 11h08
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Semeando no jardim
Tingindo de verde primevo a haste
nascente, meus desejos criam raízes
que me suavizam a tarefa das mãos
em dias de escassez.
Glicínias balbuciam em azul
o verbo das águas
geratrizes.
Sobre inércia e medo, uma flor reproduz
a vida nos dias perdidos a escorrer
pelo ventre da terra.
Uma só flor me basta.
Seu cálice poderá conter nada.
Ou, quem sabe, legendário néctar
da ressurreição?
Ante a dúvida, sinto-me
anterioridade.
Sou aquele que provará
o gosto do inexplicável.
Lábios, sempre abertos.
(Do livro 50 poemas escolhidos pelo autor)
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25/3/2016 às 09h22
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O rádio ligado
O outro lado da luz derrama a noite
sobre as tábuas do assoalho a resmungar
a falta nos acontecimentos não havidos.
Não pressinto passos.
Não há rumores de festa.
Olavo foi morar na Tailândia.
Paulo mudou-se para o Japão.
E os loucos da casa habitam
o cone de sombras dos eclipses.
Dentro do quarto dos fundos,
o pássaro de palha marca em neutralidade
o lugar da morte ao som de um monólogo.
O rádio ligado liberta a fala
do último morador da casa.
(Do livro 50 poemas escolhidos pelo autor)
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12/3/2016 às 08h49
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A presença dos objetos
Nesta canção do outro dia marcando-se
no corte da meia-noite, dois ponteiros
reiniciam meu acalanto.
Fascina-me o que pulsa e vive.
O cheiro da madrugada
renova-me das perdas e danos deste dia
de grandes pequenos acontecimentos.
O olhar do retrato não se dirige a mim
mas a moldura é bela. Meus sapatos ficaram
velhos e macios, mas o chão se perdeu
dos meus pés.
Em minha antiga caneta despertam
poemas que um dia eu quis escrever. E, agora,
com o indecifrável dos símbolos, o teclado
recolhe dos meus dedos a matéria que repousará
nas folhas de um livro.
Movem-me os pensamentos aqueles motivos
que vivem e pulsam. Mas ao agarrar-me
ao dia de hoje,
algo se emoldura no desconhecido.
Algo emerge do improviso.
Algo se improvisa em voo cego.
Meu sangue respira.
(Do livro 50 poemas escolhidos pelo autor)
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5/3/2016 às 09h50
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O cantador
Eu queria mesmo era ser cantador,
fazer verso de improviso pra dar banho
de poesia em Doutor de Universidade.
Eu queria mesmo era ser cantador:
navegar nas pedras do rio seco,
me enrolar na rede do dia,
construir no açude o mar sonhado.
Eu queria mesmo é fazer poesia,
longe do livro de Sociologia
e conhecer o sertão dos ancestrais
sem as soluções da aula de Economia.
Eu queria saber escrever folheto,
versejar o ferro que virou brasa,
cinza que virou pavão,
onça pintada voando no céu, e eu,
fazendo emboscada com as armas
do verso nas rimas do cordel.
Eu queria mesmo era ser poeta,
com meu verso cantado na praça.
Mas, ah! essa cultura importada de cidade grande
sem pedir licença entra na minha casa
nos fins de semana, anunciado best-sellers
naqueles jornais vazios, vazios
de ideias e imaginação.
Eu queria mesmo era ser cantador:
cantar o grilo que virou onça,
a gralha que virou pavão,
fogo transformado em ave,
papagaio cantando no poleiro do céu.
E eu, depois, fazendo emboscada
com a lâmina dos versos no ritmo
do cordel.
(Do livro 50 poemas escolhidos pelo autor)
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27/2/2016 às 11h12
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No cortejo das águas
Olham meus olhos e pensamentos
pequenos cisnes a deslizar pelo verde
da barra na parede.
Enquanto contemplo o sossego do nado,
lambem-me a pele regatos transitórios.
Imersa em mim, embalo meus rios de memórias
nesse cortejo das águas e aves de azulejo.
À hora do banho, um pouco de nós se vai.
(Do livro 50 poemas escolhidos pelo autor)
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20/2/2016 às 11h51
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Insone
A lua nova rastreia o quarto
adormecido. Pela escuridão encontro
frestas no eu que sobrou da véspera.
Acho o que não procurava: o acaso
é parte de mim.
Insone, preparo a festa do dia vindouro.
Aconchegada ao leito, misturo ao mel da manhã
o perfume das violetas.
E recolho numa fotografia
a cabeleira do sol a roçar os ombros
do mundo.
(Do livro 50 poemas escolhidos pelo autor)
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Postado por Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
13/2/2016 às 17h16
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Julio Daio Borges
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