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Sábado,
17/9/2016
Blog da Mirian
Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
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Meias
De balõezinhos, de flores, de listas
(também aquelas lisas e finas),
minhas meias saem das gavetas.
Na loja, um cosmos de matizes me acena.
Dobradas, as meias me pedem motivos
que as levem para longe ou perto.
Em meus pés elas percorrem metro
e légua. E eu gosto de saber das meias
nos pés dos outros.
Para a foto do livro de poemas,
Celso de Alencar calçou
meias vermelhas.
Mas não há objeto neutro.
Íntimos e táteis, pequenos ou grandes
impulsos nos atraem às coisas. Algumas vezes,
como se fossem anjos do instante. Outras vezes,
como se fossem demônios da hora inteira.
Ensaiando passadas e coreografia, minhas meias
são bonequinhas (vestidinho enfeitado ou liso)
andando pela parte boa da lembrança, visitando
estórias mui antigas nos pés do Gato de Botas
que sai a passeio por um mundo
maior que as gavetas e ruas.
Maior que os lugares da dor.
Maior que os espaços neutros e ásperos
da memória.
(Do livro 50 poemas escolhidos pelo autor)
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17/9/2016 às 09h25
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A rede
No deserto da casa eu me refugio.
Não me assusta a noite que adere à vidraça.
Preciso do passado e do rumor do dia.
Objeto amado, conforta-me o corpo.
O quarto acolhe a rede dobrada,
vincando manchas no pano que
me envolve fio a fio, ao vestir-me
nas horas de antes.
Dentro das malhas de franjada ourela
acaricia-me o corpo esta penugem
do bege desgaste a transpirar comigo.
Beijos ruborizando-me o ventre.
O macho cobrindo-me os seios.
Movem-se na rede vestígios de mim.
Conforta-me o corpo, objeto amado.
(Do livro 50 poemas escolhidos pelo autor)
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10/9/2016 às 09h11
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Tesouras
Útil, neste apressado tempo da manhã,
com esta de aros azuis (guardada na cozinha)
desfaço a geometria da caixa de leite
à primeira refeição do dia.
Com a outra, pequena e delicada,
aparo as unhas e o fio de linha
que insiste em saltar da barra da saia.
Aquela, um pouquinho maior,
liberta-me da mecha de cabelo
a esconder-me os olhos na fotografia.
Hábil, manobrando a maior de todas
(de ferro polido), com ares de quem salva
dos Sete Pecados Capitais a humanidade
e com pretensões de salvar o mundo do desvario,
podo no canteiro as ervas daninhas.
Ia me esquecendo, existe uma tesoura
de flores. Com pétalas e aromas,
sua lâmina renova-me das noites
de insônia. Com pétalas e aromas,
cultivo o lilás das glicínias que,
na jarra do quarto, contemplo
em natureza imaginária.
Com aquela, que era de minha avó,
polimento de cor grafite, eu dei à morte forma,
e vestes à consolação, esculpindo em casa
o manto dos primeiros mortos, nas malhas
do linho costurado à mão.
Mas para esta, pontas redondas,
cor e brilho da prata, à medida das cirandas
e brinquedos, desenhei bailados
para pernas de aço. Desenhei naves
de jornal. Com suas lâminas
recortei, na seda do papel, cores
que me levam ao virtual azul inscrito
sobre o chão da sala de jantar
e sobre a terra que cobre
os que se foram.
Movendo a que se fez alavanca
insondável, eliminei círculos metafísicos
que se repetiam. E se repetiam. Por fim,
partejando o ventre da terra, escavei o infinito
para encontrar no corpo a beleza do incompleto.
Ou encontrar o acaso nas tarefas da vida
dividindo-se com a morte.
E a que se perdeu de tudo,
pelo invisível da matéria a ser decepada,
eu a escolhi de vidro. E denteada. De um só golpe
de dedos cortei danos e perdas. Mas descobri que
os caules da mágoa pegam de galho,
renascem nas águas da chuva e da torneira,
fincam pé e raízes nas tábuas do assoalho.
Perdida no tempo, tem ela ainda certa utilidade.
Entre lâminas translúcidas, meus fantasmas
prenunciam as horas de demora
encravadas nos dentes do arado.
E ganhei um dia uma tesoura de areia.
Cheiro de mar. Fragmentos de corais e abismos.
Amorfa, esta carrego na bolsa.
Com ela aprendi a ineficácia do corte
ante o afiado tempo do cio.
(Do livro 50 poemas escolhidos pelo autor)
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3/9/2016 às 08h59
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Rua da infância
Belas não eram as casas que ao pó retornaram.
O verde das árvores inascidas teu ventre não gerou.
Com pedrinhas de brilhante não te ladrilhei
só para ver meu bem passar.
Apontando lanças aos dragões de nuvem, precioso
não era o metal dos teus gradis. E ao retorno da festa
não havida, topázios e avencas não substanciam
a matéria que me atormenta os passos.
Sem desespero, a comungar esquecimento
e aguçada memória da missa de domingo, bela se faz
tua impossível arquitetura dos vivos e dos mortos.
E à dobra da esquina, belo o arcaísmo da placa
onde o nome do poeta abre feridas e asas
ao infinito limite em corroído azul.
(Do livro 50 poemas escolhidos pelo autor)
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27/8/2016 às 09h47
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Na tessitura da toalha
Diante da minha demora, o rosto
do outro participa da ceia inacabada.
A vertigem das horas se inicia
e adormece nas migalhas de pão
visitadas pelos pássaros.
Ao longo do corte da faca,
o que não encontro, eu sei:
o limiar da vida bordada em ouro
no friso florindo o prato de carne.
No dourado do prato,
o que não posso encontrar, bem o sei:
a partitura das cigarras ensaiando
o fim do dia.
Eis que, no tecido da toalha
manchada de vinho, a morte
compõe interlúdio.
E logo me disponho
a lavar, de novo, aquela toalha,
tal a recriasse imune a nódoas.
Tal a concebesse resguardada
do envelhecimento.
(Do livro 50 poemas escolhidos pelo autor)
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20/8/2016 às 10h17
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Malabares
A enevoar-lhe a translúcida pele,
correntezas do remoto embebem
a carne do tempo.
Afogando-lhe narinas e peito.
Afogando-lhe a voracidade.
Entanto, a corredeira inventa
roteiros de entrelaçado começo e fim,
enquanto exibe franjas de simultânea
opacidade e transparência.
Aos lábios do malabarista
da fonte, pomos de fogo transformam-se
em polpa e sumo, revelando-lhe
o gosto do desconhecido.
Recusando-se à rede,
à pele do trapezista costuram-se
arranhões e cortes
ao tempo do ensaio.
Ilusória se revela a morte
dentro da caixa do mágico.
Do espetáculo, pudesse eu participar.
(Do livro Vazadouro)
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13/8/2016 às 10h09
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Papéis avulsos
À superfície do dia, este selo
de intenções determina meus afazeres.
Impondo-se ao que desejo fazer,
ele assinala meus guardados.
Ou o que desejo guardar.
Endereços. Telefones.
Notas soltas.
Saídos do ventre de esgotado tempo,
meus afetuosos papéis avulsos recolhem
as primeiras imagens do poema.
Viajantes de intrincado texto,
meus registros às vezes se repetem.
Do que se perdeu de mim, corroem-me
dizeres que não consigo entender.
Da escrita ao esquecimento,
pontuam-se os hiatos do cotidiano.
Nas páginas preenchidas, ergo
minha Torre de Babel.
Meu burburinho de vozes.
Minha admiração pelo intraduzível.
Minha ojeriza às definições.
Meu dia de hoje.
Meus dias.
(Do livro 50 poemas escolhidos pelo autor)
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7/8/2016 às 11h00
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Dentro do espelho
Decifrando imagens, vejo-me
a olhar meus olhos dentro do espelho.
Aprofundando-se na superfície, o fôlego do dia
entranhou-se no passado.
Minha boca beijando distâncias.
Minha boca beijando mistérios.
Eras o visitante da tarde.
Decifrando olhares, lábios de carne
animizando o cristal transfeito em pele
nas travessias do leito.
E a luz, a luz, dispõe-se a mudar
o curso das águas endurecidas
nos esboços do reflexo.
És o visitante da tarde.
Ao acolher-te em meu corpo,
surpreendo-me aguçados olhos de sol
a escavar no breu imagens intangíveis
que habitam o olhar.
(Do livro 50 poemas escolhidos pelo autor)
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31/7/2016 às 09h58
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Se eterno fosse o amor
E me beijarás a face
como se o tempo quedasse nulo,
tal o amor se fizesse imenso,
o respirar ─ infindo.
E o desejo, doador contínuo,
a fecundar a própria origem.
E despertarás em meu leito
impulso de Eros que, tangendo-se
nas cordas do falo,
tingirá o rubor do beijo
ao sugar-me os seios,
amamentando o amante.
E o delírio.
E acolherei negro pente das carícias,
seus dentes mordendo a noite
entre águas e lavas do coito
a inundar no corpo
a carne e a fonte.
Se eterno fosse o amor.
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24/7/2016 às 09h04
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"Faça uma lista", diz a canção
“Onde você ainda se reconhece
Na foto passada ou no espelho de agora?”
Oswaldo Montenegro
E ao costumeiro balanço dos dias,
ocupam-me afetos havidos e não havidos.
Encontro-me a elaborar uma lista da vida,
tal fosse isto possível.
E, tal fosse possível reverter o tempo,
a lista e a vida escutando fortes batidas
do meu coração.
Fraternos amigos que não vejo.
(Uns até só me falam por telefone ou e-mail).
Mas, no rol, tantos que deixaram de ser.
Em verdade, nunca foram amigos.
Na lista incluo antigos desejos.
E também aqueles que não mais
ouso lembrar. E amores eternos.
E amores que não vingaram.
Que nos seja leve o esquecimento!
Que nos seja leve a lembrança!
A boca dizendo inverdades.
Nos olhos, tantas revelações.
Na antevéspera da festa, eu me encontro.
E ao espelho que olha para mim.
Naqueles poemas que não escrevi.
Nos versos perdidos no cansaço.
(Do livro 50 poemas escolhidos pelo autor)
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Postado por Mirian de Carvalho (e-mail: [email protected])
17/7/2016 às 19h58
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